substância

(gr. ousia; lat. substantia; in. Substance; fr. Substance; al. Substanz; it. Sostanzá).
VIDE hypokeimenon, subiectum

Esse termo teve dois significados fundamentais: 1) de estrutura necessária; 2) de conexão constante. O primeiro pertence à metafísica tradicional; o segundo, ao empirismo.

1) No primeiro significado, é substância: a) o que é necessariamente aquilo que é; b) o que existe necessariamente. Ambas estas determinações foram expostas na metafísica aristotélica, que gira inteiramente em torno do conceito de substância A primeira determinação é designada por Aristóteles com a expressão to ti en enai (quod quid erat esse), que pode ser traduzida como essência necessária; com efeito, ao pé da letra, essa expressão significa aquilo que o ser era, onde o imperfeito “era” indica a continuidade ou estabilidade do ser, seu ser desde sempre e para sempre. A essência necessária é expressa pela definição e é objeto do conhecimento científico (v. ciência). A segunda determinação relaciona-se com a primeira: é substância o que existe necessariamente. Aristóteles diz: “Temos ciência das coisas particulares só quando conhecemos a essência necessária das mesmas, e com todas as coisas ocorre o mesmo que ocorre com o bem: se o que é bem por essência não é bem, então nem o que existe por essência existe, e o que é uno por essência não é uno; e assim com todas as outras coisas” (Met., VII, 6, 1031 b 6). Aristóteles aduz esse argumento contra a separação que Platão faz entre a ideia e as coisas, mas, obviamente, esse argumento significa que tudo é o que é em virtude da essência necessária (que é a sua causa intrínseca ou extrínseca) e que, portanto, tudo o que há de real ou de cognoscível nas coisas faz parte da essência necessária e existe necessariamente. Assim, para Aristóteles, a substância constitui a estrutura necessária do ser em sua concatenação causal, porque todas as espécies de causas são determinações da substância (v. causalidade). Precisamente neste sentido, Aristóteles afirma que a forma das coisas é eterna e não pode ser produzida nem destruída (Met., VII, 8; VIII, 3), pois a forma é a essência necessária das coisas compostas. Por outro lado, Aristóteles não se preocupou muito em enumerar todos os modos de ser da substância. Começa dizendo que, comumente, se fala de substância em quatro sentidos, senão em mais, a saber: como essência necessária, como universal, como espécie e como sujeito (Met., VII, 3, 1028 a 32). Mas a substância como universal ou como espécie é excluída pela crítica ao platonismo, ou — o que dá no mesmo — é chamada por Aristóteles de substância segunda, em confronto com a substância primeira, que é a autêntica (Cal, 5, 2 a 13). Restam, portanto, apenas a substância como essência necessária e a substância como sujeito. Neste último significado, a substância pode ser a forma, a matéria ou o composto de ambas (Ibid., 1029 a 2). Em seus dois significados legítimos, a substância exprime o significado fundamental do conceito do ser e, portanto, constitui o objeto da metafísica. “Aquilo que há muito tempo vimos procurando e ainda procuramos, aquilo que sempre será um problema para nós (o que é o ser?) significa isto: o que é a substância” (Met., VII, 1, 1028 b 2). Por outro lado, a estrutura substancial do ser é o fundamento do saber científico. A essência necessária das coisas que não têm causa fora de si é intuída diretamente pelo intelecto e constitui os princípios primeiros que fundamentam a demonstração, ao passo que a essência necessária das coisas que têm causa fora de si pode ser revelada, senão demonstrada, pela própria demonstração. Em todos os casos, a necessidade da demonstração é a própria necessidade da substância (An.post, II, 9, 43 b 21; cf. toda a discussão precedente). A história posterior do conceito de substância repete o caráter que já havia servido a Aristóteles para defini-lo: a necessidade. Tal caráter é empregado explicitamente por Plotino para a definição do termo (Enn., I., VI, 3, 4), mas é a escolástica árabe, em especial Avicena, que mais insiste nele: “Dizemos que tudo o que é tem uma substância (essentid) graças à qual é o que é, e graças à qual é a necessidade disso e seu ser” (Logic, I). Tomás de Aquino, que, com as equivalências linguísticas estabelecidas em De ente et essentia, pusera fim a um longo período de confusões terminológicas (v. essência), reduz a substância (interpretando corretamente os textos de Aristóteles) à quididade (essência necessária) e ao sujeito (Suma Teológica, I. q. 29, a. 2). Descartes só fazia expressar o mesmo caráter de necessidade ao afirmar que “quando concebemos a substância, concebemos uma coisa que existe de tal modo que, para existir, não tem necessidade de outra coisa senão de si mesma” (Princ. phil, I, 51). Spinoza observava com razão que essa é a própria definição da substância infinita (R. cartesi principia philosophiae, 1663), e a adotava para definir esta última: “Entendo por substância aquilo que é em si e se concebe por si mesmo, ou seja, aquilo cujo conceito não precisa do conceito de outra coisa pela qual deva ser formado” (Et, I, prop. III). A definição proposta por Wolff (“substância é o sujeito perdurável e modificável”) é por ele mesmo considerada idêntica à definição tradicional e à cartesiana (Ont, § 768, 772). A definição tradicional é simplesmente repetida por Baumgarten: “substância é o ente subsistente por si” (Met, § 191). Leibniz conseguiu expressar em termos modernos o conceito tradicional de substância: “A natureza de uma substância individual ou de um ser completo é ter uma noção tão perfeita que com ela seja possível abranger e deduzir todos os predicados do sujeito aos quais essa noção é atribuída” (Disc. de mét., 1686, § 8). O próprio Leibniz aproximava esta noção da noção escolástica tradicional de forma substancial (Ibid., § 11), mas, na realidade, era a própria noção de essência necessária, que já Aristóteles concebia como o princípio do qual podem ser deduzidas todas as determinações de um ente.

