(gr. sarx; lat. caro; in. Flesh; fr. Chair; al. Fleisch; it. Carne).
Na terminologia do Novo Testamento, especialmente em S. Paulo, é algo diferente do corpo. A carne ou carnalidade é a aversão ou a resistência à lei de Deus, e por isso o pecado ou a orientação para o pecado (p. ex., S. Paulo, Ad Rom., VII, 14; VIII, 3, 8, etc. Cf. Bultmann, Theologie des N. T, 1948, p. 223). O mesmo sentido conservou-se na linguagem comum e na pregação moralista. Esse termo foi usado em sentido diferente por Merleau-Ponty (Le visible et l’invisible, 1964), ao falar da “carne do mundo” como da substância viva comum ao corpo do homem e às coisas do mundo, que constitui, ao mesmo tempo, o objeto e o sujeito das experiências humanas. (Abbagnano)
Michel Henry
ENCARNAÇÃO — O CORPO E A CARNE (MHE)
Um corpo inerte semelhante aos que se encontram no universo material — ou ainda os que se podem construir utilizando os processos materiais extraídos deste, organizando-os e combinando-os segundo as leis da física -, tal corpo não sente nem experimenta nada. Ele não se sente nem se experimenta a si mesmo, não se ama nem se deseja. Nem, menos ainda, sente ou experimenta, ama ou deseja nenhuma das coisas que o cercam. Segundo a observação profunda de Heidegger, a mesa não “toca” a parede contra a qual está colocada. O próprio de um corpo como o nosso, ao contrário, é que ele sente cada objeto próximo de si; percebe cada uma de suas qualidades, vê as cores, ouve os sons, inspira um odor, calcula com o pé a dureza de um chão, com a mão a suavidade de um tecido. E só sente tudo isso, as qualidades de todos esses objetos que compõem seu ambiente, só experimenta o mundo que o pressiona por todos dos lados, porque se experimenta antes de tudo a si mesmo, no esforço que faz para subir a ruela, na impressão de prazer em que se resume o frescor da água ou do vento.
Essa diferença entre os dois corpos que acabamos de distinguir — o nosso, que, por um lado, se experimenta a si mesmo ao mesmo tempo que sente o que o cerca e, por outro, um corpo inerte do universo, seja ele uma pedra no caminho ou as partículas microfísicas que se supõe a constituem —, nós a fixamos a partir de agora numa terminologia apropriada. Chamaremos carne ao primeiro, reservando o uso da palavra corpo para o segundo. Pois nossa carne não é senão isto que, experimentando-se, sofrendo-se, padecendo-se e suportando-se a si mesmo e, assim, desfrutando de si segundo impressões sempre renascentes, é, por essa mesma razão, [12] suscetível de sentir o corpo que lhe é exterior, de tocá-lo, bem como de ser tocado por ele — coisa de que o corpo exterior, o corpo inerte do universo material, é, por princípio, incapaz.
A elucidação da carne constituirá o primeiro tema de nossa investigação. Queremos falar dos seres encarnados que somos nós, os homens, desta condição singular que é a nossa. Mas esta condição, o fato de ser encarnado, nada mais é que a encarnação. Sucede, porém, que a encarnação não consiste em ter um corpo, em se propor desse modo como um “ser corporal” e, portanto, material, parte integrante do universo a que se confere o mesmo qualificativo. A encarnação consiste no fato de ter uma carne; mais, talvez: de ser carne. Seres encarnados não são, pois, corpos inertes que não sentem e não experimentam nada, sem consciência de si mesmos nem das coisas. Seres encarnados são seres padecentes, atravessados pelo desejo e pelo medo, e que sentem toda a série de impressões ligadas à carne porque estas são constitutivas de sua substância — uma substância impressionai, portanto, que começa e termina com o que experimenta.
