stoicheíon: letra do alfabeto, corpo primário, elemento
1. A comparação dos corpos básicos do mundo físico com as letras do alfabeto, e assim, por implicação, a introdução do termo stoicheíon na linguagem da filosofia remonta provavelmente aos atomistas. Neste contexto a comparação é válida dado que as letras, como os atoma, não têm significado próprio, mas, manejando a sua ordem (taxis) e posição (thesis), é possível construí-los em agregados com significados diferentes (Aristóteles, Metafísica 985b; De gen. et corr. I, 315b; ver genesis). Mas o uso mais remoto e confirmado do termo stoicheion encontra-se em Platão, Teeteto 201e onde é evidente que Platão ainda sente a conotação original de «letra do alfabeto». Na época de Aristóteles o significado original é largamente ignorado e stoicheion significa o elemento básico de um composto (ver Metafísica 1014a).
2. A realidade por trás do termo é, evidentemente, muito mais antiga. É o objeto da busca de algo primário pelos Milésios ou o Urstoff do qual é feita a realidade física do mundo, uma tentativa para determinar o fato inegável da mudança remontando até ao seu ponto de origem. Os candidatos a esta arche são bem conhecidos: são as substâncias mais importantes na experiência do homem e geralmente também as que têm credenciais mitológicas (ver arche).
3. Dá-se com Anaximandro um importante desenvolvimento. A busca de uma única arche havia sugerido uma espécie de genesis linear na qual os outros corpos eram derivados deste único ponto de partida. Mas quando Anaximandro colocou a arche para além das substâncias materiais perceptíveis (ver apeiron), efetivamente tornou secundários todos os corpos perceptíveis e assim conduziu a busca do ponto de partida até novas direções não sensíveis, mas introduziu no problema a possibilidade de uma genesis cíclica em que as substâncias perceptíveis penetram umas nas outras num ciclo contínuo. Esta transformação mútua dos corpos básicos torna-se um lugar-comum em muita da filosofia grega (ver Platão, Fédon 72b, Timeu 49b-c; Aristóteles, De gen. et corr. II, 337a), levando, depois de Parmênides, à crença num agente externo, ele próprio não movido, para manter o ciclo em operação (mediado, em Aristóteles, pelo movimento eterno do Sol ao longo da eclíptica; ver genesis, kinesis, kinoun), e mesmo os stoicheia de Empédocles parecem sofrer esta mudança cíclica (frgs. 17, 26).
4. A busca da arche chegou ao fim com Parmênides que, invertendo o apeiron perfeitamente indefinido de Anaximandro, postulou o seu próprio on perfeitamente definido. Ora a definição perfeita fornece não só uma arche mas também um telos, e assim Parmênides foi levado a negar a mudança sensivelmente percebida (ver genesis, kinesis) e, de fato, a validade da própria sensação (ver episteme). O on parmenidiano é o stoicheion absoluto e radical.
5. Empédocles e os atomistas, ao restaurarem a pluralidade e o vácuo (kenon), reabriram as possibilidades da genesis secundária e reabilitaram o conhecimento sensorial. A procura dos Milésios de elementos básicos foi retomada e o próprio Empédocles tomou a iniciativa e seleccionou, como quatro corpos básicos (ou «raízes» como lhes chamou) deste mundo material, a (erra, o ar, o fogo e a água, os quatro elementos canônicos (frg. 6; ver Aristóteles, Meta, 985a). «Selecionou» é a palavra apropriada nas circunstâncias visto que estes não eram de modo algum os únicos candidatos; havia à mão um grande número de «poderes» (dynameis) substantivados, v. g. «o quente», «o frio», «o leve», «o pesado», etc, que tinham sido isolados até este momento.
6. Segundo tudo indica Empédocles foi, simultaneamente, o primeiro e o último a sustentar que estes quatro eram os corpos primários irredutíveis; os esforços dos seus continuadores tendiam a reduzir estes «ditos elementos» (a expressão é de Aristóteles; ver Meta, 1066b) a algo mais básico e, ao mesmo tempo, a ver como se efetuava a sua passagem a corpos mais complexos.
7. Um grupo, reclamando-se discípulo de Anaximandro e de Parmênides, sustentou que as archai dos corpos físicos não eram em si perceptíveis pelos sentidos e por isso deviam ser procuradas em entidades que não tinham outras características a não ser massa e posição. Tal era o atomon de Leucipo e Demócrito e o átomo matemático dos pitagóricos, a monas (ver arithmos). Estes são os verdadeiros «elementos» que, por seu lado, podiam ser estruturados em corpos mais complexos, os atoma, pelo processo da associação (synkrisis), as mónades pela transformação geométrica de pontos em linhas, logo em superfícies e corpos; ver genesis.