Nada muda quando Kant começa a considerar a substância como categoria mental, pois a função de tal categoria, segundo ele, é constituir os próprios objetos da experiência. Mas, com esta transformação o conceito não muda. A substância é a “necessidade interna de permanência dos fenômenos”, e “para que o que se costuma chamar de substância no fenômeno possa ser substrato de qualquer determinação temporal, é necessário que nele qualquer existência, no passado ou no futuro, possa ser determinada de uma só e única maneira” (Crítica da Razão Pura, Anal. dos Princ, cap. 11, seç. III, 3). Em outras palavras, a permanência que constitui a substância é necessidade: é só poder ser de uma única maneira. Neste mesmo sentido, Fichte chamava o eu de substância: “Na medida em que se considera que o eu abrange todo o círculo absolutamente determinado de todas as realidades, ele é Substância.(…) substância é toda a reciprocidade pensada em geral; acidente é alguma coisa determinada que varia com alguma outra coisa variável” (Wissenschaftslehre, 1794, II, § 4, D; trad. it., pp. 100-101). No mesmo sentido, Hegel afirmava ainda que o conceito é substância: “O conceito é a verdade da substância, e como o modo determinado de relação da substância é a necessidade, a liberdade mostra-se como a verdade da necessidade e como o modo de relação do conceito” (Wissenschaft der Logik, ed. Glockner, II, p. 7; trad. it., III, p. 10; cf. Enc., § 150, 152). A noção de necessidade continuou a caracterizar a ideia de substância em todos os filósofos que a empregam. Rosmini incluía na ideia de substância em universal: 1) o pensamento da existência atual; 2) o pensamento do indivíduo que existe; 3) o pensamento “das determinações que ele deve ter para existir, isto é, o pensamento da necessidade de que ele seja completo e tenha tudo o que lhe é necessário para existir” (Nuovo saggio, 589). Pode-se dizer que até Wittgenstein emprega esse termo neste sentido tradicional: “substância é aquilo que existe independentemente do que acontece” (Tractatus, 2.024).

2) O segundo conceito de substância, como conexão constante entre determinações simultaneamente dadas pela experiência, é o produto da crítica empirista ao conceito tradicional. Essa crítica visa o caráter fundamental tradicionalmente atribuído à substância, a sua necessidade, porquanto tal necessidade não é resultado da experiência. A incognoscibilidade da substância em si mesma, por não ser objeto da experiência e só se dar na experiência como coleção de qualidades, já fora sustentada por Ockham no séc. XIV (In Sent, I, d. 2, q. 2; Quodl, III, 6), mas coube a Locke difundir esse ponto de vista no mundo moderno. Neste sentido, a substância é também chamada por ele de essência real ou forma substancial, e sua crítica encontra-se no cap. 6 do Livro III, mais do que no famoso capítulo 23 do Livro II: “No conhecimento e na distinção das substância, nossas faculdades não vão além de uma coleção de ideias sensíveis que observamos nelas; esta, mesmo que criada com a maior diligência e exatidão de que sejamos capazes, estará sempre distante da verdadeira constituição interna de que tais qualidades derivam. (…) Quando nos ocorre examinar as pedras sobre as quais caminhamos ou o ferro que manejamos todos os dias, logo descobrimos que não sabemos como são feitos nem sabemos explicar as diversas qualidades que descobrimos neles. É evidente que a constituição interna de que dependem suas propriedades nos é desconhecida” (Ensaio, III, 6, 9). Aqui Locke identifica com justeza a substância com a “constituição interna” da qual deveriam derivar as qualidades da coisa: derivar no sentido de que deveriam ser deduzíveis dessa constituição, de tal modo que pudessem ser explicadas e compreendidas em virtude dela. Esta era na realidade a substância aristotélica como essência necessária das coisas. Declarando-a incognoscível, Locke reduz a substância a uma simples “coleção de ideias”, abandonando a noção de necessidade em favor da noção de simples coexistência de fato das determinações percebidas. Assim, em Locke, o conceito de substância sofre uma transformação análoga à que o conceito de causa sofrerá nas mãos de Hume: de necessidade racional passa a ser uniformidade factual. A substância deixa de ser necessidade racional, em virtude da qual as determinações de um ente estariam todas racionalmente interligadas e seriam deriváveis da determinação fundamental que constitui a essência do ente, e passa a ser um conjunto de determinações que de fato estão juntas, mas cuja necessidade não pode ser demonstrada. Hume expressava bem essa nova ideia de substância ao dizer que “as qualidades particulares que formam uma substância costumam referir-se a algo desconhecido a que elas supostamente inerem, ou, deixando de lado essa ficção, são consideradas estreita e inseparavelmente interligadas por relações de continuidade e de causação” (Treatise, I, 1, 6; ed. Selby-Bigge, p. 16). A conexão de contiguidade e causação tomou o lugar da necessidade racional. Formulação ainda mais rigorosa do mesmo conceito foi proposta por Mach: “A substância não passa de persistência da interconexão: persistência que nunca é absoluta ou rigorosa (Analyse der Empfindungen, XIV, § 14; trad. it., p. 382). No mesmo sentido, Dewey escreveu: “A condição, a única condição para que possa haver substancialidade, é que a interdependência entre certas qualificações seja um sinal seguro de que, em se verificando certas interações, seguir-se-ão certos resultados” (Logic, cap. VII; trad. it., p. 187).

A ideia de substância, no seu significado tradicional de necessidade, e a ideia correlata de causa constituem os eixos de qualquer metafísica. Portanto, são aceitas integralmente por qualquer metafísica de cunho tradicional, ao passo que as correntes empiristas tendem a ver no conceito de substância a interconexão que Hume já entrevira, ou tendem até a desprezá-la, opondo-lhe a ideia de função, vale dizer, de relação. Esta última passagem já foi realizada por Mach, porquanto a “persistência da interconexão” nada mais é que a uniformidade de certas relações. (Abbagnano)