Definida por tudo aquilo de que um corpo se acha desprovido, a carne não poderia confundir-se com ele; ela é antes, por assim dizer, o exato contrário. Carne e corpo opõem-se como o sentir e o não sentir — o que desfruta de si, por um lado; a matéria cega, opaca, inerte, por outro. Tão radical é essa diferença, que, por mais evidente que pareça, nos é muito difícil, e até impossível, pensá-la verdadeiramente. E isso porque ela se estabelece entre dois termos, um dos quais, afinal de contas, nos escapa. Se nos é fácil conhecer nossa carne porque ela não nos deixa nunca e se cola à nossa pele na forma dessas múltiplas impressões de dor e de prazer que nos afetam sem cessar de modo que cada um, com efeito, sabe muito bem, com um saber absoluto e ininterrupto, o que é sua carne — ainda que não seja capaz de exprimir conceptualmente esse saber -, totalmente diverso é nosso conhecimento dos corpos inertes da natureza material: ele vem perder-se e terminar numa ignorância completa.
Gregório do Sinai
137 sentenças diversas
9. Pois a origem da carne é a corrupção. Comer, evacuar, se enfeitar e dormir, se pavonear e dormir, é naturalmente o próprio das feras e das bestas. Tornados pela desobediência semelhantes às bestas, decaímos dos bens dados por Deus, e que nos eram próprios. De seres de razão, nos tornamos como bestas. De seres divinos, nos tornamos como feras.
Frithjof Schuon
O ESOTERISMO COMO PRINCÍPIO E COMO VIA
Quem diz homem diz forma; o homem é a ponte entre a forma e a essência, ou entre a “carne” e o “espírito”.
A não ser que se pretenda que sejam cristãs, como se fez quanto às “Dissertações” de Epicteto, ou a não ser que se conceda à inteligência dita “natural” um papel honroso, como se fez quanto a Aristóteles; neste caso, a “carne” torna-se “natureza”, o que é melhor que nada, mas está sempre abaixo da verdade. Se há uma “sabedoria segundo a carne” é, certamente, e no mais alto grau, este pensamento especificamente moderno em que o irracional passa por supra-racional, matando o racional.
Aliás, para uma perspectiva voluntarista e penitencial, que vê o mal sobretudo na paixão da carne, é grande a tentação de ver a queda no ato sexual; na verdade, é impossível a causa da queda estar numa lei positiva da natureza; ela está unicamente no fato de afastar os bens naturais de sua Fonte divina, de vivê-los fora de Deus e de atribuir a si a sua glória e o seu usufruto.
Certamente, a carne foi amaldiçoada em virtude da perda da graça divina, mas apenas de um determinado ponto de vista, o da descontinuidade existencial e formal e não do ponto de vista da continuidade espiritual e essencial.
A castidade pode ter por finalidade não apenas resistir à influência da carne, mas também, de modo mais profundo, escapar da polaridade dos sexos e reintegrar a unidade do pontifex primordial, do homem como tal. Certamente, ela não é uma condição indispensável para esse resultado, mas é um sustentáculo claro e preciso, adaptado a determinados temperamentos e a determinadas imaginações.
CORPO — CARNE
PHILOKALIA
Gregório do Sinai: 137 sentenças diversas
9. Pois a origem da carne é a corrupção. Comer, evacuar, se enfeitar e dormir, se pavonear e dormir, é naturalmente o próprio das feras e das bestas. Tornados pela desobediência semelhantes às bestas, decaímos dos bens dados por Deus, e que nos eram próprios. De seres de razão, nos tornamos como bestas. De seres divinos, nos tornamos como feras.
PERENIALISTAS
Frithjof Schuon: O ESOTERISMO COMO PRINCÍPIO E COMO VIA
Quem diz homem diz forma; o homem é a ponte entre a forma e a essência, ou entre a “carne” e o “espírito”.
A não ser que se pretenda que sejam cristãs, como se fez quanto às “Dissertações” de [wiki base=”pt”]Epicteto[/wiki], ou a não ser que se conceda à inteligência dita “natural” um papel honroso, como se fez quanto a Aristóteles; neste caso, a “carne” torna-se “natureza”, o que é melhor que nada, mas está sempre abaixo da verdade. Se há uma “sabedoria segundo a carne” é, certamente, e no mais alto grau, este pensamento especificamente moderno em que o irracional passa por supra-racional, matando o racional.
