emoção

(gr. pathos; lat. affectus ou passio; in. Emotion; fr. Emotion; al. Affekt; it. Emozioné).

Em geral, entende-se por esse nome qualquer estado, movimento ou condição que provoque no animal ou no homem a percepção do valor (alcance ou importância) que determinada situação tem para sua vida, suas necessidades, seus interesses. Nesse sentido, no dizer de Aristóteles (Et. Nic, II, 4. 1105 b 21), a emoção é toda afeição da alma, acompanhada pelo prazer ou pela dor: sendo o prazer e a dor a percepção do valor que o fato ou a situação a que se refere a afeição tem para a vida ou para as necessidades do animal. Desse modo, as emoções podem ser consideradas reações imediatas do ser vivo a uma situação favorável ou desfavorável: imediata, porque condensada e, por assim dizer, resumida no tom do sentimento, (agradável ou dolorosa), que basta para pôr o ser vivo em estado de alarme e para dispô-lo a enfrentar a situação com os meios de que dispõe.

A primeira teoria das emoções nesse sentido talvez tenha sido a enunciada por Platão em Filebo, ocorre a dor quando a proporção ou a harmonia dos elementos que compõem o ser vivo é ameaçada ou comprometida; tem-se o prazer quando essa proporção ou harmonia se restabelece (17, 31 d, 32 a). Aristóteles, por sua vez, ao considerar o prazer vinculado à atuação de um hábito ou de um desejo natural (Et. Nic, VII, 13, 1153 a 14), atribuiu-lhe a mesma função de restituição ou restabelecimento de uma condição natural e, consequentemente, considerou doloroso o que afasta violentamente da condição natural e é, por isso, contrário à necessidade e aos desejos do ser vivo (Ret, I, 11, 1369 b 33). Foi precisamente desse ponto de vista que no II livro da Retórica, Aristóteles fez uma das análises mais interessantes da história da filosofia sobre a emoção Veja-se, p. ex., o que ele diz sobre o medo (Ret., II, 5, 1382 a 20 ss.): “O medo é uma dor ou uma agitação produzida pela perspectiva de um mal futuro, que seja capaz de produzir morte ou dor”. De fato, observa Aristóteles, nem todos os males são temidos, mas só os que podem produzir grandes dores e destruições e mesmo estes só no caso de não estarem distantes demais, mas de parecerem próximos címinentes. De fato, os homens não temem as coisas muito distantes: todos sabem que devem morrer, mas enquanto a morte não se aproxima não se preocupam com ela. O medo também é reduzido ou eliminado por condições que tornam os males menos temíveis ou os fazem parecer inexistentes. Por isso, muitas vezes a riqueza, a força, o poder e a abundância de amigos fazem que os homens descuidem-se dos males, tornando-se audazes e desdenhosos. Dessa análise emerge claramente o conceito de emoção como “índice” de uma situação, ou melhor, do valor que ela tem para a existência do homem.

Para Platão e Aristóteles, as emoções têm significado porque têm uma função na economia da existência humana no mundo. Para os estoicos, porém, elas não têm significado nem função. Sob esse aspecto, a doutrina estoica é a mais típica e radical entre as que negam o significado das emoções. Seu fundamento é que a natureza proveu de modo perfeito à conservação e ao bem dos seres vivos, dando aos animais o instinto e ao homem a razão. As emoções, porém, não são provocadas por nenhuma força natural: são opiniões ou juízos ditados por leviandade, portanto fenômenos de estupidez e de ignorância que consistem em “achar que se sabe o que não se sabe” (Cícero, Tusc., IV, 26). Os estoicos distinguiam quatro emoções fundamentais, duas das quais tinham origem em bens presumidos (desejo de bens futuros e alegria pelos bens presentes); e duas, em males presumidos (temor de males futuros e aflição pelos males presentes). A três dessas emoções, mais precisamente ao desejo, à alegria e ao temor, correspondiam três estados normais, próprios do sábio, que são, respectivamente, vontade, alegria e precaução, três estados de calma e de equilíbrio racional. Mas, no sábio, nenhum estado corresponde à aflição do néscio, que é sentida por males presumidos e deve-se à falta de obediência à razão. A essas quatro emoções fundamentais os estoicos reduziam as outras, consideradas igualmente doenças ou enfermidades (ou seja, doenças crônicas) e capazes de gerar outras emoções de aversão e de desejo (Ibid., IV, 24). O pressuposto dessa análise é a tese da perfeita racionalidade do mundo. O homem sábio só pode tomar consciência dela e viver de acordo com ela, “viver segundo a razão”. O mundo, como ordenação racional perfeita, nada tem que pos-sa afligir ou ameaçar o sábio, que é o ser racionalmente perfeito: portanto, a aflição ou o temor, assim como o desejo e o prazer, provêm simplesmente de ver no mundo algo que não existe e que não pode existir: um bem que esteja além da razão ou um mal que possa ameaçar a razão. Portanto, as emoções não passam de juízos errados, opiniões vazias e desprovidas de sentido. O sábio está imune a elas pelo fato mesmo de ser sábio, de viver segundo a razão; e entre o sábio e o estulto, que é vítima dessas falsas opiniões, nãomeio termo nem transição (Cícero, Definibus, III, 48).

Para S. Agostinho, o ideal estoico da apatia parece desumano e irrealizável. “Não experimentar a menor perturbação enquanto se vive neste lugar de miséria”, diz ele, “só pode ser fruto de grande dureza de alma e de grande entorpecimento do corpo” (De civ. Dei, XTV, 9). S. Agostinho frisa o caráter ativo e responsável das emoções: “A vontade está em todos os movimentos da alma, ou melhor, todos os movimentos da alma não são mais que vontade. O que é, de fato, a cupidez ou o contentamento senão vontade consciente com as coisas desejadas? E o que é o medo e a tristeza senão vontade que repudia coisas não desejadas? Segundo a diversidade das coisas desejadas ou evitadas, a vontade humana, ao permanecer atraída por elas, ou ao rejeitá-las, transforma-se nesta ou naquela emoção” (Ibid., XIV, 6).

Tomás de Aquino restabelece o conceito de emoção como afeição, como modificação sofrida, relacionan-do-a com o aspecto da alma no qual ela é potencialidade e pode receber ou sofrer uma ação (S. Th., II, I, q. 22, a. 1). Em particular, as emoções pertencem mais à parte apetitiva da alma do que à apreensiva (embora se achem também nesta); especificamente, mais ao apetite sensível do que ao apetite espiritual, já que costumam estar unidas a mudanças físicas (Ibid., q. 22, a. 2-3). Importante é a distinção que Tomás de Aquino introduz entre as emoções referentes à parte concupiscível e as que se referem à parte irascí-vel. A faculdade concupiscível tem por objeto o bem ou o mal sensível enquanto agradável ou doloroso. Mas, assim como às vezes deparamos com dificuldades ou conflitos ao buscarmos o bem ou evitarmos o mal, também o bem ou o mal, quando difíceis de conseguir ou de evitar, são objeto da faculdade irascível. Portanto, as emoções que concernem ao bem e ao mal tomados em si pertencem à faculdade concupiscível (p. ex., alegria, tristeza, amor, ódio, etc), enquanto as emoções que se referem ao bem ou ao mal enquanto difíceis de conseguir ou de evitar pertencem à faculdade irascível (p. ex., audácia, temor, esperança, desespero, etc.) (Ibid., q. 23, a. 1). As emoções que pertencem à parte concupiscível referem-se à ordo executio-nis, ou seja, ao movimento com que se realiza a consecução de um bem ou o afastamen-

to de um mal; as pertencentes à parte irascível servem de mediadoras à consecução das emoções concupiscíveis, ou seja, condicionam sua realização (Ibid., q. 25, a. 1). O significado dessa distinção é que, em um mundo sub ratione ardui, em que é difícil conseguir o bem e evitar o mal, a previsão do bem ou do mal e o esforço para obter o primeiro e evitar o segundo servem de trâmite às outras emoções.