ousia, hypostasis, tode ti

etimologicamente, é “que está debaixo” ou o que permanece debaixo das aparências ou dos fenômenos. Contudo, o que caracteriza a substância não é sua relação aos acidentes, mas a subsistência própria. Substância é o que tem seu ser, não em outro, mas em si ou por si. Do mesmo modo que leva em si o ser, a substância leva igualmente em si o seu sentido e valor, podendo, por isso, em oposição aos acidentes, ser definida sem recorrer a um sujeito, a algo que a sustenha. A subsistência da substância, mercê da qual ela existe em si mesma, não exclui que deva o ser ao influxo de uma causa eficiente. Segundo seu caráter particular, a substância é uma certa persistência, absoluta, se se trata da Substância divina; relativa, em face dos acidentes, nas substâncias finitas. Estas são sempre sujeitos de determinação acidentais. Toda substância é, outrossim, princípio interno de atividade, ou uma natureza. — Distinguimos, com Aristóteles, uma substância primeira e uma substância segunda: a primeira é o ser individual e determinado por acidentes reais, que não pode ser predicado de nenhum outro (p. ex., Sócrates; = substância no sentido acima definido); a segunda é a essência universal, obtida a partir do individual por abstração e predicável da substância primeira (p. ex., homem). — O hilemorfismo distingue entre substâncias completas e substâncias incompletas ou substâncias partes. Estas incluem uma natural ordenação a outra parte essencial, com a qual formam uma substância completa composta. As substâncias incompletas diferem dos acidentes, em que elas constituem o todo, ao passo que estes determinam ulteriormente o seu sujeito só sob certo aspecto. Além disso, a substância incompleta tem seu ser mais com outro do que em outro. — O ser-em-si e para-si da substância admite graus. Sob este aspecto, a substância primeira está acima da substância segunda, a substância completa acima da substância incompleta, as substâncias animadas acima das substâncias inanimadas, sendo a mais elevada a pessoa.

Outras interpretações do conceito de substância: A confusão, que já se anuncia em Descartes, entre subsistência e absoluta independência, é consumada em Spinoza, e conduz logicamente à unicidade da substância e ao panteísmo. — Kant restringe a aplicação do conceito de substância do domínio da experiência. Característica decisiva é a persistência no tempo. — Para o materialismo, o conceito de substância só se realiza no corpóreo. — Desde Leibniz que se realça unilateralmente, principalmente por parte dos filósofos orientados para a ciência natural, o aspecto dinâmico da substância. Por último, o atualismo, a filosofia da vida e a filosofia da existência desprezam inteiramente a substância (não raro, mal entendida como uma espécie de fragmento rígido de realidade): só é real a atividade, não o sujeito que a produz.

Partindo do próprio eu, conhecemos a realidade, não só de uma, senão de diversas substâncias particulares. Encontramos naqueles atos produzidos por nós, como atos de pensar, etc. Mas tais atos são necessariamente referidos a um centro ou sujeito, do qual procedem. Este sujeito experimenta-se como idêntico em toda a diversidade de seus atos. Que ele não existe noutro como em seu sujeito, conhecemo-lo pela consciência da autoresponsabilidade em nossos atos livres. Da substancialidade do próprio eu inferimos legitimamente que ao eu alheio corresponde a mesma propriedade. Nos animais e nas plantas encontram-se atividades que indicam a existência de um todo provido de sentido como sujeito da finalidade, o qual pressupõe um ser-em-si e para si, à maneira de substância. Também nos corpos inorgânicos descobrimos “todos dotados de sentido”, que permitem inferir uma substancialidade à parte, embora não seja fácil, nos casos particulares, discernir uma substância individual de uma união de substâncias. Por último, o conceito de substância deve aplicar-se também a Deus, uma vez que a nota característica da mesma, a saber: o ser-em-si e para-si, não inclui imperfeição de espécie alguma, pelo contrário, convém necessariamente, em derradeira instância, ao ente enquanto tal; evidentemente, esta aplicação deve ser feita de maneira analógica e excluindo determinações acidentais. — Santeler. (Brugger)


O vocábulo latino substantia significa “estar debaixo de” e “o que está a debaixo de”. Supõe-se que a substância está debaixo de qualidades ou acidentes, servindo-lhes de suporte, de modo que as qualidades ou acidentes podem mudar, ao passo que a substância permanece – uma mudança de qualidades ou acidentes não equivale necessariamente a que a substância passe a ser outra, ao passo que uma mudança de substância é uma mudança para outra substância.

Aristóteles indica que, no seu sentido próprio, a é o que não é afirmado de um sujeito nem se acha num sujeito, como o homem e o cavalo individuais. Esta substância é a chamada substância primeira, porque para Aristóteles o primeiro é o ser individual do qual se predica algo; o ser individual existe ou pode existir, enquanto o que não é um ser individual á apenas, para já, o que pode dizer-se dele. Assim, o homem individual pode dizer-se que é homem, quer dizer, aplicar-lhe o nome homem, com o que tal nome é algo afirmado do homem individual. O homem individual é uma substância primeira, mas o nome homem não o é. Do homem individual pode dizer-se também que é um animal racional, que é branco, que possui a ciência, etc; o ser um animal racional, o ser branco, o possuir a ciência diz-se do homem individual como predicados essenciais ou acidentais e, portanto, não são substâncias primeiras. As substâncias são os substratos de todo o restante, pelo que são substâncias por excelência. As substâncias primeiras não diferem entre si no grau de substancialidade, pois tão substância é primeira o homem, como um boi, uma árvore, etc. As substâncias primeiras não têm contrários, como sucede com as qualidades: branco-negro, mas admitem qualificações contrárias, como quando se diz que tal homem é branco ou que tal homem é negro.

A substância primeira é algo individual, irredutível, único, que não está noutra coisa; é algo que se determina a si mesmo e se basta ontologicamente a si mesmo; é algo que poderia existir ainda que não existisse outra coisa – o que Aristóteles indica ao pôr em relevo que como tudo o que não é substância primeira se afirma das substâncias primeiras como sujeitos, nada poderia existir se não existissem as substâncias primeiras. Por ser o seu próprio haver, riqueza ou propriedade, a substância primeira é, formalmente falando, entidade..

O que se diz, ou pode dizer, da substância primeira que uma substância segunda, substância em sentido secundário e não próprio. Nem tudo o que se diz da substância primeira é substância segunda. Com efeito, só o que de algum modo se parece com a substância primeira é substância segunda. Isso acontece com os gêneros e as espécies, porque, como as substâncias primeiras podem ser suportes; não acontece com os acidentes – que são sempre suportados – e, na concepção de que nos ocupamos, não sucede tão pouco com as relações.

Tanto as substâncias primeiras como as substâncias segundas têm em comum o fato de não estarem num sujeito. Isto parece óbvio no caso das substâncias primeiras, pois se estivessem num sujeito poderiam afirmar-se de um sujeito, o que não acontece: O sujeito é o sujeito e, por conseguinte, é o este, que está separado, quer dizer, subsiste por si mesmo.