8. Mas dado que ambos os grupos tinham, deste modo, desnudado a sua partícula básica de características viram-se em certas dificuldades para explicar como é que estes «nadas» podiam surgir no «algo» fortemente caracterizado que era o corpo empedocliano. E que dizer da presença irrefutável das qualidades percebidas pelos sentidos (pathemata aisthetika; ver Timeu 61d) destes últimos? Em ambos os casos há uma acentuada inclinação para reduzir toda a sensação ao tato ou contato (haphe; ver Aristóteles, De sensu 442a), com forte sugestão, pelo menos pela parte de Demócrito, de que todas as outras experiências dos sentidos são convenções subjetivas (frg. 9; ver aisthesis, nomos).
9. Não estamos tão bem informados sobre a resposta dos pitagóricos à mesma questão a eles posta por Aristóteles (Metafísica 1092b): como é possível explicar o branco, o doce e o quente em termos de números? Uma sugestão de resposta aparece em Platão. O Timeu inclui duas abordagens do problema dos elementos. Uma é uma descrição do estado das coisas antes do universo surgir (Timeu 52d) e baseia-se numa análise dinâmica e não geométrica da genesis (ver infra). Mas o relato pós-cósmico posterior (ibid. 53c ss.) é acentuadamente geométrico e, embora não seja puramente pitagórico, tem fortes filiações nesse sentido.
10. Este relato platônico segue o atomismo ao reduzir os stoicheia empedoclianos a agregados de corpos mais básicos, estes caracterizados principalmente pela sua posição e forma (schema). Mas enquanto os atomistas, ao que parecia, mostravam relutância em apresentar a noção de forma (segundo o testemunho de Aristóteles, De coelo IV, 303a, não disseram que os atoma do fogo eram esféricos), Platão tem um sistema minuciosamente arquitetado no qual cada um dos elementos está associado a um dos sólidos geométricos regulares capazes de serem inscritos numa esfera (os chamados «corpos platônicos»): o cubo (terra) a pirâmide (fogo), o octaedro (ar), e o icosaedro (água) (Timeu 553-56c); a figura restante, o dodecaedro, fica reservada para a esfera do céu (ibid. 55c; ver aither, megethos). Até este ponto o relato podia passar por uma versão algo suspeitosa de atomismo. Mas onde trai os seus antecedentes pitagóricos é no fato de estes sólidos geométricos terem as suas próprias archai: são construídos a partir de planos, pelo menos com a sugestão de que a redução podia ir mais além (ibid. 53c-d). Os atoma atomistas, por outro lado, são corpos indivisíveis (ver Aristóteles, De gen. et corr. I, 325b para uma comparação dos dois sistemas). Também aqui a sensação é reduzida ao contato com várias combinações destes corpos que, por seu turno, originam experiências sensíveis (Timeu 61c ss.; ver aisthesis).
11. Embora o monadismo pitagórico antecedesse o atomismo, não foi o seu antecedente imediato. A tradição atomista viu antes a linha de descendência proceder de Empédocles através de Anaxágoras até eles (ver Lucrécio I, 830-920). Anaxágoras rejeitou a argumentação de Ernpédocles de que havia quatro corpos irredutíveis (a passagem de um a outro seria ainda a tabu genesis), mas sustentou, em vez disso, que há uma série infinita de corpos infinitamente divisíveis, conhecidos como homoiomereiai «coisas com partes semelhantes», como lhes chamou Aristóteles, ou «sementes», o termo empregado pelo próprio Anaxágoras. Estas são as stoicheia de Anaxágoras (Aristóteles, De coelo xn, 302a), originariamente submergidas numa mistura pré-cósmica, depois separadas pelo noûs, o iniciador do movimento no sistema (frgs. 9, 13) e que, pela sua agregação, formam corpos perceptíveis (ver genesis, holon).
12. Estas homoiomereiai são obviamente diferentes dos atoma por serem infinitamente divisíveis (ver frg. 3 e megethos; Lucrécio objeta a este aspecto da teoria em I, 844-846); mas há, além disso, a sugestão de que as «sementes» trazem consigo as suas próprias archai, i. e., todas as coisas que são (ou serão), estão «em» estas partículas básicas (ver frg. 12). O que é este «tudo» que está «em tudo», i. é, em cada «semente»? Ele abrange não só os stoicheia de Empédocles (ver Lucrécio I, 840-841, 853) e os corpos naturais tais como o cabelo, a carne e o osso (frg. 10), mas também os pathe sensíveis e os «poderes» opostos (frg. 4; ver Aristóteles, Physica I, 187a). A reaparição destes poderes (dynameis) ia ter consequências importantes.