Esses reparos têm o objetivo de garantir o significado e a “seriedade” das emoções humanas, evidenciando sua função na economia da vida humana no mundo. È significativo que o mesmo intuito se encontre nas análises naturalistas das emoções, feitas nos sécs. XVI e XVII, que, como é óbvio, partem de formulações metafísicas e metodológicas completamente diferentes. Assim, Telésio reconhece claramente a função biológica do prazer e da dor, os dois pólos da experiência emotiva. Causam dor ao corpo e ao espírito vital as coisas que, dotadas de forças prepotentes e contrárias, afastam-nos de sua disposição e os corrompem; ao contrário, causam prazer as coisas que, dotadas de forças semelhantes e afins, os favorecem, os vivificam e lhes restituem a sua própria disposição, se estiverem afastados dela (De rer. nat., VII, 3). Assim, as emoções nascem da difícil situação em que o espírito vital e o corpo se encontram no mundo. O espírito, na verdade, está situado em lugar estranho e em meio a acontecimentos adversos, dos quais o corpo não chega a protegê-lo a ponto de evitar que se canse ou enfraqueça; e o próprio corpo, que lhe serve de revestimento e de proteção, é continuamente modificado e corrompido não só por forças ambientais, mas também por seu próprio calor, de tal modo que em pouco tempo pereceria se não se restaurasse com o alimento. Nessa situação, para poder sobreviver, o espírito vital precisa perceber e entender as forças de todas as outras coisas, desejar e perseguir as coisas que lhe deem o meio e a faculdade de proteger-se do calor e do frio demasiados, bem como de nutrir-se e refazer-se, e que o comovam e o levem à sua nova atuação. Também é preciso que sinta prazer quando essas coisas estão à sua disposição e que ame e venere as coisas que as proporcionam, ao mesmo tempo que se entristeça quando elas lhe faltem e odeie e deseje destruir aqueles que procurem privá-lo delas (Ibid., IX, 3). Desse modo, são geradas as emoções fundamentais, amor e ódio, que têm origem, portanto, na situação em que o espírito do homem se encontra no mundo natural. Essa situação explica também as outras emoções, em virtude das quais o homem está ligado aos seus semelhantes. Com efeito, o homem é levado à convivência não só para atender às necessidades que não poderia satisfazer sozinho, mas também pela tendência a gozar da companhia de seus semelhantes; essa tendência impele-o para as relações sociais e para o desejo de familiaridade e benevolência. Tais relações determinam, portanto, outro grupo de emoção, como temor, dor, prazer e satisfação, inerentes ao comportamento recíproco dos homens. Enfim, um terceiro grupo de emoção nasce da sensação de orgulho e satisfação que o espírito experimenta ao sentir-se íntegro e puro, e ao reconhecer nos outros a integridade e a pureza que deseja para si mesmo. Determina-se assim o sentimento de honra e o seu contrário, o desprezo, bem como outros semelhantes: todos referentes à situação natural do espírito humano no mundo (Ibid., IX, 3).

Muito próxima dessa análise de Telésio está a de Hobbes, que situava as emoções entre as quatro faculdades humanas fundamentais, ao lado da força física, da experiência e da razão (De eive, I, 1). Hobbes relaciona as emoções com os “princípios invisíveis do movimento do corpo humano” que precedem as ações visíveis e costumam ser chamados de tendências (conatus). As tendências chamam-se desejos, apetites ou aversões, em relação aos objetos que as produzem, e como tais são os constituintes de todas as emoções humanas. De fato, o que os homens desejam também se diz que amam, e o que evitam se diz que odeiam; de tal modo que desejo e amor, aversão e ódio são a mesma coisa com a diferença de que as palavrasdesejo” e “aversão” implicam a ausência do objeto, ao passo que as palavras “ódio” e “amor” implicam sua presença. Aquilo, porém, que não se deseja nem se odeia, diz-se que se desdenha; assim, o desdém é uma espécie de imobilidade do coração, uma refratariedade a sofrer a ação de certas coisas. O tom agradável ou doloroso de uma emoção garante sua função vital. “O movimento chamado apetite”, diz Hobbes, “e, em sua aparência, deleite ou prazer, parece um reforço e um auxílio ao movimento vital; portanto não é com im-propriedade que se chamam de jucunda (de juvando) as coisas que dão prazer, porque ajudam e fortificam; ao passo que chamamos de molestas as coisas nocivas porque impedem e perturbam o movimento vital” (Leviath., I, 6). O prazer ou deleite, portanto, é o sentido do bem.- o enfado ou desprazer, o sentido do mal. E todo apetite, desejo ou amor é acompanha do por um prazer maior ou menor, como todo ódio ou aversão é acompanhado por uma dor maior ou menor. Assim entendidas, as emoções controlam toda a conduta do homem: a própria vontade, para Hobbes, não passa de “último apetite ou última aversão aderente à ação ou à omissão”, e a deliberação que precede a vontade não passa de “soma de desejos, versões, esperanças ou temores”. Essa é a primeira vez que se reconhece a função determinante das emoções sobre a totalidade da conduta humana.

Embora Descartes compartilhe do ponto de vista estoico, de que a força da alma consiste em vencer as emoções e deter os movimentos do corpo que a acompanham, enquanto a sua fraqueza consiste em deixar-se dominar por elas, de tal modo que é puxada para todos os lados, sendo levada a lutar contra si mesma, a teoria das emoções que ele expõe em Paixões da alma tem as mesmas características fundamentais das teorias de Telésio e de Hobbes. Segundo Descartes, as emoções são as afeições, ou seja, as modificações passivas causadas na alma pelo movimento dos espíritos vitais, das forças mecânicas que agem no corpo (Pass. de l’âme, I, 27). Essa ação dos espíritos sobre o corpo é mediada pela glândula pineal, onde, segundo Descartes, reside a alma, sendo, portanto, também a sede das emoções (Ibid., 34). A função natural das emoções é incitar a alma a permitir as ações que servem para conservar o corpo ou para torná-lo mais perfeito, contribuindo com elas. Por isso, a tristeza e a alegria são as duas emoções fundamentais. Graças à primeira, a alma adverte das coisas que prejudicam o corpo e por isso sente ódio pelo que lhe causa tristeza e desejo de livrar-se. Graças à alegria, ao contrário, a alma adverte das coisas úteis ao corpo e, assim, sente amor por elas e desejo de adquiri-las e de conservá-las (Ibid., 137). Obviamente tudo isso supõe a separação entre alma e corpo, ou seja, a noção de alma como “substânciaindependente, visto que reduz a emoção a uma preocupação da alma em relação ao corpo, à vida e à conservação deste. Segundo Descartes, a diferença entre as emoções não provém da diferença entre os objetos, mas dos diferentes modos pelos quais os objetos nos prejudicam, nos ajudam ou, em geral, têm importância para nós. O modo de ação habitual das emoções consiste em dispor a alma a desejar as coisas que a natureza nos faz sentir úteis e a persistir nesse desejo, além de produzir a excitação dos espíritos vitais que facilita os movimentos corpóreos úteis à consecução dessas coisas (Ibid., 52). Para Descartes, há só seis emoções simples e primitivas: admiração, amor, ódio, desejo, alegria e tristeza; todas as outras são compostas por essas seis ou são espécies delas. Ele rejeita a distinção tomista entre paixões pertencentes à parte concupiscível e paixões não pertencentes à parte concupiscível (Ibid., 68); o estranho é que nem o temor nem a esperança são admitidos no rol das emoções fundamentais. Entretanto, nele está incluída a admiração, que é “a súbita surpresa da alma, que a impele a considerar com atenção os objetos que lhe pareçam raros e extraordinários” (Ibid., 70). Essa é a única emoção não acompanhada de movimentos corpóreos, porque não tem como objeto o bem e o mal, mas só o conhecimento da coisa que causa admiração. O que não significa que é desprovida de força, pois a surpresa da novidade, típica dessa emoção, reforça enormemente todas as outras (Ibid., 72).