Parece menos evidente no caso das substâncias segundas, mas deve admitir-se também, segundo Aristóteles, visto que dizer de Pedro que é um homem não quer dizer que homem seja uma parte de Pedro, como o seria o ser branco, capaz de tocar guitarra, etc. A diferença entre substâncias primeiras e substâncias segundas não reside no fato de não estarem ou estarem no sujeito, mas no fato de as substâncias segundas determinarem o que as substâncias primeiras são. Quanto a “estar em”, poderia dizer-se que as substâncias primeiras “estão em” as substâncias segundas, mas é preciso ter cuidado em interpretar este “estar em”: não é o estar contido num sujeito, mas o estar contido como os indivíduos estão contidos nos universais, quer dizer, de modo diferente do ser “parte de”.

A doutrina anterior é a doutrina aristotélica da substância como categoria ou predicamento. Mas não é este o único sentido que tem em Aristóteles: substâncias são também entidades tais como os elementos (terra, fogo, água, ar), os corpos e seus compostos, e as partes desses corpos. Noutro sentido, chama-se substância à causa imanente da existências das coisas naturais. Noutro sentido, diz-se que são substâncias as essências expressas na definição. De todos estes sentidos destacam-se dois: a substância é o sujeito último, que não se afirma de nenhum outro, e é o que, sendo um indivíduo em sua essência, é separável, de modo que a forma de cada ser é a sua substância. Aristóteles examina largamente a noção de substância como primeira categoria do ser e como primeiro sujeito, e diz a este respeito que tal sujeito é num sentido a matéria, noutro sentido a formam e num terceiro sentido o composto de matéria e forma, o todo concreto.

Aristóteles nega que os universais e as ideias sejam substâncias, mas indica que a substância é de duas espécies: “todo composto” e forma. A primeira espécie de substâncias são corruptíveis; as segundas, incorruptíveis. Como todo o concreto, a substância é uma coisa determinada; como forma, a substância de cada ser é a essência. Aristóteles fala de espécies de substâncias. Há a substância sensível, que é móvel, e a substância não sensível, que imóvel. A substância sensível, objeto da física, pode ser corruptível (como os animais e as plantas) ou eterna, como os astros). A substância não sensível não tem nenhum princípio comum com as restantes espécies de substâncias. Muito variado tem sido o modo como depois de Aristóteles se entendeu ou exprimiu a ideia de substância.

Durante a idade média, quase todos os grandes pensadores trataram dos problemas relativos à substância. Especial interesse revestiu a questão acerca do que é uma substância. Para alguns, pode dizer-se que o nome substância significa apenas aquilo que tem ser por si. Mas como adverte S. Tomás, dizer da substância que é um ser por si não é definir a substância. Do mesmo modo que o que é o ente não pode ser um gênero, visto que não se encontra nenhuma diferença específica que o divida em espécies, o que tem ser por si não pode ser tão pouco um gênero; chama-se tal unicamente porque não está noutro, do que resulta que então o gênero não indica o que não é. Portanto, a substância é definível apenas quando se indica qual é a sua natureza ou razão de ser e esta razão é o ser uma coisa à qual compete o ser sem estar num sujeito, e também uma essência à qual compete o subsistir ou não estar recebida num sujeito. Pode-se, portanto, dizer que substância se constitui como uma essência que possui certas caraterísticas ou propriedades, de modo que ao falar da substância de modo algum eliminamos a noção de essência.

Isto não quer dizer que seja o mesmo a substância em sentido próprio, como a primeira da categorias – a qual pode ser forma, matéria ou composto-, que a substância como essência, como quando se diz que a definição significa a substância de uma coisa. Mas em ambos os casos compete à substância o ser substante, no sentido de consistir em ser substante. A substância tem, portanto, uma razão de ser, e esta razão é uma razão essencial. Esta razão não consiste meramente na razão de ser algo que sustente os acidentes; consiste na razão de ser ou estar por si não inerindo a um sujeito. A substância é por isso sujeito; ser substância significa independência. A razão formal da substância é uma perfeição positiva: a independência num ser.

Esta independência não é absoluta para a substância predicamental criada; o é só para Deus. Mas merece de todos os modos chamar-se independente, pois nem todo o independente é absoluto.

Algumas das dificuldades que se levantaram em relação à noção de substância podem ser eliminadas procurando ver em que sentido se toma em cada caso a substância. Com efeito, pode tomar-se como substância predicamental (na lógica), e como substância real (na física e na metafísica), mas não deve pensar-se que, segundo a mente dos escolásticos, cada um destes modos de falar da substância significa substâncias diferentes.

Os escolásticos fizeram abundante uso da noção de substância. Tem parecido às vezes que esta noção perdera o seu peso na época moderna, mas tal não sucede. O que sucedeu foi que o problema da substância se pôs comummente dentro de diferentes hipótese. Uma das mais importantes é a que podemos chamar “hipótese gnoseológica”; com efeito, não só se tratou na época moderna de dilucidar a natureza da substância como também de averiguar o modo de conhecimento da substância. O modo de conhecimento foi tratado também pelos escolásticos. Uma opinião muito difundida foi a de declarar que a substância é inacessível aos sentidos, e que se obtêm apenas mediante abstração das coisas sensíveis, mesmo quando os autores que tratavam da substância sobretudo na linha da essência não participavam de semelhante opinião. Em todo o caso, o problema gnoseológico foi na idade média menos importante que na época moderna. Pode dizer-se que durante a idade média a concepção da substância foi primariamente lógica-metafísica e que na época moderna foi principalmente metafísica-gnoseológica.

Também dentro da época moderna há concepções escolásticas da substância que têm tido muita influência. É o caso de Suárez.

Este sustenta que uma vez dividido o ente criado em substância e acidente, é preciso saber quando um modo do ente é substância. Segundo Suárez, é substancial o modo que pertence à constituição da própria substância. Tudo o que pertence à substância deve ser substância, embora seja incompleta; só depois de constituída plenamente se lhe adiciona o que é acidente. O que se chama substância é para Suárez um modo de existir: o existir como substância.