Aliás, para uma perspectiva voluntarista e penitencial, que vê o mal sobretudo na paixão da carne, é grande a tentação de ver a queda no ato sexual; na verdade, é impossível a causa da queda estar numa lei positiva da natureza; ela está unicamente no fato de afastar os bens naturais de sua Fonte divina, de vivê-los fora de Deus e de atribuir a si a sua glória e o seu usufruto.
Certamente, a carne foi amaldiçoada em virtude da perda da graça divina, mas apenas de um determinado ponto de vista, o da descontinuidade existencial e formal e não do ponto de vista da continuidade espiritual e essencial.
A castidade pode ter por finalidade não apenas resistir à influência da carne, mas também, de modo mais profundo, escapar da polaridade dos sexos e reintegrar a unidade do pontifex primordial, do homem como tal. Certamente, ela não é uma condição indispensável para esse resultado, mas é um sustentáculo claro e preciso, adaptado a determinados temperamentos e a determinadas imaginações.
FILOSOFIA
Michel Henry: ENCARNAÇÃO — O CORPO E A CARNE
As significações da palavra carne evoluíram, ao longo dos tempos, no sentido de uma interiorização crescente. A carne é muitas vezes representada pelas Imagens de um São Jerônimo a dilacerar a própria pele com uma pedra, ou pela tentação de Santo Antônio: aparece como uma força diabólica que habita no corpo do homem, o diabo no corpo.
No Antigo Testamento, em contraposição ao espírito, a carne é representada em tua fragilidade com seu caráter transitório; a humanidade é carne e é o divino espírito (pneuma). No Novo Testamento, a carne é associada ao sangue para designar a natureza humana do Cristo e do homem; o antagonismo entre a carne e o espírito exprime o abismo entre a natureza e a graça (João, 6, 23). Não apenas a carne é incapaz de abrir-se aos valores espirituais, como também inclina-se ao pecado. São Paulo mostra o carnal escravizado ao pecado; abandonar-se à carne significa não somente tornar-se passivo, como também introduzir em si mesmo um gérmen de corrupção. O homem encontra-se dilacerado entre a carne e o espírito, despedaçado pela dupla tendência que o anima: de um lado, o desejo sincero de acertar, e de outro, uma vontade ineficaz (Romanos, 7, 14; 8, 8; Gálatas, 5, 13; 6, 8). Com São Paulo, afastamo-nos da tradição judaica, pois como a terminologia modificou-se, os termos já não têm o mesmo conteúdo, e a carne passa a possuir doravante um sentido moral que não lhe era implícito anteriormente; já não se trata somente do corpo ou da humanidade, mas da natureza humana que perdeu sua retidão por causa do pecado original. A carne arrasta para baixo, e disso resulta a necessidade constante de lutar contra as desordens que ela não cessa de produzir.
A doutrina de São Paulo atrairia a atenção dos Padres da Igreja que, segundo a violência ou a moderação de seus respectivos temperamentos, ampliariam o pensamento do apóstolo ou o comentariam comedidamente; ao primeiro grupo pertencem Jerônimo e Tertuliano, ao segundo, Ambrósio e Agostinho. Assim, a carne é considerada como o adversário do espírito, e por isso será julgada como inimigo, um animal indômito e Indomável, constantemente revoltado. Ao desejar exprimir o peso da carne, São Gregório de Nazianzo compara-a a uma massa de chumbo; segundo Ambrósio, Deus não habita nos carnais, e aqueles que se desligam da carne tornam-se comparáveis aos anjos que ignoram as tribulações e a servidão da carne; preservados de pensamentos mundanos, eles pertencem inteiramente às realidades divinas.
O gnosticismo, o montanismo e os maniqueístas haviam exagerado as oposições entre a carne e o espírito; certos Padres da Igreja, justamente ao combater esses diversos movimentos, não escapariam entretanto às tendências que desejavam refutar. As doutrinas estoicas, principalmente, exerceriam profunda influência sobre as oposições denunciadas entre a carne e o espírito.