Se para Descartes a emoção diz respeito à alma só em termos de sua relação com o corpo, para Spinoza ela é um modo de ser total que envolve alma e corpo, que são dois aspectos de uma única realidade. Segundo Spinoza, as emoções derivam do esforço (conatus) da mente em perse-verar no próprio ser por um período indefinido. Esse esforço chama-se vontade quando se refere só à mente: chama-se desejo (appeti-tus) quando se refere à mente e ao corpo (Et., III, 9 e, scol.). O desejo é assim a emoção fundamental. A ele estão ligadas as outras duas emoções primárias, alegria e dor; a alegria é a emoção graças à qual a mente, sozinha ou unida ao corpo, eleva-se para uma perfeição maior; e a dor é a emoção graças à qual a mente desce para uma perfeição menor (Ibid., III, 11, scol.). O amor e o ódio são, apenas a alegria e a dor acompanhadas da ideia de suas causas externas; assim, quem ama esforça-se necessariamente por manter consigo e conservar a coisa amada, e quem odeia esforça-se por afastar e destruir a coisa odiada (Ibid., III, 13, schol.). Nessas observações, as emoções são vinculadas ao esforço da mente e do corpo para a perfeição; na verdade, para Spinoza corpo e mente são duas manifestações da Substância, são eternas como a Substância; portanto, não podem ser realmente ameaçados por nada, de tal sorte que as emoções não podem ser a advertência dessa ameaça. Donde o pouco peso que o medo e a esperança têm na análise de

Spinoza. Ambas as emoções são relacionadas com o amor e ódio (Ibid., III, 18, scol. 2) e atribuídas a “causas acidentais” (Ibid, III, 50). De resto, todas as emoções, enquanto afeições ou modificações passivas (passiones), estão destinadas a desaparecer como tais, pois são ideias confusas destinadas a tornar-se ideias distintas; uma vez ideias distintas, deixam de ser afeições (Ibid., V, 3) para tornar-se ideias sub specie aeternitatis, na ordem geométrica da Substância divina. São, então, determinações da natureza divina e dela derivam (Ibid., V, 29, scol.).

Esse ponto de vista coincide substancialmente com o dos estoicos, visto resolver-se em negara função das emoções na economia da vida humana no mundo. E a mesma negação está implícita na doutrina de Leibniz, que vê nas emoções somente sinais de imperfeição que impedem a alma de ser um Deus: “Tem-se razão em chamar, como os antigos, de perturbações ou paixões aquilo que consiste em pensamentos confusos que têm algo de involuntário e de incógnito-, o que, na linguagem comum, atribui-se não sem razão à luta do corpo e do espírito, porque os nossos pensamentos confusos representam o corpo ou a carne e fazem nossa imperfeição” (Op., ed. Erdmann, 1, p. 188). Essa noção das emoções como “pensamentos confusos” que, para a alma, derivam de sua relação com o corpo, constituindo, portanto, a imperfeição do espírito criado finito, foi adotada por toda a escola de Leibniz e Wolff. Essa noção obviamente implica que as emoções não têm caráter próprio e específico se comparadas com as representações cognitivas: portanto, não têm sequer significado, a não ser representar a imperfeição da alma humana.

Uma linha de pensamento que vai de Pascal aos moralistas franceses e ingleses (La Roche-foucauld, Vauvenargues, Shaftesbury, Butler), até Rousseau e Kant, levou ao reconhecimento da categoriasentimento” como princípio autônomo de emoção e à elaboração da noção moderna de “paixão” como emoção dominante, capaz de penetrar e controlar toda a personalidade humana. Já se viu que para Hobbes todas as formas da ação voluntária passam pelas emoções e são determinadas por elas: a própria vontade é apenas uma emoção que consegue prevalecer. Essa tese é compartilhada por toda a corrente a que aludimos. Pascal foi o primeiro a dar primazia “às razões do coração, que a razão não conhece” (Pensées, 277); insistiu no valor e na função do “sentimento” como um princípio em si, que também é fonte de conhecimentos específicos; e julgou impossível eliminar o conflito entre razão e emoção, sendo em todo caso impossível solucionar esse conflito eliminando uma das partes dele (Ibid, 412-13). Vauvenargues delineou assim a natureza das emoções: “Extraímos da experiência do nosso ser a ideia de grandeza, prazer e poder, que gostaríamos de aumentar sempre: e haurimos na imperfeição de nosso ser a ideia de pequenez, sujeição e miséria que procuramos reprimir: aí estão todas as nossas paixões… Desses dois sentimentos unidos, ou seja, o de nossa força e o de nossa miséria, nascem as maiores paixões, pois o sentimento das nossas misérias impele-nos a sair de nós mesmos e o sentimento dos nossos recursos encoraja-nos a isso e arrebata-nos de esperança. Mas aqueles que sentem apenas sua própria miséria sem a força nunca se apaixonam bastante, porque nada ousam esperar; tampouco se apaixonam aqueles que sentem sua força sem a impotência, pois têm muito pouco a desejar: é preciso, assim, que haja esperança de coragem, de fraqueza, de tristeza e de presunção” (De l’esprit humain, 22). O pressuposto dessas observações é que não só é impossível compreender a natureza e o comportamento do homem sem levar em conta as emoções, mas também; que as próprias emoções têm função diretiva sobre a totalidade da conduta humana, ou seja, tendem a transformar-se, segundo a expressão de Pascal (Pensées, 106), em “emoções dominantes”. Shaftesbury foi provavelmente quem mais contribuiu para difundir esse ponto de vista em filosofia: “A rigor, não se pode dizer que um animal age, a não ser através das afeições ou das emoções próprias dos animais. De fato, nas convulsões em que uma criatura se fere ou fere outra, o que age é um simples mecanismo, uma máquina, uma peça de relojoaria, não o animal. Tudo o que é feito pelo animal como tal é feito só através de certa afeição ou emoção, como p. ex. o temor, o amor e o ódio que o movem. E assim como é impossível que uma afeição mais fraca prevaleça sobre outra mais forte, também é impossível que, sempre que as afeições ou emoção forem mais fortes e formarem, graças a sua força e a seu número, o lado mais poderoso, o animal não se incline nesse mesmo sentido. Segundo essa balança das emoções, ele deve ser governado e conduzido à ação” (Characteristicks, 1749, Treatise IV, livro II, parte I, seção 3). Em outros termos, segundo Shaftesbury a presença das emoções é o que distingue um animal de um puro e simples mecanismo de tipo cartesiano. A classificação que Shaftesbury dá das emoções (no trecho ora citado) é característica do seu moralismo otimista. Em primeiro lugar, há as afeições naturais, que conduzem ao bem público-, em segundo lugar, as auto-afeições, que conduzem ao bem pessoal; em terceiro lugar, as que não tendem nem ao bem público nem ao pessoal, mas aos seus contrários, e, portanto, devem ser chamadas de afeições inaturais. O conceito em que ele insiste é o da balança ou do equilíbrio das emoções, em virtude do qual fala de uma “economia das emoções” com vistas à conservação das criaturas; assim, p. ex., uma criatura que não possua fortes meios de ataque e de defesa está sujeita a alto grau de temor, que é a emoção que lhe possibilita salvar-se fugindo do perigo.

Kant, que foi o primeiro a introduzir explicitamente a categoria do sentimento como autônoma e mediadora entre as admitidas tradicionalmente (razão e vontade), reconheceu claramente o significado e a função biológica das emoções, embora fosse levado por sua doutrina moral, a simpatizar com a tese dos estoicos, de que elas são doenças da alma. “A emoção”, disse ele, “é tal predomínio das sensações que se produz a supressão do controle da alma (animus sui compôs); portanto, é precipitada, ou seja, cresce rapidamente até tornar impossível a reflexão (Antr., § 74). Nisso é diferente da paixão, que, ao contrário, é lenta e reflexiva. Para Kant o ideal de apatia é “justo e nobre”; mas a natureza foi sábia quando deu ao homem a disposição à simpatia como guia temporário, antes que a razão adquira todas as suas forças, pois assim, ao impulso moral para o bem, acrescentou um estímulo patológico (sensível) como sucedâneo temporário da razão.Portanto, até do ponto de vista moral a emoção tem certa função, ainda que subordinada e provisória. Do ponto de vista biológico, não pairam dúvidas quanto a importância da emoção. A alegria e a tristeza estão respectivamente ligadas ao prazer e à dor: estes têm a função de impelir o sujeito a permanecer na condição em que está ou a deixá-la. A alegria excessiva (não atenuada pela preocupação da dor) e a tristeza extrema (não aliviada por nenhuma esperança), a angústia, são emoções que ameaçam a existência. Mas na maioria da vezes as emoções ajudam e sustentam a existência, e algumas, como o riso e o pranto, ajudam mecanicamente a saúde. A utilidade das emoções decorre da função exercida em face da vida por seu tom fundamental, prazer ou dor. “O prazer”, diz Kant (Antr., § 60), “é o sentido do crescimento da vida; a dor, do impedimento à vida: a vida do animal, como já notaram os médicos, é o antagonismo contínuo entre prazer e dor.” Nesse jogo de antagonismo, a dor tem a primazia. De fato, aquilo que de modo imediato, ou seja, por via do sentido, me impele a abandonar meu modo de ser, é desagradável para mim, aflige-me; o que, ao contrário, me impele a conservá-lo (a permanecer nele) é agradável para mim, apraz-me. Mas como o tempo nos foge, indo sempre do presente para o futuro e não vice-versa, somos obrigados a sair do estado presente sem saber em qual entraremos, sabendo apenas que é um estado diferente. Ora, essa perspectiva é a causa do sentimento agradável, o que significa que ele é precedido e condicionado pelo sentimento de dor vinculado à necessidade de sair do próprio modo de ser. “A dor”, nota também Kant, “é o aguilhão da atividade e é nela que sentimos a vida; sem dor, cessaria a vida”. É estranho que essas observações de Kant, que outra pretensão não tinham senão caracterizar uma situação de fato, tenham sido amplificadas por Schopenhauer, fundamentando seu pessimismo romântico. Viver, para Schopenhauer, significa querer; querer significa desejar; e o desejo implica a ausência do que se deseja, ou seja, deficiência e dor. Por isso, a vida é dor e a vontade de viver é o princípio da dor. Da satisfação do desejo ou da necessidade, surge um novo desejo, outra necessidade ou o tédio da satisfação prolongada. Nessa oscilação, contínua, o prazer representa só um momento de trânsito, negativo e instável: é a simples cessação da dor (Die Welt, I, § 57).

A distinção e a especificação dos conceitos de “emoção”, “sentimento” e “paixão” podem ser vistas no fato de que, na doutrina de Hegel, a paixão recebe tratamento privilegiado, enquanto o sentimento e, sobretudo, a emoção são reduzidos ao nível da “vã opinião” dos estoicos. Hegel fala das emoções a propósito da forma do sentimento, que faz parte do espirito subjetivo, mais precisamente do momento dele que é a “psicologia”; esta “indica em forma de narração o que é espírito ou alma, o que lhe acontece, o que faz” (Enc., 387). O sentimento, diz Hegel, tem forma de “particularidade acidental”; nele o espírito encontra sua “forma íntima e pior, em que já não está livre, como universalidade infinita, mas seu conteúdo está como acidental, subjetivo, particular” (Ibid., 447). Obviamente, com essas expressões, Hegel pretende referir-se às emoções, das quais o sentimento constitui a forma ou categoria universal; e às emoções cabem portanto as qualificações de “particularidade acidental” e “conteúdo acidental, subjetivo, particular”: expressões todas que, na linguagem de Hegel, designam determinações provisórias ou aparentes, que só têm realidade na substância racional. Quanto aos “sentimentos práticos”, só podem ser considerados como tais egoísticos e maus, pois só estes pertencem à individualidade que se mantém contra a universalidade; o conteúdo desses sentimentos, portanto, só é determinado em antítese com o dos direitos e dos deveres (Ibid., 471). As expressões que Hegel emprega a propósito e que parecem referir-se ao conteúdo da forma do sentimento, ou seja, à esfera das emoções, são o equivalente exato da “vã opinião” dos estoicos e do “pensamento confuso” de Spinoza e Leibniz: indicam estados ou momentos que não têm significado próprio, mas só o significado negativo de não serem perfeitamente redutíveis ao juízo, ou, em geral, às determinações racionais.