Em autores como Descartes e Leibniz há ressonância da concepção escolástica da substância. Descartes define a substância destacando o momento da independência. Mas destaca-o de um modo negativo: substância é, diz Descartes, aquilo que existe de tal modo que não necessita de nenhuma outra coisa para existir. Eis aqui o lado metafísico; quanto ao lado gnoseológico, temolo na ideia de que em toda a coisa na qual se encontra imediatamente, como no sujeito, ou pela qual existe algo que percebemos, quer dizer, qualquer propriedade, qualidade ou atributo cuja ideia real está em nós, chama-se substância. Só Deus é verdadeiramente substância, não necessita real e verdadeiramente de nada mais para existir, já que a sua essência implica a sua existência, mas são também substâncias finitas a substância extensa e a substância pensante, as quais recebem de Deus a causa última da sua existência. Embora definida na forma negativa apontada, há algo de positivo eminentemente na concepção cartesiana da substância: que tudo o que constitui a substância é substancial. como as substância pensante e extensa são dependentes de Deus, parecem antes ser atributos substancializados que substâncias. Leibniz destaca a pluralidade das substâncias e a sua atividade: a substância é “ente dotado da força (ou poder) de obrar”. O ser que subsiste em si mesmo, escreve Leibniz, é 2º que tem um princípio de ação em si mesmo”. Leibniz não poucas das definições escolásticas de substância, mas esclarece que não põe em suficiente relevo o caráter eminentemente ativo das substâncias individuais. Dizer que quando se atribui um certo número de predicados a um só sujeito, na medida em que não se atribui este sujeito a nenhum outro, tem-se uma substância individual, é dizer pouco; trata-se, ao fim e ao cabo, de uma definição nominal. É preciso dizer também que os predicados têm que estar incluídos no sujeito, de modo que a natureza de uma substância completa é possuir um conceito tão completo que possamos atribuir-lhe todos os predicados aos quais se atribui o conceito. A substância tem de ser, portanto, para Leibniz, individual, ativa e, por assim dizer, rica. Cada substância tem de ser distinguível de qualquer outra substância e todas as substâncias devem encontrar-se por uma harmonia preestabelecida. Os autores chamados empiristas manifestaram comumente desconfiança em face da noção de substância e em alguns casos completa hostilidade a ela. Para Locke, a substância é uma das ideias complexas, junto às ideias complexas de modos simples e compostos e de relações. Aqui aparece o problema da substância tratado gnoseologicamente; com efeito, Locke aspira a mostrar como se origina a ideia complexa de substância individual. Há que distinguir entre a ideia complexa e o que pode chamar-se a ideia geral da substância. Esta última não é uma ideia obtida mediante combinação ou complicação de ideias simples, mas uma espécie de pressuposição: pressupõe-se a ideia geral de substância simplesmente porque se torna difícil, se não impossível, conceber que haja fenômenos existentes, por assim dizer, no ar sem residirem numa substância. Isto não quer dizer que Locke afirme a existência de substâncias sob o aspecto metafísico. Sob este ponto de vista, a opinião de Locke é negativa. Em todo o caso, não sabemos o que é esse substrato a que chamamos substância. “Se alguém se põe a examinar-se a si mesmo em relação à sua noção de uma substância pura em geral, verificará que não tem outra ideia dela excepto unicamente uma suposição de não sabe que suporte dessas qualidades capazes de produzirem ideias simples em nós, qualidades que são comumente chamadas acidentes”. (Ensaio). Locke supunha, portanto, que há algo assim como um substrato material do qual não sabemos nada. Berkeley rejeitou tal substrato por desnecessário. Se ser é perceber ou ser percebido, não há senão percepções e sujeitos percipientes. Sob as percepções não há nenhum substrato ou substância. Não há, em rigor, substâncias materiais. Mas há uma causa das percepções ou ideias percebidas, e é a substância espiritual ou substância ativa incorpórea. Em suma, não há nada do que os filósofos chamam substância material, mas há substâncias espirituais ou espíritos como substâncias; não há substratos materiais, mas há sujeitos das potências do espírito, que correspondem às ideias que nos afetam.

As doutrinas segundo as quais há substâncias podem chamar-se, em geral, substancialistas, inclusivamente quando, como em Locke, fazem da substância uma ideia muito geral, ou quando, como em Berkeley, se reduzem as substâncias a substâncias espirituais. As doutrinas seguindo as quais a ideia de substância não tem nenhum fundamento podem chamar-se fenomenistas. Hume foi um dos mais destacados representantes desta última tendência. Hume rejeita a ideia de substância por não encontrar nenhuma impressão (de sensação ou de reflexão) que constitua o seu fundamento. As substâncias não são percebidas pelos sentidos, pois não são visíveis, nem respiram, nem produzem sons. Por outro lado, não são derivadas das impressões de reflexão, pois estas resolvem-se nas nossas paixões e emoções, nenhuma das quais pode representar qualquer substância. “por conseguinte, não temos nenhuma ideia de substância diferente da de uma série de qualidades particulares. A ideia de substância.. Não é senão uma série de ideias simples unidas pela imaginação e às quais se atribui um nome particular por meio do qual podemos recordar-nos a nós ou recordar a outros, tal como série”. (Tratado). Em suma, a substância é uma ficção e um nome “substância” um mero nome que não denota nada. Em vista do que se disse, parece que haja apenas duas atitudes possíveis em relação à noção de substância: aceitá-la ou rejeitá-la. Há, no entanto, outra atitude: deduzi-la no sentido de Kant, quer dizer, justificá-la. É O que Kant faz na “Dedução transcendental das categorias”. Kant não aceita a ideia metafísica da substância. Por outro lado, não admite que a ideia de substância se resolva numa coleção de impressões.

Kant deduz o conceito ou categoria de substância dos juízos de relação chamados categóricos; a eles corresponde a categoria de relação chamada “inerência e subsistência”. O conceito de substância sobrepõe-se a uma multiplicidade, ordenando-a de forma que seja possível formular juízos sobre “algo”, quer dizer, entidades que possuem tais ou quais propriedades. Em suma, Kant admite a noção de substância no plano transcendental; o conceito de substância é um dos que tornam possível o conhecimento dos objetos naturais. É, portanto, errado rejeitar totalmente este conceito. Mas é também errado transferi-lo para o plano metafísico.

