Cruz

Raymond Christinger

Excertos do livro «A Cruz Universal»

A palavra “cruz”, em inglês cross, em alemão Kreuz, em italiano croce, apresenta particular interesse do ponto de vista linguístico. Vem do latim crux e corresponde ao grego stauros, que significa poste, estaca pontiaguda e fincada na terra, para erigir uma paliçada, por exemplo.

Crux tem por raiz linguística indo-europeia (s)kreu-k, que deu em irlandês antigo cruach, a pilha, a eminência; em gaulês Krouka, o pico; em címrico cruq, o túmulo. Stauros provém de st(h)au, de onde derivam “instaurar” e “restaurar”. Em grego, como em latim, a palavra que significa, hoje, cruz referia-se primitivamente a uma peça vertical de madeira, em particular aquela que seria para imobilizar um supliciado.1 Por consequência, a ideia moderna de “cruzamento”, “encruzilhada” está ausente dos termos fundamentais crux e stauros.

Entre os instrumentos de suplício mencionados por Sêneca (Cons. ad Mare., XX, 3) e que ele chama a todos de cruces, cruzes, figura a estaca de empalamento. Certos supliciados eram atados a um poste, de cabeça para baixo; outros tinham os braços estirados sobre uma forca (patibulum), isto é, sobre uma barra transversal fixada a um ou dois postes, barra análoga à usada para fechar portas e que é preciso retirar quando se quer abri-las. Prendia-se, também, entre os dentes de uma forquilha a cabeça do condenado, que era estrangulado por meio de uma travessa enfiada no forcado (furca). Originalmente, ter-se-ia empregado para esse tipo de suplício a extremidade bifurcada do timão, fixada no eixo de uma carroça.

Todos esses instrumentos de morte, a estaca (palus), o tronco de árvore (arbor infelix), a forca (patibulum), eram cruzes reservadas ao suplício cruel e ignominioso dos escravos e dos piores criminosos. Por extensão, crux passou a designar o objeto ao qual era atado o condenado ao suplício final. Manilius, poeta do tempo de Augusto, em suas “Astrológicas”, chama de crux o rochedo ao qual Andrômeda está atada, de igual maneira que Luciano, falando de Prometeu amarrado a uma rocha do Cáucaso, serve-se da palavra stauros. Inversamente, artistas representaram Prometeu e Andrômeda ligados, não a um rochedo, mas a uma estaca ou a uma forca.2

Afora algumas gravuras, a imagem do Cristo na cruz não aparece nos monumentos cristãos mais antigos; surge apenas timidamente em iconografias do século V. A Igreja afastava-se, então, de muitos textos primitivos, dos quais vários foram considerados apócrifos e rejeitados. A imagem mais antiga de crucifixão que se poderia relacionar com o Cristianismo data do século III. Trata-se de uma caricatura descoberta no Palatino, no palácio dos Césares. Representa um crucificado de cabeça equina, diante do qual se coloca uma personagem em atitude de adoração, e que vem acompanhada por uma inscrição em grego que significa: “Alexandre adora o seu deus.” A cruz tem a forma de um Tau; um risco traçado sob os pés do supliciado representa, talvez, um suporte que sustenta o corpo. Esse patíbulo não é muito alto. A imagem da crucifixão do Cristo que nos é familiar não repousa, pois, em nenhuma tradição antiga. A melhor imagem desse instrumento seria o T, o Tau grego ou o Tav hebraico.

Não será inútil acrescentar que os primeiríssimos padres da Igreja, os que chegaram a conhecer algum dos doze apóstolos, referiram-se à cruz (stauros) com uma reserva, uma parcimônia, que espanta. Ela figura uma única vez nas epístolas de Inácio aos efésios, aos tralianos e aos filadelfianos; três vezes na epístola dita de Barnabé. A epístola de Inácio aos esmirnianos menciona uma vez a crucifixão. E é tudo. No capítulo VIII da epístola dita de Barnabé, faz-se referência ao rito de purificação, minuciosamente descrito no livro dos Números (19); os pequenos bastões em questão são interpretados como sendo a cruz, e o animal sacrificado (um cervo), como prefigurando Jesus. Inácio, em sua epístola aos efésios, é mais direto (18). Ele escreve que seu espírito está devotado à cruz, palavra ofensiva para os não-crentes, mas, para os cristãos, palavra de salvação e de vida eterna.

Foram precisos, pois, séculos para que se elaborasse a visão da cruz que hoje nos parece natural, para que nascesse o sentido atual das palavras oriundas do latim crux e para que, em consequência, as ideias evocadas por dois traços entrecruzados correspondessem àquelas despertadas pelas palavras derivadas de crux.

O museu de Berlim possui um sinete, datado do século III ou IV de nossa era, representando um homem crucificado. Por cima da cruz vê-se uma lua crescente e sete estrelas; embaixo e de um lado ao outro encontra-se esta legenda: “ORPHEOS BAKKIKOS”. Dado que essa crucifixão é bem anterior àquela em que o crucificado é o Cristo, tem-se perguntado se se tratava de tradições paralelas, se o orfismo influenciou o Cristianismo ou vice-versa.

René Guénon

Jean Chevalier


  1. Encontra-se hoje essa acepção da palavra “cruz” no verbo inglês to excruciate, que significa “torturar”, “submeter ao suplício”. ↩

  2. Antigos autores cristãos viram em Prometeu uma prefiguração do Ciisto. Outros personagens míticos foram igualmente acorrentados, como por exemplo Loki, o deus “louco” do panteão escandinavo. ↩

  3. Les Arbres du Paradis, na Regnabit, mar. 1926, p. 295. (V. também Le Symbolisme de la Croix.  ↩

  4. V. (Cap. 69) O Coração Irradiante e o Coração Ardente↩