A partir da segunda metade do séc. XIX, as emoções tornam-se objeto de indagação científica e são consideradas em estreita conexão com os movimentos e os estados corpóreos que as acompanham. A primeira tentativa importante nesse sentido foi de Charles Darwin, em Expressão das emoções no homem e nos animais, de 1872, que também utilizou pesquisas anteriores e assumiu como ponto de partida a distinção de Spencer entre sensações e emoções. Segundo Spencer (Principles of Psichology, 1855, § 66), todas as experiências vividas (feelings) dividem-se em duas classes: sensações, produzidas por um estímulo periférico, e emoções produzidas por um estímulo central. Sensações e emoções distinguem-se sobretudo porque as primeiras são relativamente simples e as segundas são extremamente complexas. Ambas, porém, são mecanismos de adaptação ou de resposta a conjuntos uniformes de circunstâncias externas (Ibid, § 216). Darwin preocupou-se principalmente em estudar os movimentos ou as modificações somáticas que constituem a expressão das emoções. E julgou poder explicá-las mediante três princípios. 1) Princípio dos hábitos úteis e associados, que exprimiu assim: “Quando uma sensação, um desejo, tiver produzido, ao longo de toda uma série de gerações, alguns movimentos voluntários úteis a dar satisfação ou alívio, ter-se-á uma tendência a realizar movimentos semelhantes sempre que essa sensação ou desejo voltar a apresentar-se, mesmo que de forma débil e mesmo que o movimento expressivo não tenha mais nenhuma utilidade. Movimentos dessa espécie são, em geral, herdados e pouco diferem de ações reflexas”. 2) Princípio da antítese, segundo o qual se tem a tendência a realizar movimentos opostos no caso de emoções opostas, ainda que tais movimentos não tenham nenhuma utilidade. 3) Princípio da ação direta do sistema nervoso: quando a sensibilidade é fortemente excitada, o excesso de força nervosa é transmitido em direções definidas que dependem da conexão das células nervosas e, em parte, do hábito, produzindo assim efeitos que reconhecemos como expressões emotivas. Os dois primeiros princípios apelam para a ação do hábito e da associação, à qual recorreu constantemente a psicologia do séc. XIX. Mas a mesma corrente de investigação psicológica, levada a considerar os fatos psíquicos em conexão estreitíssima com os corpóreos, logo levou a ver nos estados somáticos muito mais que a simplesexpressão” das emoções. Em 1884 e 1885, James e Lange, independentemente um do outro, propunham a chamada “teoria somática das emoções”, que, apesar das críticas logo suscitadas, prevaleceu durante muitos decênios e serviu, como ainda serve em parte, de útil ponto de referência para teorias ulteriores. Eis como James expôs essa teoria: “Minha teoria sustenta que as mudanças corpóreas seguem-se imediatamente à percepção do fato excitante e que o sentimento que temos dessas mudanças, enquanto elas se produzem, é a emoção. O senso comum diz: Perdemos a nossa fortuna, ficamos aflitos e choramos; encontramos um urso, temos medo e fugimos; um rival nos insulta, ficamos encoleriza-dos e batemos. A hipótese que defendemos é que essa ordem de sucessão é inexata: que um estado mental não é imediatamente induzido pelo outro, que as manifestações corpóreas devem interpor-se, entre um e outro, e que a fórmula mais racional consiste em dizer: ficamos aflitos porque choramos, irritados porque batemos, assustados porque trememos, e não que choramos, batemos e trememos porque estamos aflitos, irritados ou assustados conforme o caso. Sem os estados corpóreos que se seguem à percepção, esta teria forma puramente cognitiva, pálida, descorada e desprovida de calor emocional. Poderíamos então ver o urso e julgar oportuno fugir, receber o insulto e decidir reagir, mas não sentiríamos realmente medo nem cólera” (The Theory of Emotions, 1884; trad. fr., p. 61). A força dessa teoria está na observação de que, se em caso de alguma emoção violenta, se prescindir de todas as sensações de sintomas físicos, não ficará nenhum resíduo, nenhuma “substância mental” emotiva, mas simplesmente um estado de percepção intelectual. “Não consigo imaginar”, dizia James, “o que sobraria da emoção do medo, se não estivesse presente o sentido da pulsação apressado do coração, da respiração ofegante, do tremor dos lábios, do enfraquecimento das pernas, do arrepio e dos estremecimentos viscerais. Poderia alguém imaginar um estado de raiva sem calor no peito, enrubes-cimento das faces, dilatação das narinas, aperto dos dentes, impulso para a ação violenta, ou seja, um estado de raiva que deixasse os músculos imóveis e relaxados, a respiração tranquila e o rosto plácido? Nesse caso não restaria da emoção mais que um juízo trio e desapaixonado, segundo o qual cada pessoa ou certas pessoas merecem castigo por seus delitos.” Por dois ou três decênios sucessivos, pode-se dizer que os estudos experimentais sobre as emoções foram inspirados nessa teoria. Mas foi precisamente no domínio dos fatos experimentais que ela encontrou as primeiras objeções decisivas. Sherrington demonstrou que a expressão visceral da emoção é posterior à ação cerebral, que ocorre juntamente com o estado psíquico (1908), e Cannon (Feelings and Emotions, 1928) observou que as emoções viscerais ocorrem em muitos estados orgânicos sem que tenham qualquer significado emocional. A febre e a exposição ao ar frio produzem muitas vezes aceleração do coração, aumento do açúcar no sangue, descarga de adrenalina, ereção dos pelos. A asfixia age do mesmo modo no estágio da excitação. A redução do sangue através da insulina provoca uma reação hipoglicêmica caracterizada por palidez, aceleração do coração, acréscimo de açúcar no sangue e suores profusos. Por isso é difícil compreender como reações que em si mesma não têm nenhum valor emotivo na maior parte dos casos em que ocorrem adquiririam, em outros casos, caráter de emoções propriamente ditas. Mas o defeito principal dessa teoria, justamente como “teoria”, é que ela não explica absolutamente a função das emoções. Não explica, p. ex., por que a visão do urso e a constatação de que ele não está empalhado nem acorrentado fazem tremer e empalidecer.

Não explica, em outros termos, o caráter biológico das emoções, seu finalismo, parcial ou relativo embora, mas bastante evidente em certo número de casos. Precisamente por esse prisma, Dewey e a escola psicológica de Chicago (especialmente Stanley Hall), retomando a tentativa de Darwin, consideraram a emoção como a recorrência alterada de certos movimentos teleológicos e a atribuíram a manifestações residuais de instintos ancestrais. Assim, p. ex., os movimentos de agarrar, morder e arranhar, nos estados de cólera, seriam resquícios de atos próprios de animais selvagens, de que descendemos. O movimento de pôr a cabeça para a frente também seria uma recordação ancestral: encontra-se, com efeito, nos animais com chifres e nos primeiros vertebrados aquáticos ou terrestres que utilizaram a cabeça para afastar obstáculos. Sem dúvidas essas teorias reintegram a emoção em sua natureza biológica, mas levam a ver nela nada além do resíduo atualmente não significante de um movimento instintivo originariamente significante. Esse resíduo seria constituído por aquilo que a here-ditariedade deixou sobreviver de movimentos instintivos que tinham significado de ataque ou defesa nos animais que em geral os possuíram, mas que depois deixaram de tê-los. Toda essa teoria está, pois, fundada na hipótese da transmissão hereditária de movimentos instintivos e no postulado de que as emoções derivam mais desses movimentos do que da situação em face da qual assumem significado de reações ou respostas.

A referência a essa situação constitui, no entanto, o traço característico das mais importantes teorias contemporâneas. Para elas, a emoção não se esgota na subjetividade como simplesestado de espírito” ou complexo de estados de espírito, mas sempre inclui uma relação com circunstâncias objetivas, que lhe conferem o seu significado específico. Desse ponto de vista, a emoção é um comportamento ou o elemento de um comportamento que visa a enfrentar a situação ou a fugir dela, resolver o problema que ela apresenta ou a eludi-lo. Pode-se considerar que a psicanálise é o primeiro passo para a interpretação da emoção nesse sentido: ela evidenciou o significado dos fatos psíquicos em relação às situações que os determinaram. Na angústia, p. ex., Freud vê em primeiro lugar a preparação para enfrentar o perigo, que se manifesta pela

exaltação da atenção sensorial e da tensão motora. Esse estado de expectativa ou de preparação é biologicamente útil, pois sem ele o indivíduo estaria exposto a consequências graves. Dele derivam, por um lado, a ação motora, a fuga e, em grau superior, a defesa ativa; por outro lado, o que se sente como estado de angústia. Se o desenvolvimento da angústia for contido em limites estreitos, ele não passará de apêndice, de simples sinal de perigo, e todo o processo de transformação do estado de preparação angustioso em ação ocorre rápida e racionalmente. Quando, ao contrário, o desenvolvimento do estado de angústia ultrapassa certos limites, torna-se contrário ao objetivo biológico e dá lugar às formas patológicas. Freud também julga que a situação cujo sinal é a angústia e, em geral, um estado afetivo pode não ser um acontecimento presente: pode tratar-se de uma impressão profunda ou oculta, pertencente à pré-historia, não do indivíduo, mas da espécie. Assim, pode-se dizer que o estado afetivo apresenta a mesma estrutura de uma crise de histeria, visto ser, como esta última, constituído por uma reminiscência inconsciente. A crise de histeria pode ser comparada a um estado afetivo individual recém-formado, e o estado afetivo normal pode ser considerado a expressão de uma histeria genérica, que se tornou hereditária (Einführung in die Psychoanalyse, 1917, cap. 24; trad. fr., pp. 422-23). Em outros termos, tem-se conduta emotiva sempre que a emoção, em vez de transformar-se rapidamente de preparação em ação, na ação efetiva, desenvolve-se como emoção, agindo como inibição, recusa ou censura da própria ação. Nesse sentido explica-se a sua analogia com a histeria, que é, frequentemente a recusa de reviver uma recordação desagradável. Assim como o sonho às vezes é uma fuga diante da decisão a tomar, assim como a doença de certas moças às vezes é uma fuga diante do casamento, também a cólera é habitualmente a fuga diante de uma situação desagradável e o desmaio por medo é a fuga diante de uma perspectiva desfavorável, a procura de um refúgio ilusório.