Hegel tratou também a noção de substância como uma categoria, mas com intenção diferente da de Kant. As categorias de substância e acidente são para Hegel modos de manifestação da essência absoluta. São manifestações da necessidade. A substância é para Hegel a permanência que se manifesta em acidentes, os quais levam dentro de si a substancialidade. Assim, há algo nos acidentes que permanece, porque os acidentes são, em rigor, “a substância como acidente”. Mas a substância é uma parcial manifestação da essência; tem de ser superada pela causa e pelo efeito e, por fim, pela ação recíproca.

Um dos modos como tem sido tratada com frequência a ideia de substância na época moderna e especialmente na contemporânea tem sido sob a forma do problema do indivíduo. A análise da linguagem corrente projetou luz sobre a noção de indivíduo, e pode focar-se também esta luz sobre a noção de substância. É muito possível que um exame sobre os diversos modos de usar substância, substancial, etc, contribua para um melhor conhecimento da ideia de substância. (Ferrater)


Existência da substância.

A existência de seres substanciais ou de substâncias é admitida por Aristóteles e por Tomás de Aquino sem aparentes hesitações. Para eles, é um fato evidente, ou pelo menos uma constatação que impõe a mais elementar análise do dado. A filosofia moderna, pelo contrário, desde Locke, vê aí todas as espécies de dificuldades e, de modo corrente, termina pela sua negação. Como — dizem — podeis ter a pretensão de atingir um objeto que por definição se situa aquém daquilo que nos aparece? Nosso conhecimento termina nos fenômenos e não pode ir adiante; a afirmação da substância é, portanto, inteiramente arbitrária, se já não for contraditória. E, precisam alguns, se o senso comum é levado a supor a existência, sob as aparências, deste sujeito inerte do qual a filosofia fez a sua substância, não é apenas para satisfazer os postulados lógicos da atribuição? Uma vez que há um sujeito na proposição, não deve igualmente haver um na realidade: a substância não é mais do que uma reificação indevida do sujeito lógico da proposição. Estas críticas obrigam o moderno discípulo de Tomás de Aquino a considerar de mais perto os fundamentos sobre os quais repousa sua doutrina da substância.

A análise mais simples e mais óbvia que possa nos colocar na via da descoberta da substância é a da mudança. O dado do conhecimento se nos apresenta sob a forma de uma multiplicidade de aspectos variados. Destes, alguns são mutáveis, enquanto outros parecem permanecer estáveis. Consideremos o exemplo mais banal. Eis aqui a água que se esquenta. Sua temperatura se eleva, mas estamos persuadidos que a água permanece sempre água. Não posso mesmo conceber que ela se tornou mais quente, que adquiriu uma nova qualidade na ordem calorimétrica, se ela não permaneceu a mesma água. Se não subsistisse absolutamente nada da água primitiva ao termo da transformação, não se poderia dizer que esta água esquentou. Como Aristóteles o fez ver bem na sua pesquisa sobre os princípios do ser da natureza, a noção de mudança supõe necessariamente a de sujeito ou de substrato. Talvez esse sujeito seja ele mesmo mutável, o que me conduzirá a reconhecer-lhe um sujeito mais primitivo, e assim sucessivamente. Mas como não posso recuar indefinidamente no reconhecimento dos sujeitos sucessivos, será preciso que, finalmente, admita a existência de um primeiro sujeito que será essencialmente sujeito. Levada ao seu termo, esta análise nos conduziria com Aristóteles até o reconhecimento da matéria primeira que é, de algum modo, anterior à substância. Mas se nos detivermos no plano das modificações acidentais, isto é, daquelas que supõem a permanência de um substrato de natureza já determinada, atingiremos com certeza a substância na sua função de sujeito da mudança. Toda mudança que não afeta a natureza mais profunda das coisas supõe a permanência desta natureza, isto é, a substância.

Esta demonstração da substância a partir da análise da mudança é incontestavelmente válida; contudo, ela não faz atingir diretamente a substância no que ela tem de mais essencial; e, por outro lado não é por este desvio que Aristóteles aborda esta primeira categoria do ser. Com efeito, eis o que lemos no início do Livro 7: “O ser se toma em várias acepções. Significa, com efeito, de um lado, a essência e o indivíduo determinado; de outro lado, que uma coisa possui tal qualidade ou tal quantidade ou cada um dos predicamentos dessa espécie. Mas dentre estes sentidos tão numerosos do ser, vê-se claramente que o ser, no sentido primeiro, é a essência que indica precisamente a substância… As outras coisas somente são chamadas ser porque são ou quantidades do ser propriamente dito, ou qualidades, ou afecções desse ser, ou qualquer outra determinação desse gênero… É, portanto, evidente que é por esta categoria (a substância) que cada uma das outras categorias existem. De modo que o ser, no sentido fundamental, não tal modo de ser, mas o ser absolutamente falando deve ser a substância”. Para Aristóteles, se ela se manifesta com os caracteres de um substrato, a substância tem, portanto, também o valor de ser primeiro, de princípio de existência, sob um certo ponto de vista, para as outras modalidades. É que o fundamento profundo desta análise que conduz à substância não é outro senão a natureza analógica do ser. Há múltiplas modalidades do ser, é um fato, e esta multiplicidade somente é inteligível se possui uma certa unidade, e ela não pode ter unidade senão em relação a um primeiro termo que será o ser essencial e fundamental (pelo menos em uma certa ordem). A substância aparece aqui como o princípio de unidade e de inteligibilidade do dado que é múltiplo.

Vê-se, pois, o que convém responder aos que pretendem que a substância seja uma entidade quimérica ou pelo menos que escapa ao nosso poder, porque nossa percepção se deteria nos fenômenos e, portanto, nos acidentes. De início, é preciso afirmar que o que é imediatamente dado não é, nem o fenômeno no sentido subjetivista da palavra, nem a substância como tal, mas o ser concreto implicando indistintamente substância e acidentes. A análise nos permite, em seguida, discernir neste conjunto global as modalidades mutáveis e diversas, de que se tratou precedentemente, e remontar, para torná-las inteligíveis, -à substância, ao mesmo tempo substrato e ser primeiro, à qual todo 0 organismo dos acidentes se reporta. Se, portanto, não é, a bem dizer, o objeto de uma intuição, a substância é atingida em virtude de uma inferência imediata e necessária.

