técnica

(in. Technic; fr. Technique. al. Technik; it. Técnica).

O sentido geral desse termo coincide com o sentido geral de arte: compreende qualquer conjunto de regras aptas a dirigir eficazmente uma atividade qualquer. Nesse sentido, técnica não se distingue de arte, de ciência, nem de qualquer processo ou operação capazes de produzir um efeito qualquer: seu campo estende-se tanto quanto o de todas as atividades humanas. É preciso, porém, chamar a atenção para o fato de que nesse significado do termo, que é bastante antigo e geral, não se inclui o significado atribuído por Kant, que falou de técnica da natureza para indicar a causalidade dela (Crít. do Juízo, § 72), mas negou que a filosofia — especialmente a filosofia prática — pudesse ter uma técnica, porque não pode contar com uma causalidade necessária (Met. der Sitten, Intr., § II). O pressuposto desse significado, porém, é a redução de técnica a procedimento causal, ao passo que esse termo foi entendido (da melhor maneira) como procedimento qualquer, regido por normas e provido de certa eficácia.

Nessa esfera de significado generalíssimo incluem-se, portanto, os procedimentos mais díspares; estes, porém, podem ser divididos, grosso modo, em dois campos diferentes: A) técnica racionais, que são relativamente independentes de sistemas particulares de crenças, podem levar à modificação desses sistemas e são auto-corrigíveis; B) técnica mágicas e religiosas, que só podem ser postas em prática com base em determinados sistemas de crenças; não podem, portanto, modificar esses sistemas e apresentam-se também como não-corrigíveis ou não-modificáveis. Essas técnicas constituem um dos dois elementos fundamentais de qualquer religião e podem ser indicadas com o nome genérico de ritos.

As técnicas racionais, por sua vez, podem ser distinguidas em: 1) técnica simbólicas (cognitivas ou estéticas), que são as da ciência e das belas artes; 2) técnica de comportamento (morais, políticas, econômicas, etc); 3) técnica de produção.

1) As técnicas cognitivas e artísticas podem ser chamadas de simbólicas porque consistem essencialmente no uso dos signos. Distinguem-se dos métodos que, a rigor, são indicações gerais sobre o caráter das técnicas a serem seguidas. As técnicas simbólicas podem ser: de explicação, de previsão ou de comunicação, mas essas distinções não são mutuamente excludentes.

2) As técnicas de comportamento do homem em relação a outro homem cobrem um campo extensíssimo que compreende zonas díspares: vão das técnicas eróticas às de propaganda, das técnicas econômicas às morais, das técnicas jurídicas às educacionais, etc. Nesse grupo também podem ser incluídas as técnicas organizativas, que visam a encontrar condições para obter o rendimento máximo com o mínimo esforço em todos os domínios da atividade humana. Essa técnica é tratada pela tectologia ou praxiologia.

3) O terceiro grupo de técnicas é o que diz respeito ao comportamento do homem em relação à natureza e visa à produção de bens. Nesse sentido, a técnica sempre acompanhou a vida do homem sobre a terra, sendo o homem — como já notava Platão (.Prot., 321 c) — o animal mais indefeso e inerme de toda a criação. Portanto, para que qualquer grupo humano sobreviva, é indispensável certo grau de desenvolvimento da técnica, e a sobrevivência e o bem-estar de grupos humanos cada vez maiores são condicionados pelo desenvolvimento dos meios técnicos. O primeiro filósofo a reconhecer essa verdade foi Francis Bacon, no começo do séc. XVII. Para ele, a atuação da ciência tinha em vista o bem-estar do homem e visava a produzir, em última análise, descobertas que facilitassem a vida do homem na terra. Quando, em Nova Atlântida, quis dar a imagem de uma cidade ideal, não sonhou formas perfeitas de vida social ou política, mas imaginou um paraíso da técnica, onde fossem levadas a efeito as invenções e as descobertas de todo o mundo. O sansimonismo e o positivismo do séc. XIX compartilharam a exaltação baconiana da técnica. Só depois do fim do século passado e nas primeiras décadas do séc. XX foi que começou a manifestar-se o que hoje se chama de problema da técnica que nasceu das consequências produzidas pelo desenvolvimento da técnica do mundo moderno sobre a vida individual e social do homem. Antes da Segunda Guerra Mundial, o conflito entre homem e técnica foi o tema predileto da literatura profetizadora. Os profetas da decadência e da morte da civilização ocidental (p. ex., O. Spengler, Der Mensch unddie Technik, 1931), os defensores da espiritualidade pura (p. ex., D. Rops, Le monde sans âme, 1932) haviam já identificado na máquina a causa direta ou indireta da decadência espiritual do homem. Segundo esses diagnósticos, o mundo em que a máquina domina não tem alma, é nivelador e mortificante: um mundo onde a quantidade tomou o lugar da qualidade e onde o culto dos valores do espírito foi substituído pelo culto dos valores instrumentais e utilitários. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial, essas acusações foram reforçadas e desenvolvidas; estão presentes em toda a obra de Albert Camus (v., p. ex., Ni bourreaux ni victimes, 1946). Para outros, o mal do “maquinismo” estaria no desarraiga-mento que ele produz no homem (S. Weil, L’enracinement, 1948). Ao condenarem a técnica, outros ainda implicam a “razão”, que seria seu princípio, ou acalentam a utopia de um retorno à produção artesanal (M. de Corte, Essai sur la fin d’une civilisation, 1949; L. Duplessy, La machine ou l’homme, 1949). Por outro lado, a partir da obra de Husserl, A crise das ciências europeias (1954), a técnica e a ciência em que ela se baseia passaram a ser frequentemente consideradas uma degradação ou uma traição da Razão Autêntica, pois escravizam a razão a objetivos utilitários, ao passo que sua verdadeira função é o conhecimento desinteressado do ser, a contemplação. Esse conceito constitui a base4e todas as críticas dirigidas à sociedade contemporânea, que estaria fundada na técnica e dominada pela tecnocracia.