Em sentido análogo, Janet caracterizou a emoção como a “reação do fracasso”. Para Janet, a emoção é a regressão brutal para uma forma de conduta inferior, menos adaptada à situação e incapaz de enfrentá-la. Como o comportamento psíquico mais elementar é a agitação convulsiva acompanhada por modificações das funções respiratória e circulatória, quando suficientemente profunda, a emoção dá início a convulsões ou simples modificações viscerais. Não se trata, porém, de uma regressão simplesmente mecânica: um idiota não experimentaria nenhuma emoção ao deparar com o urso de que falava James, e muitos doentes em “estado de apatia” deixam de sentir as emoções que teriam sentido outrora nas mesmas circunstâncias. Trata-se, portanto, de uma reação ativa, de uma forma de regulamento da ação cujo ponto de partida é a reação do indivíduo. Mas trata-se também de uma reação inferior e desordenada que denuncia a recusa e a incapacidade de enfrentar uma situação: equivale, por isso, à consciência do fracasso diante de tal situação. Exemplo disso é a jovem que ouve o pai dizer que tem dor no braço e que teme uma paralisia, e começa a chorar, a gritar, e a agitar-se, entrando em convulsões, que se repetem alguns dias depois. Durante o tratamento médico, confessa que a ideia de cuidar do pai e de levar vida de enfermeira doméstica parecera-lhe insuportável. Nesse caso, a emoção representa efetivamente uma conduta de fracasso, derivada da incapacidade de enfrentar a situação em perspectiva (De l’angoisse à l’extase, 1928, pp. 450 ss.). Por outro lado, os estados afetivos de elação e alegria constituem, segundo Janet, reações de êxito, ainda que não justificadas. A alegria nem sempre é correta e nem sempre corresponde a um aumento real das faculdades, a uma criação real, como os filósofos consideraram. Ela pode ser equivocada e aparece simplesmente quando o homem se comporta como se fosse vitorioso e quando esse comportamento de triunfo, verdadeiro ou falso, liberta forças que são bem ou mal utilizadas. Portanto, é principalmente um comportamento de esbanjamento, no qual as forças que tinham sido utilizadas na ação, ou pelo menos seus resíduos, expandem-se pelo organismo e são empregadas em outras ações não solicitadas por estímulos urgentes ou que já se desenvolviam em limites restritos Ubid., p. 408).

Desse ponto de vista, a emoção mostra-se nociva porque suprime a ação eficaz e a substitui por convulsões absurdas. Contudo, segundo Janet, tem certa utilidade ou pelo menos certa função, porquanto seu sujeito, na impossibilidade de responder à situação com uma reação de ordem superior, entrega-se a uma reação inferior e primitiva, muito mais grosseira, porém capaz de dar-lhe certa proteção imediata. “Os comportamentos reflexos, as simples convulsões desordenadas, serviram a gerações inteiras de seres para afastar os contatos nocivos e para conseguir alimento. Não será natural que, em certa época, os seres em vias de aperfeiçoamento, mas ainda incapazes de utilizar de modo constante os procedimentos aperfeiçoados, voltem instintivamente a esses atos primitivos?” (Ibid., p. 471). Mas se a emoção propriamente dita, ou seja, o choque emocional, é a regressão a uma forma grosseira e primitiva de reação, o sentimento é a forma de emoção mais bem organizada e menos violenta que acompanha todo o desenvolvimento da ação sob forma de esforço, fadiga, tristeza, alegria. O sentimento é parte essencial da reação bem organizada. A emoção contém confusamente elementos que pertencem aos sentimentos, mas os contém em desordem, não se identificando por isso com nenhum dos comportamentos sentimentais. “São os incidentes insignificantes, as pequenas discordâncias, que conduzem às grandes perturbações emocionais. É provável que o perigo real desperte o instinto vital, o amor pelos seres caros, o amor pela propriedade, e que essas tendências poderosas venham em socorro do ato falho, produzindo a reação do esforço: a presença dessa reação elimina a da emoção, que não é do mesmo gênero” (Les obsessions et la psychasténie, I, pág. 5, 578). Todavia, entre as emoções e os sentimentos, que são as suas formas superiores, devem ser admitidos todos os graus intermediários; no fundo, trata-se de uma questão de palavras: já que “empregamos a palavra emoção sempre que há uma mudança brusca da conduta após uma circunstância imprevista, mas todos os sentimentos podem nascer nessas condições” (De l’angoisse, p. 474).

A psicologia da forma tornou mais precisa e aperfeiçoada, principalmente com Lewin e Dembo, a teoria das emoções nesse sentido. A emoção é interpretada como a “ruptura de uma forma” e a reconstituição de uma outra forma que valha como sucedâneo da primeira. A forma é certa situação que oferece um problema, cuja solução pode ser encontrada tão-somente em determinada direção. Quando a procura e o esforço voltados para essa solução se interrompem, o indivíduo refugia-se em atos sucedâneos ou então procura evadir-se ou encerrar-se em si mesmo, estabelecendo entre si e o campo hostil uma barreira de proteção. Atos sucedâneos, evasões, fechamento em si mesmo, esses são os comportamentos emotivos. Destroem a estrutura diferencial do problema inerente ao campo situacional e, por isso, produzem o enfraquecimento da distinção entre real e irreal, com a consequência de que os objetos do campo perdem o seu valor próprio e adquirem caráter uniformemente negativo. P. ex., a cólera é um modo de fugir de um problema que não se sabe resolver, recorrendo a uma ação de natureza inferior: aquele que está en-colerizado assemelha-se ao homem que, não podendo desfazer os nós das cordas que o atam, agita-se convulsamente em seus laços. Na falta de uma solução adequada para o problema que a situação apresenta, a cólera procura um sucedâneo, uma evasão, em movimentos desordenados que mascaram a falta da resposta adequada (Guillaume, Psych. de la forme, pp. 138 ss.).