De onde esta consequência extremamente importante: estamos na impossibilidade de distinguir de modo imediato e evidente as substâncias particulares. Rigorosamente, as análises feitas até aqui não nos impeliriam senão a reconhecer a existência necessária de uma só substância criada. Todavia a hipótese de uma pluralidade de substâncias é infinitamente mais conforme ao dado. Parece praticamente impossível recusar a individualidade substancial dos seres vivos e, ainda que isto seja menos claro, dos elementos últimos do mundo inorgânico. Aos que pretendem que a doutrina da substância não é mais do que uma transposição ontológica arbitrária de um esquema lógico de pensamento, é preciso responder fazendo valer, por uma análise do juízo, que as modalidades da afirmação correspondem com efeito a verdadeiras determinações do ser objetivo que as condicionam. As categorias, e portanto a substância, têm uma envergadura realista ao mesmo tempo que uma significação lógica.

Natureza e propriedades da substância

Cf. notadamente: Aristóteles, Categorias, c. 5.

No sentido etimológico da palavra, o termo substância significa o que está por debaixo das aparências ou dos acidentes (sub-stare), e que, por este fato, é o sujeito dos acidentes. Esta propriedade de ser o suporte dos acidentes pertence com efeito à substância, mas não exprime a sua natureza mais profunda. Aristóteles dela se aproxima bastante quando no início do cap. 5 das Categorias declara: “A substância no sentido mais fundamental, primeiro e principal do termo, é o que não está, nem afirmado do sujeito, nem em um sujeito.” Esta segunda definição corresponde bem à essência da substância, mas ainda não a caracteriza senão negativamente, como um non esse in subjecto. Ora a substância deve evidentemente ser uma perfeição positiva que será melhor significada pois pela expressão esse in se.

Assim, pois, segundo nosso modo de conceber, a substância aparece sucessivamente coma o ser suporte dos acidentes, o ser que não está em um outro, o ser que é em si. Mas um gênero particular do ser somente pode se distinguir pelo seu aspecto quididativo, enquanto é uma natureza; se portanto se quer chegar a uma fórmula perfeitamente exata, não se definirá a substância como o que (de fato) existe em si, mas “o que é apto a existir em si e não em um outro como em um sujeito de inerência”

quod aptum est esse in se et non in alio tanquam in sujecto inhaesionis.

Diz-se ainda que a substância é “o ser por si” ( per se ens) e que tem por constitutivo formal a “perseidade”. Esta fórmula é admissível, mas, com a condição de se fazer observar o valor não causal da determinação “por si”. Em termos rigorosos, somente Deus é .o ens per ser. A substância é “por si” somente no sentido de que possui em si tudo o que é preciso para receber a existência. Logicamente, reconhecer, em toda a sua fôrça, a “perseidade” na substância conduz, nas pegadas de Espinosa, ao monismo panteísta.

Nos livros 7 e 8 da Metafísica, procurando precisar a natureza da substância sensível, Aristóteles se pergunta se essa substância não deve ser levada a uma destas quatro coisas: o universal, o substrato, a forma ou o composto dos dois últimos. Eliminando absolutamente a solução platônica, segundo a qual a substância seria uma ideia separada, chega à conclusão, sem afastar inteiramente a hipótese da substância — substrato, que a substância é sobretudo forma, isto é, a causa “em razão da qual a matéria é algo de definido”. Assim, a substância, mesmo sendo substrato, é também, e sobretudo, princípio formal, isto é, essência determinada, o que nos afasta da concepção puramente receptiva de sujeito material dos acidentes.

Na sequência do cap. 5 das Categorias, Aristóteles enumera uma série de seis propriedades da substância que a tradição escolástica fez sua. A primeira, não ser em um sujeito, non esse in subjecto, em realidade apenas reproduz a fórmula negativa da definição da substância. A segunda, ser atribuído em um sentido sinônimo, univoce praedicare, somente pode convir, evidentemente, à substância segunda. A terceira, significar “este algo”, significare hoc aliquid, se refere, pelo contrário, non habere contrarium, vale igualmente para os dois gêneros de substância. O mesmo ocorre com a quinta, não ser suscetível de mais e de menos, non suscipere majus et minus, que significa, não que uma substância possa ser mais ou menos substância do que outra, mas que a mesma substância não poderá jamais ser dita mais ou menos do que é em si mesma. Enfim, com a sexta, ser apto a receber os contrários, esse susceptivus contrariorum, atingimos o que é o caráter distintivo, o proprium, da substância. Nenhum outro modo de ser poderá, permanecendo idêntico a si mesmo, receber sucessivamente os contrários: a mesma cor não pode ser branca e negra, ao passo que o mesmo corpo de branco pode tornar-se negro. Tais são para Aristóteles as propriedades da substância.

Divisões da substância.

Substâncias primeiras, substâncias segundas. A mais clássica das divisões aristotélicas da substância é a que se encontra nas Categorias (c.5) em substâncias primeiras e substâncias segundas. A substância primeira não é outra coisa senão o sujeito individual concreto, “Pedro”, “Callias”; ela não está em um sujeito e não pode ser atribuída a um sujeito. A substância segunda designa o universal que exprime a essência de um sujeito, “homem”, “cavalo”; ela não está, propriamente falando, em um sujeito, mas pode, por outro lado, ser atribuída a um sujeito: assim pode-se dizer que “Pedro é homem”. É fácil ver que esta distinção, feita do ponto de vista das possibilidades da atribuição, possui um interesse principalmente lógico. Para o metafísico, a substância é diretamente o sujeito concreto, isto é, a substância primeira.

Substância simples e substâncias compostas. A divisão essencial do predicamento substância é a que corresponde à primeira dicotomia da árvore de Porfírio em substâncias simples (imateriais) e substâncias compostas (materiais).