13. A física aristotélica escolheu um caminho diferente daquele que conduzia a uma ou mais archai que transcendiam a percepção dos sentidos. No espírito de Aristóteles a tentativa para distinguir os stoicheia pela forma é desprovida de sentido; a verdadeira solução encontra-se no estudo das funções e dos poderes das coisas (De coelo III, 307b). Foi, com efeito, um retorno às dynameis sensíveis da filosofia milesiana que nunca tinham perdido a sua voga nos círculos médicos e que Anaxágoras tinha pouco antes salientado novamente. Mas isto era mais do que a substituição de outros «corpos» pelos quatro do cânon de Empédocles; assentava na importante distinção entre um corpo e as suas qualidades (ver poion).
14. A formulação desta distinção não foi decerto originariamente de Aristóteles. Platão estava plenamente consciente dela e explicitamente a refere, por meio do prefácio ao seu relato da genesis pré-cósmica no Timeu 49a-50a: os stoicheia empedoclianos não são realmente, de modo algum, coisas mas antes qualidades (poiotetes) num sujeito. Tal afirmação era, evidentemente, impôssível para quem quer que visse o quente, o seco, etc. como coisas (chremata), como provavelmente Anaxágoras o fez.
15. Ora, neste ponto, já em Platão se encontrava uma clara resolução do problema dos stoicheia; eles tinham as suas próprias archai: um substrato e qualidades imanentes capazes de entrar e sair desse sujeito. Assim se abriu a possibilidade da transformação dos elementos uns nos outros (ver genesis). Este é, em geral, o mesmo caminho que Aristóteles seguiu. O substrato platônico é transformado em hyle, que é o sujeito comum para os quatro stoicheia (deveria notar-se que esta hyle, substrato para os elementos, é imperceptível; por isso a genesis, ou a mudança substancial, difere da alloiosis, ou mudança qualitativa, pelo fato desta última ter uma matéria perceptível; ver De gen. et corr. I, 319b). Finalmente, Aristóteles junta a noção de privação (steresis) para facilitar a passagem das qualidades/poderes.
16. Mas há também outras mudanças marcadas. Para Platão a origem e a causa do movimento é a psyche (ver Leis X, 896a, 897a), enquanto que os corpos físicos têm de si próprios só uma espécie de movimento casual, mais agitação do que movimento (Timeu 52d-53a); e no relato pós-cósmico da formação dos stoicheia Platão tem, como era de esperar, ainda menos a dizer acerca do movimento: a kinesis está notoriamente ausente dos corpos geométricos. Em Aristóteles é diferente. Todos os corpos naturais têm o seu próprio princípio de movimento que é a physis (Physica II, 192b), uma separação radical de toda a corrente parmenidiana da especulação em que o movimento inerente era anátema (ver kinesis, kinoun).
17. Assim, para Aristóteles, os corpos simples que são os stoicheia têm o seu próprio e simples movimento natural (De coelo I, 269a). O seu funcionamento é orientado pelo princípio já exposto (Physica III, 201a) de que a kinesis é a atualização de uma potência. Neste caso, todavia, a privação (steresis) significa que o elemento não está no seu «lugar natural», visto que movimento e lugar são conceitos correlativos (De coelo X, 276a-277a). Assim, a leveza é a capacidade para o movimento linear se afastar de um centro, movimento que cessará quando o sujeito tiver alcançado o seu lugar natural; e peso é o contrário (ibid. IV, 310a-311a). Deste modo, Aristóteles faz proceder o fogo da leveza absoluta e a terra do peso absoluto (ibid. IV, 311a^b) e, depois, de um modo mais curioso, o ar da leveza relativa e a água do peso relativo (ibid. 312a; confrontar a derivação paralela que Platão faz do ar e da água como termos médios de uma proporção geométrica no Timeu 31b-32b). E apoiando-se no mesmo argumento, dos movimentos simples deriva Aristóteles a existência do quinto elemento que tem como seu movimento a outra espécie de kinesis simples, movimento circular perfeito (ver aither; para as dificuldades que isto implica na teoria do Primeiro Motor, ver kinoun 8; para o seu movimento endelecheia, ver ouranioi 6).
Para a transformação dos elementos e para a atitude estóica em relação a eles, ver genesis; para os stoicheia da alma no platonismo, ver psyche tou pantos. [FEPeters]