As teorias que acabamos de examinar são “psicológicas”, no sentido de que se apresentam como generalizações científicas fundadas em uma rica messe de observações de casos normais e patológicos (servindo estes ainda melhor do que os primeiros para ilustrar o fenômeno em questão). Todavia, hoje as teorias filosóficas não se afastam muito das psicológicas, pois umas e outras são levadas a considerar os fenômenos emotivos (como também os outros fenômenos mentais) não como a resultante de elementos atomisticamente considerados, mas na sua totalidade, na forma complexa e concreta, portanto, na situação global em que têm origem. Ademais, as teorias psicológicas e filosóficas concordam em considerar as emoções como formas de comportamento específico, que exprimem um modo de ser fundamental do homem. Scheler, que é o filósofo contemporâneo mais interessado na vida emotiva e que procurou fundar, numa análise apropriada desta, toda a sua filosofia, parte da distinção entre esteios emotivos e funções emotivas; essa distinção pode ser expressa dizendo que os estados são afeições (modificações de natureza passiva) e as funções, ao contrário, são atividades, reações aos estados emotivos. Segundo Scheler, os estados emotivos não têm, por si mesmos, caráter intencional, ou seja, não se referem imediatamente a objetos ou situações. Essa referência é sempre indireta, mediada por uma associação perceptiva ou representativa. P. ex., se me pergunto: “Por que hoje estou com este humor? O que” causou em mim esta tristeza ou esta alegria?”, a resposta a tal pergunta não é dada pelo estado emocional em que me encontro (humor, tristeza, alegria, etc), mas por um ato diferente e independente, no qual vinculo, com base na experiência ou no raciocínio, a emoção com objetos ou situações conhecidas. Em certos casos, o estado emotivo pode tornar-se um signo do objeto ou da situação, como quando certas dores anunciam o início de uma doença. Mas a relação simbólica entre o estado emotivo e seus objetos é sempre mediada pela experiência e pelo pensamento. O estado emotivo, em outros termos, pode estar ligado a uma situação de fato ou simbolizá-la, mas não contém em si a referência intencional a um objeto seu (Der Formalismus in der Ethik, pp. 262 ss.). A diversidade entre estados emotivos e funções emotivas não impede que eles possam coexistir no mesmo ato ou momento de consciência. Um homem pode ser feliz e, no entanto, sofrer de um mal físico; poderia até acontecer, p. ex., que para um verdadeiro mártir da este sofrimento se tornasse um sofrimento feliz; pode até acontecer que, desesperados na fundo da alma, sintamos de um prazer sensível, que, aliás, o gozemos em nosso íntimo. Estados e funções, porém, não se misturam porque são dados e vividos de maneira diferente. Essa é a diferença que muitos psicólogos contemporâneos estabelecem entre emoções e sentimentos, entendendo por estes últimos os comportamentos emotivos superiores, que acompanham a ação em vez de bloqueá-la e que portanto se diferenciam do choque emocional (que dá lugar às neuroses). Para Scheler, trata-se sobretudo de uma diferença de profundidade, desse ponto de vista, podem distinguir-se quatro graus de emoções, que correspondem à estrutura da existência humana. São: 1) emoções sensíveis; 2) emoções corpóreas (estados) e sentimentos vitais (funções); 3) sentimentos psíquicos (sentimentos do eu); 4) sentimentos espirituais (sentimentos da personalidade). Todas essas emoções fazem referência à vivência do eu ou da pessoa; mas a referência é diferente para cada uma das quatro espécies mencionadas, tornando-se mais intrínseca à medida que se consideram sentimentos superiores. As emoções sensíveis e as vitais tornam-se estados ou funções do eu só quando penetramos os dados corpóreos e apreendemos o corpo como nosso, ou seja, como pertencente ao seu eu psíquico. Os sentimentos psíquicos, ao contrário, já são, originariamente, uma qualidade do eu. “Sentir-se triste” ou, mais ainda, “ser triste” é algo de muito mais intrínseco ao eu do que o sentimento vital de bemestar ou de malestar. Enfim, os sentimentos espirituais identificam-se com o eu no sentido de que não podem constituir estados distintos dele. Na bem-aventurança e no desespero, aliás, já na serenidade e na paz de espírito, qualquer estado particular do eu é como que anulado, pois esses sentimentos parecem brotar da própria fonte do ato espiritual e penetrar tudo o que nesses dados é dado do mundo interno e externo (Ibid., pp. 355 ss.). Scheler considera o sentimento assim entendido como um ato intencional (v. intenção) cujo objeto específico é o valor, e distingue, portanto, quatro espécies de valores correspondentes aos quatro graus do sentimento. O importante na doutrina de Scheler é que o valor constitui o objeto próprio da emoção, ou pelo menos das funções emotivas, e é considerado uma realidade específica, irredutível às realidades percebidas ou conhecidas e de natureza absoluta. Doutrina análoga é exposta por. Nicolai Hartmann, segundo a qual os valores se dão a priori no sentimento axiológico (Wertgefühl), que é o fenômeno autêntico da moralidade (Ethik, 1926, 3a ed., 1949, pp. 118 ss.) (v. sentimento). Mas seja qual for a apreciação que se faça de tais lucubrações metafísicas pode-se admitir que a emoção consiste na percepção de um valor, ou seja, da forma específica que uma situação apresenta em relação às necessidades, aos interesses e aos fins do homem, sem lançar mão de qualquer metafísica, visto que isso exprime bem os resultados das pesquisas psicológicas a respeito.

A importância do sentimento como característica essencial da existência humana no mundo, como parte da própria substância do homem, é ressaltada por Heidegger. Ele não vê as emoções como simples fenômenos que acompanham os atos de conhecimento e de vontade, mas como modos de ser fundamentais da existência na medida em que é uma existência no mundo, ou, como ele diz, um Dasein. Analisa a propósito o fenômeno do medo, que julga constitutivo da existência inautêntica, isto é, da existência “lançada no mundo” e abandonada às vícissitudes deste. Como tal, o medo não é um fenômeno temporal parcial, mas um modo de ser essencial e permanente. “Só um ente no qual, em sendo, está em jogo seu próprio ser pode ter medo. O temer abre esse ente ao risco, ao estar entregue a si mesmo” (Sein und Zeit, § 30). Correspondente ao medo, mas no plano da existência autêntica, que não se entrega ao mundo e às suas vícissitudes, mas procura compreendê-lo na totalidade, é a outra situação afetiva fundamental, a angústia. Tem-se medo de algo que está dentro do mundo, que se aproxima ameaçadoramente e que pode ser removido, ao passo que a angústia só pode ser sentida diante do mundo como tal. Ela não é provocada, como o medo, por um fato particular ou por um acontecimento ameaçador, mas pelo simples estar no mundo, pela situação originária e fundamental da existência humana. E, como, justamente devido a essa situação, o homem tem de lidar com fatos ou acontecimentos que a qualquer momento podem revelar-se ameaçadores, o medo pode ser considerado “uma angústia caída no mundo, inautêntica e oculta a si mesma”. A angústia é, por isso, a situação emotiva fundamental, a que “abre primariamente o mundo enquanto mundo”. Como situação emotiva, a angústia não é só angústia em face de… mas é também angústia por… E assim como o em face de… também o por… refere-se ao ser no mundo como tal. Em outros termos, a angústia não é tal em face de determinado modo de ser ou de determinada possibilidade humana. A ameaça que ela anuncia é indeterminada e não pode penetrar, ameaçando, nesta ou naquela possibilidade concreta e efetiva. Ao contrário, é a libertação das possibilidades determinadas e efetivas, porque é compreensão da possibilidade última e própria que compreende todas as possibilidades, que é a possibilidade do estar lançado no mundo. Por isso, ao mesmo tempo que a angústia isola o homem como solus ipse, esse isolamento não é o de um ente ou o de um objeto sem mundo, mas, ao contrário, põe o homem perante seu mundo e, com isso, põe o homem diante de si mesmo como ser-no-mundo (Ibid., § 40). Heidegger pode afirmar, com base nessas análises, que “toda compreensão é emotiva”, e ver no tom emotivo da angústia a compreensão última, decisiva, que a existência pode ter de si mesma (Ibid., § 53)-Heidegger concentrou a atenção na angústia e considerou-a como a única “emoção autêntica” do homem, porque é a única emoção que faz o homem compreender sua existência, ou seja, seu estar no mundo. Não negou, porém, as outras emoções. Está bem claro que, para ele, as outras emoções humanas pertencem ao nível da existência “inautêntica” ou “impessoal”, da existência que não visa a compreender-se e possuir-se nessa compreensão, mas viver quotidianamente no cuidado, ou seja, na preocupação sugerida pelas necessidades próprias e alheias. À utilização das coisas e ao preocupar-se com o mundo, que são os dois aspectos essenciais do ser-no-mundo, estão obviamente ligadas todas as emoções e os afetos humanos, que, portanto, são rejeitados para o plano inautêntico da banalidade quotidiana. Embora Heidegger não trate desses afetos ou emoções (nem sequer do amor, donde Sartre ter observado que, para ele, o Dasein, a realidade humana, não tem sexo), não se deve esquecer que, para Heidegger, a existência inautêntica não é aparência, ilusão ou realidade diminuída ou empobrecida, mas um modo de ser necessário da própria existência.