As substâncias materiais são caracterizadas pela sua composição interna em matéria e forma; e estes dois elementos são dois princípios complementares que, com exceção do caso da alma humana, não podem subsistir isoladamente. Foi, recorda-se, principalmente o fenômeno físico da geração e da corrupção das substâncias materiais que conduziu ao reconhecimento destes dois princípios distintos. A substância material é dividida, de um ponto de vista lógico, pelas diferenças vivente, não vivente etc… De um outro ponto de vista, os antigos admitiam uma outra distinção das substâncias corporais que a física moderna abandonou: a de corpos corruptíveis e a de corpos incorruptíveis. Uns e outros eram compostos de matéria e forma mas, ao passo que as substâncias sublunares se encontravam submetidas ao conjunto das transformações, compreendidas, geração e corrupção substanciais, as substâncias celestes eram incorruptíveis na sua natureza e sujeitas sãmente às mudanças de lugar.

As substâncias imateriais não são compostas de matéria e forma. Por analogia sãmente dir-se-á que elas são formas separadas. O estudo metafísico e noético destas substâncias apenas foi bem conduzido na filosofia cristã, à qual a doutrina revelada dos anjos assegurava um sólido ponto de apoio. Para Tomás de Aquino, pelo fato de que elas não possuem matéria, estas substâncias não podem ser multiplicadas numericamente; cada anjo é único em sua espécie, e o conjunto das espécies angélicas constitui, segundo a diversidade das essências, uma hierarquia formal.

Problemas relativos à substância.

Unidade do composto substância-acidentes. Substância e acidentes são realmente distintos. O argumento mais manifesto a favor dessa distinção é que os acidentes, pelo menos alguns dentre eles, podem mudar e mesmo totalmente se corromper sem que a substância seja modificada. Pode-se igualmente fazer valer que a natureza de certos acidentes se opõe à da substância, o que acarreta a real distinção das duas modalidades de ser (a quantidade, por exemplo, implica por si a divisibilidade, ao passo que a substância diz, de início, unidade). Mas, objetar-se-á, pela afirmação da realidade da distinção substância-acidentes, não se chegará a comprometer a unidade do ser concreto e a tornar pouco inteligíveis suas mutações, as quais não parecerão mais ser, nesta hipótese, senão transformações de superfície artificialmente superpostas à inércia dos substratos imóveis? É preciso responder a estas objeções que poderíamos encontrar no fundo de muitas das dificuldades dos modernos, que a real distinção dos acidentes não impede que estes constituam com a substância um único ser concreto. Eles não têm, em verdade, existência independente: eles “inerem”, “in-existem”, se se pode assim falar, no sujeito. O que existe, é o ser concreto, na sua realidade substancial, completada por suas modalidades acidentais. Do mesmo modo, o que muda, o que age é o mesmo ser concreto, actiones sunt suppositorum: é o homem que pensa, é o fogo que queima. Nada de mais inexato, portanto, do que se representar a substância como uma espécie de suporte inerte sob um revestimento superficial e mutável de acidentes. Ainda que realmente múltiplo em seus princípios, o ser concreto é uno e age por tudo o que é.

Individuação da substância material. Sendo a substância o ser concreto, esta não poderá existir senão no estado de indivíduo. Então, uma vez que, de fato, esses indivíduos são múltiplos, se põe a questão de saber em que esses indivíduos se distinguem uns dos outros. No caso das substâncias espirituais que são formas puras, é pela sua forma ou pela sua essência mesma, e em consequência não pode haver várias substâncias deste tipo possuindo uma mesma natureza: todos os anjos, dir-se-á, são de espécies diferentes. Acontecerá o mesmo no caso das substâncias materiais? Aqui se encontram manifestamente multiplicidades de indivíduos de mesma espécie, isto é, que são formalmente os mesmos. Um outro princípio de diferenciação, ou se se quiser, de individuação é aqui exigido. Conforme Aristóteles, Tomás de Aquino julga que este princípio de individuação só pode ser, radicalmente, a matéria. O ser que é individuado na sua substância só pode sê-lo por um princípio substancial que, não sendo neste caso a forma, é necessariamente a matéria. Todavia a matéria só preenche esta função se for determinada por um acidente, a quantidade, materia signata quantitate. Tomás de Aquino (De Trinitate, q. 4, a. 2) dá a razão disso. A forma, com efeito, só pode ser individuada se for recebida em tal matéria distinta e determinada. Ora, a matéria sãmente é divisível, e portanto distinguível, pela quantidade. Não haverá, pois, para ser distinta senão uma matéria já compreendida sob certas dimensões ou quantificada. S.

Tomás precisa, em seguida, que essa quantificação não implica necessariamente um termo preciso ou dimensões determinadas, mas sãmente dimensões cujo termo não é fixado, e pode assim concluir que: “ex his dimensionibus interminatis efficitur haec materia signata, et sic individuat formam, et sic ex materia causatur diversitas secundum numerum in eadem specie”.

O problema da subsistência. O aprofundamento dos mistérios revelados, notadamente o da incarnação, conduziu à posição de um novo problema, o da subsistência, problema que não é desprovido de interesse para a filosofia.

Notemos que nestas pesquisas designa-se pelo termo de suppositum o indivíduo substancial subsistente; no caso do ser dotado de razão é também chamado pessoa, persona. Eis do que se trata então: em um indivíduo concreto não há lugar para se estabelecer uma distinção real entre a pessoa ou o suppositum de um lado, e a natureza ou a essência individual de outro lado? E, no caso de uma distinção real, por qual razão formal a substância existente possui esta independência esta incomunicabilidade, que a separa de toda outra substância?

Os comentadores de Tomás de Aquino, desde Caietano, se decidem o mais comumente pela distinção real e, para determinar ou terminar a substância na ordem da autonomia concreta, requerem uma formalidade particular, a subsistência, que, a título de modo substancial, vem dar à natureza considerada o pertencer propriamente a tal indivíduo, o ser incomunicável. A razão que se invoca em favor da instituição desta entidade de acréscimo é que a essência, se ela possui por si o que é preciso para determinar e, portanto, para limitar a existência do ponto de vista da natureza específica, permanece, no entanto, impotente para dar conta da subsistência independente. Em definitivo, na ordem do criado, o sujeito concreto aparece como uma natureza individual que culmina em um modo substancial distinto, a subsistência, e que vem atuar, do ponto de vista do ser, a existência que lhe é própria. (Gardeil)