Os monges do séc. XII extrairiam desta herança seus mais acerbos epítetos; leitores assíduos de Cassiano, através dele reencontrariam elementos surgidos do estoicismo e do neoplatonismo, e poderiam meditar sobre a força e os delitos da carne entregue ao seu próprio peso negativo. As narrativas dos Padres do Deserto, os consuetudines monasticae, as obras dos grandes reformadores seriam para eles documentos adicionais que lhes mostravam os exemplos a seguir e os desempenhos a imitar na ordem ascética. Sua ascese teria por finalidade a de conquistar a liberdade que provém da graça e do espírito a serviço de Deus, e cujo resultado era um enfraquecimento da carne e de suas exigências. Daí a importância que se dava à virgindade que, desde os primeiros séculos cristãos, havia adquirido um nível de excelência, colocando-se imediatamente após o martírio e, aliás, considerada como substituta deste.
Numerosos vícios decorrem da carne, no sentido a que se referiu São João, ao mencionar a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e o orgulho das riquezas (1 João, 2, 16); e isso porque a ela estão associados o demônio e a vida mundana.
Segundo Guillaume de Saint-Thierry, a carne deve ser tratada com sobriedade, pois seus desejos imoderados são opostos às intenções do espírito. Todavia, a carne refloresce quando o espírito se reforma à imagem de Deus; por vezes ela se adianta ao espírito que a guia, deleita-se naquilo que alimenta o espírito, e sua submissão torna-se natural. O homem que é espiritual, e que faz uso de seu corpo de um modo espiritual, merece ver a submissão de sua carne tornar-se natural e espontânea (DAVS, 44, 82, 264).
Para Bernardo de Clairvaux, a carne é o primeiro inimigo da alma; corrompida desde seu nascimento, manifesta-se viciada por seus maus hábitos e obscurece a visão interior. Bernardo costumava pedir a seus noviços que deixassem o corpo à porta do mosteiro, pois somente o espírito é admitido no interior dos claustros. Até quando a carne miserável, insensata, cega, demente e absolutamente desvairada procurará encontrar consolações passageiras e caducas? lemos em seu 6.” sermão sobre o Advento (BF.RA, 2, 172). Entretanto, a carne pode vir a tornar-se uma fiel companheira do espírito. Mas, no pensamento cristão, ela não cessa de provocar a desconfiança. O humanismo apenas atenuaria essa desconfiança, ao tender a baixar as barreiras que separam a carne do espírito, e ao insistir sobre a unidade indissolúvel da natureza humana.
Se, para Hildebert de Lavardin, a carne é uma lama pegajosa, é evidente que livrar-se dessa lama exige um dinamismo do qual poucos homens se mostrariam capazes; a prece, a humildade, a compunção, a nostalgia do reino de Deus são alguns coadjuvantes para a aquisição da paz de coração que resulta de um perfeito domínio da carne. Pouco a pouco, esta se vai sacralizando e participa da luz do espírito. Assim, a alma tem uma prelibação da beatitude celeste, ao mesmo tempo em que prossegue sua peregrinação terrestre. Pois a carne não comporta somente cores noturnas, herdadas do dualismo platônico e exacerbadas no maniqueísmo. A carne assume também um valor de intimidade, não apenas corporal, mas espiritual, intimidade que implica a totalidade do ser humano. Pode-se ser penetrado até mesmo na carne por um sentimento de amor ou de ódio; em linguagem vulgar, penetrado até as tripas. A carne designa, então, o princípio mais profundo da pessoa humana, a sede do coração, entendido no sentido de princípio e de ação. Dar-vos-ei um coração novo, porei no vosso Intimo um espirito novo, tirarei do vosso peito o coração de pedra e vos darei um coração de carne (Ezequiel, 36, 26). O cristianismo traz até mesmo uma promessa de “ressurreição da carne”, manifestando, assim, que é o homem total que retorna à vida. Por acaso o Cristo não é o Verbo feito carne? E isso leva Paul Valéry a dizer que nenhuma outra religião jamais exaltou tanto a carne. (DS)