Na mesma linha da análise de Heidegger situa-se a de Sartre, que, porém, utiliza mais as análises e as teorias da psicologia contemporânea. Para Sartre, a emoção é “certa maneira de apreender o mundo”; ela é, portanto, em primeiro lugar, “consciência do mundo”, embora se trate de consciência imediata e não reflexa. “O sujeito que procura a solução de um problema prático está no mundo, toca o mundo a cada instante, através de todos os seus atos. Se falha em todas as suas tentativas, se se irrita, sua irritação é um modo como o mundo lhe aparece. E não é preciso que o sujeito, entre a ação que falha e a cólera, realize um retorno para si mesmo e intercale a consciência reflexa. Pode haver uma passagem contínua da consciência irreflexa ‘mundo-agido’ (ação) para a consciência reflexa ‘mundo odioso’ (cólera). A segunda é uma transformação da outra” (Esquisse d’une théorie des émotions, 1947, p. 30). Mas o mundo a que a emoção faz referência é um mundo difícil. A dificuldade é uma qualidade objetiva do mundo que se oferece à percepção; é ela que determina a natureza das emoções. Esta, para Sartre, é uma transformação do mundo, mais precisamente uma transformação pela magia. “Quando os caminhos traçados se tornam difíceis demais ou quando não vemos absolutamente o caminho, não podemos mais ficar num mundo tão urgente e difícil. Todas as vias estão barradas e, no entanto, é preciso agir. Então procuramos mudar o mundo, viver como se as relações das coisas com as suas propriedades não fossem controladas por processos deterministas, mas pela magia” (Ibid., p. 33). P. ex., o desmaio diante de um perigo iminente não é mais que negação do perigo, vontade de anulá-lo. “A urgência do perigo serviu de motivo para uma intenção aniquilante que ordenou uma conduta mágica. E, de fato, eu aniquilei o perigo da forma como podia. Não se trata, porém, de brincadeira, mas de crença, de uma coisa séria, como demonstram as expressões orgânicas das emoções.” Na emoção a consciência visa combater os perigos ou modificar os objetos, sem distância e sem instrumentos, através de modificações absolutas e maciças do mundo. Esse aspecto do mundo é inteiramente coerente, diz Sartre; trata-se do mundo mágico. “Chamaremos de emoção a queda brusca da consciência no mágico. Ou, se preferirem, há emoção quando o mundo dos instrumentos se esvai bruscamente e o mundo mágico lhe toma o lugar. Portanto não se deve ver na emoção uma desordem passageira do espírito, que viria perturbar de fora a vida psíquica. Ao contrário, trata-se do retorno da consciência à atitude mágica, uma das grandes atitudes que lhe são essenciais, com a aparição do mundo correla-tivo, o mundo mágico. A emoção não é um acidente, é um modo de existência da consciência, uma das maneiras pelas quais ela compreende (no sentido heideggeriano de verstehen) o seu ser no mundo” Ubid., p. 49).

É significativo o fato — resultante das exposições anteriores — de as teorias das emoções apresentadas pelos cientistas não diferirem radicalmente das apresentadas pelos filósofos, mas apresentarem muitas características substanciais em comum. É também verdade que os filósofos utilizam essas teorias para extrair ilações ou generalizações de natureza ontológico-metafísica; mas, de certo modo, isso é um direito deles. A concordância entre as teorias tem grande significado porque demonstra que, no terreno da análise interpretativa dos modos fundamentais de experiência, é possível que o acordo entre cientista e filósofo não seja me nor que o existente entre dois cientistas. Outro exemplo desse acordo é a teoria das emoções apresentada por Kurt Goldstein, médico e fisiólogo especialista em lesões cerebrais (cf. Der Aufbau des Organismus, 1934; trad. fr. com o título La structure de l’organisme, Paris, 1951). Goldstein acredita que a adaptação do organismo ao ambiente acontece através de pequenas “reações de catástrofe” que não podem ser evitadas no embate do organismo com o mundo. Quando essas catástrofes ou choques ultrapassam determinada medida, passam a ter significado de comportamento anômalo do organismo, de perigo para a sua capacidade de agir, para a sua existência. Está-se então diante de reações graves de catástrofe que, do ponto de vista subjetivo, assumem a forma emotiva de angústia. A angústia distingue-se do medo pela falta de objeto determinado: ela não tem objeto. No medo, encontramo-nos diante de um objeto ao qual nos opomos, do qual podemos procurar desembaraçar-nos ou do qual podemos fugir; temos consciência tanto desse objeto como de nós mesmos e podemos examinar o modo como devemos comportar diante do objeto, fixar o olhar sobre a causa do medo, que realmente se encontra no espaço diante de nós. Mas na angústia o doente “vive a impossibilidade de relacionar-se com o mundo sem saber por quê. É um sentimento de estremecimento que diz respeito à existência do mundo e à sua própria existência. Não pode tomar consciência do seu eu tanto quanto não pode fazê-lo do objeto, já que a consciência do eu é apenas o correlato da consciência do objeto… A angústia aparece, portanto, quando a realização de uma tarefa correspondente à essência do organismo foi impossível. Esse é o perigo da angústia” (Ibid., trad. fr., pp. 250-51). Em outros termos, a angústia é o sentido de ruptura entre o organismo e o mundo, ou melhor, a perda da possibilidade de relação entre o organismo e o mundo. Desse ponto de vista, o que conduz ao medo é “o sentimento da possibilidade de surgimento da angústia”. Assim, pode-se compreender o medo a partir da angústia, e não vice-versa. Quem tem, medo compreende, por certas indicações, que um objeto é capaz de colocá-lo em situação de angústia. Ora, a angústia não é só um estado normal. Muitos estados angustiosos de indivíduos normais só não são reconhecidos como tais porque são relativamente insignificantes para a personalidade global e para a sua existência; mas às vezes basta um insucesso, insignificante em si mesmo, mas que ocorra numa situação importante para o indivíduo, para transformá-lo em angústia verdadeira, como acontece, p. ex., com a angústia dos exames. A capacidade de suportar a angústia varia de um indivíduo para outro: o doente de lesões cerebrais suporta menos, a criança suporta mais, e o adulto ativo ainda mais. “Nesse último mostra-se a coragem verdadeira, a coragem, que é o meio de sair da angústia. Ela é um sim dito ao estremecimento da existência, aceito como uma necessidade para a realização do ser que nos é próprio. Implica a capacidade de ordenar uma situação particular num conjunto maior, uma atitude orientada para o possível ainda não realizado. Além disso supõe a liberdade de decidir-se por esses possíveis. Justamente por isso, é uma característica do homem; pode-se, pois, compreender que quem sofre uma lesão cerebral, que é precisamente uma perda da categoria do possível, ou seja, uma perda de liberdade, fique completamente desarmado diante da situação da angústia; está condenado a essa situação na medida em que não está protegido contra ela por um empobrecimento enorme do seu mundo, que reduz seu ser humano às formas mais simples” (Ibid., pp. 260-61). Assim, a descida do paciente ao nível humano mais baixo é a última defesa do organismo que vive a impossibilidade de relacionar-se com o mundo. Além disso, a coragem não é a certeza de que os possíveis se realizarão, não é a garantia de que se destinam ao êxito, mas só o sentido do possível como tal, como possibilidade de êxito ou insucesso, como procura, esforço, tentativa, trabalho, criação, orientados para as possíveis vias de sucesso.

O exame do conjunto das teorias da emoção que se sucederam ao longo da história do pensamento mostra que elas podem ser divididas em duas grandes classes, segundo o modo de considerar as emoções, como dotadas de significado ou como desprovidas de significado.

1) As teorias que atribuem significados às emoções consideram-nas manifestações, indicações ou signos de situações objetivas em que o homem se encontra, seja por suas relações com as coisas do mundo, seja por suas relações com os outros homens. Por esse prisma, aparecem como os valores das situações, no que se refere às possibilidades de vida, conservação, desenvolvimento, realização de interesses e tarefas que elas oferecem ao homem. Obviamente, o pressuposto desse reconhecimento do significado objetivo das emoções é que nem todas as situações são igualmente favoráveis, que muitas delas apresentam características que podem ameaçar a existência e as realizações do homem, ou que, em outros termos, na maioria das vezes o mundo se apresenta sub ratione ardui (como diz Tomás de Aquino), ou é um mundo difícil (como diz Sartre). Mas um mundo difícil, um mundo onde o que favorece o homem pode apresentar-se sub ratio