Mas hoje há uma vasta literatura que, apesar de não partir de preconceitos metafísicos, ideológicos ou teológicos, evidencia os aspectos negativos da técnica, que podem ser resumidos da seguinte maneira:

1) exploração intensa dos recursos naturais, acima dos limites de seu restabelecimento natural, portanto o empobrecimento rápido e progressivo desses recursos;

2) poluição da água e do ar por dejetos industriais, com a multiplicação dos meios mecânicos de transporte e com a maior densidade demográfica;

3) destruição da paisagem natural e dos monumentos históricos e artísticos, em decorrência da multiplicação das indústrias e da expansão indiscriminada dos centros urbanos;

4) sujeição do trabalho humano às exigências da automação, que tende a transformar o homem em acessório da máquina;

5) incapacidade da técnica de atender às necessidades estéticas, afetivas e morais do homem; portanto, sua tendência a favorecer ou determinar o isolamento e a incomunicabilidade dos indivíduos.

No que diz respeito aos três primeiros fatores, pode-se recorrer a uma contra-técnica, que seria uma técnica (ou um conjunto de técnica) capaz de contrabalançar ou de corrigir os efeitos devastadores da técnica: seus meios seriam suficientemente potentes para diminuir (senão equilibrar) os efeitos da devastação. O quarto e o quinto aspectos são humanos, morais e políticos; costumam ser considerados como constituintes do fenômeno da alienação.

Tanto em suas formas primitivas quanto nas requintadas e complexas, presentes na sociedade contemporânea, a técnica é um instrumento indispensável para a sobrevivência do homem. Seu processo de desenvolvimento parece irreversível porque só dele dependem as possibilidades de sobrevivência de um número cada vez maior de seres humanos e seu acesso a um padrão de vida mais elevado. Inclusive a diferença entre técnica e ciência, em que às vezes ainda se insiste, parece diminuir ou atenuar-se quando se consideram as tarefas hoje atribuídas à ciência. Hoje, o único remédio aos reais perigos da técnica parecem ser o seu robustecimento e o seu desenvolvimento em todos os campos, e não a renúncia a seus benefícios. Isso se traduziria em, por um lado, buscar novos instrumentos que não só controlassem mas também protegessem a natureza e, por outro, buscar novas técnicas de relacionamento humano que pudessem controlar e corrigir os efeitos malignos das técnicas produtivas sobre o homem. A esperança de que isso possa acontecer baseia-se apenas no fato de que a própria técnica produtiva está a exigir cada vez mais que o homem tenha exatamente as capacidades de iniciativa, imaginação criativa e solidariedade que o próprio sistema tecnológico parecia ameaçar. [Abbagnano]


Do grego techne, significa (1) na Antiguidade (como também na Idade Média, ars = “arte”, “habilidade”), toda realização de coisas sensorialmente perceptíveis ao serviço de uma necessidade ou de uma ideia; denota, por conseguinte, a habilidade ou destreza, tanto para o necessário (produzir coisas) quanto para o belo (tornar visível uma ideia). Derivado desta acepção, o vocábulo “técnica” (3) indica o formal, as regras comunicáveis da dita realização (p. ex., de tocar piano). A técnica (3), em oposição à arte, é a utilização dos recursos e forças da natureza, endereçada a satisfazer às necessidades humanas. Enquanto o oficio manual (a técnica artesanal) se limitou, durante muito tempo, a aplicar meros instrumentos (meios para atuar corporalmente; em sentido estrito: sem aumento da força de trabalho) e as chamadas máquinas de trabalho (ferramentas movidas à mão, com acréscimo de força operativa, p. ex., a cunha, a roldana), a técnica (4) da época moderna (a técnica mecânica) progrediu até chegar a usar máquinas de força (ferramentas movidas por forças naturais, p. ex., máquinas a vapor). Este progresso só se tornou possível, graças a um amplo conhecimento da natureza. Pelo que a técnica (4) pode ser definida como o aproveitamento ordenado dos recursos e forças naturais, baseado no conhecimento da natureza e posto ao serviço da satisfação das necessidades do homem.

Uma filosofia da técnica, como parte da filosofia geral da cultura (filosofia da cultura), não só tem que mostrar a origem e as condições da técnica na natureza, suas disposições, forças e necessidades, como também investigar as multiformes reações da técnica sobre o homem e sobre a estruturação concreta da vida humana no indivíduo e na comunidade. