viver

O que, portanto, significa on existe [existe-se, em francês]? A existência — esse conceito, fundamental em todos os sentidos, da filosofia primeira do Ocidente — talvez tenha a ver constitutivamente com a vida. “Ser”, escreve Aristóteles, “para os seres vivos, significa viver”. Séculos depois, Nietzsche esclarece: “Ser: não temos outra representação dele senão viver”. Trazer à luz—fora de qualquer vitalismo — o íntimo entrelaçamento entre ser e viver, essa é certamente hoje a tarefa do pensamento (e da política).

6. A sociedade do espetáculo começa com a palavravida” (“Toute la vie des sociétés dans lesquelles règnent les conditions modernes de production s’annonce comme une immense accumulation de spectacles [A vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção anuncia-se como uma imensa acumulação de espetáculos]”), e até o final a análise do livro não para de colocar em questão a vida. O espetáculo, no qual “o que era diretamente vivido se afasta numa representação”, é definido como “inversão concreta da vida”. “Quanto mais a vida do homem se torna seu produto, tanto mais ele é separado da sua vida” (n. 33). A vida nas condições espetaculares é uma “falsa vida” (n. 48), uma “sobrevivência” (n. 154) ou, ainda, um “pseudo uso da vida” (n. 49). Contra essa vida alienada e separada, defende-se algo que Guy chama de “vida histórica” (n. 139), que já no Renascimento aparece como “alegre ruptura com a eternidade”: “Na vida exuberante das cidades italianas… a vida é conhecida como um gozo da passagem do tempo”. Anos antes, em Sur le passage de quelques personnes e em Critique de la séparation, Guy já dissera de si e de seus companheiros que “queriam reinventar tudo a cada dia, tornar-se patrões e possessores da própria vida” (p. 22), que os encontros entre eles eram uma espécie de “sinais provenientes de uma vida mais intensa, que não foi realmente encontrada” (p. 47).

O que seria essa vida “mais intensa”, o que viria a ser invertido ou falsificado no espetáculo ou apenas o que se devia entender por “vida da sociedade” não fica esclarecido em momento nenhum; contudo, seria fácil demais acusar o autor de incoerência ou imprecisão terminológica. No caso, Guy nada mais faz do que repetir uma atitude constante em nossa cultura, em que a vida nunca é definida como tal, mas é todas as vezes articulada e dividida em bios e zoe, vida politicamente qualificada e vida nua, vida pública e vida privada, vida vegetativa e vida de relação, de maneira que cada uma das partições seja [16] determinável apenas na relação com as outras. Talvez em última análise seja justamente a indecidibilidade da vida que faz que ela todas as vezes deva ser política e singularmente decidida. Além disso, a indecisão de Guy entre a clandestinidade de sua vida privada — que, com o passar do tempo, devia aparecer-lhe cada vez mais fugaz e não documentável — e a vida histórica, entre sua biografia individual e a época obscura e irrenunciável em que ela se inscreve, mostra uma dificuldade que, pelo menos nas condições presentes, ninguém pode iludir-se de ter resolvido de uma vez por todas. Em todo caso, o Graal voluntariosamente procurado, a vida que inutilmente se consome na chama, não era redutível a nenhum dos termos opostos nem à idiotice da vida privada nem ao incerto prestígio da vida pública, recolocando em questão, aliás, a própria possibilidade de distingui-las.

7. Ivan Illich observou que a noção corrente de vida (não “uma vida”, mas “a vida” em geral) é percebida como “fato científico”, que não tem mais relação nenhuma com a experiência de cada ser vivo. Ela é algo anônimo e genérico, que pode designar um espermatozóide, uma pessoa, uma abelha, uma célula, um urso ou um embrião. Desse “fato científico”, tão genérico que a ciência renunciou a defini-lo, a Igreja fez o último receptáculo do sagrado, e a bioética o transformou no termochave de seu impotente conjunto de tolices. Em todo caso, “vida” tem a ver hoje mais com a sobrevivência do que com a vitalidade ou com a forma de vida do indivíduo. [Agamben; AgambenUC:15-16]


A vida é sem porquê, pois não tolera em si nenhum fora de si ao qual ela deveria manifestar-se e, assim, ser o que é — ao qual ela teria de perguntar por que ela é o que é, por que, por desígnio de que ela é vida. Mas, se a vida não deixa fora de si nenhuma realidade exterior a ela — à qual teria de indagar a razão de sua manifestação e, assim, de seu ser, nenhum horizonte de inteligibilidade a partir do qual lhe fosse necessário voltar-se para si para se compreender e se justificar a si mesma –, é unicamente porque ela traz, em si, esse princípio último de inteligibilidade e de justificação. É por isso que ela se revela a si mesma de tal modo que, nessa revelação patética imanente de si, é ela também que é revelada. A autorrevelação da vida é sua auto justificação. Se a vida é sem “porquê”, se ela não pergunta a nada nem a ninguém — a nenhum saber ek-stático, a nenhum pensamento intencional em busca de um sentido qualquer, a nenhuma ciência, o porquê de sua vida –, é porque, experimentando-se a si mesma, não é somente nem antes de tudo o que ela experimenta quando se experimenta a si mesma, mas o próprio fato de se experimentar a si mesma, a felicidade dessa experiência que é seu gozo de si, o que lhe diz que ela é boa. Tal é o enraizamento fenomenológico das proposições radicais de Mestre Eckhart: “Por mais dura que seja a vida, quer-se, no entanto, viver (…). Mas por que vives tu? Para viver, dizes tu, e todavia não sabes por que vives. Tão desejável é a vida em si mesma, que ela é desejada por si mesma”. E que a justificação suprema seja não somente o que a vida experimenta quando se experimenta a cada vez a si mesma, mas o próprio fato de se experimentar a si mesma e viver: eis o que atesta a própria vida [327] na medida em que subsiste em cada circunstância, mesmo no máximo do sofrimento e da infelicidade. Pois somente uma justificação absoluta, uma autojustificação fenomenológica enquanto autorrevelação — contra a qual nada tem poder e que obra, assim, em toda modalidade da vida, tanto a mais horrível como a mais nobre – autoriza a asserçãolimite de Eckhart: “Mesmo aqueles que estão no inferno, nos tormentos eternos, anjos ou demônios, não querem perder a vida; pois sua vida para eles é tão nobre (…).”[[Traités et Sermons. Trad. francesa Aubier et Molitor. Paris, Aubier, 1942, p. 48.]] (Michel Henry, MHE)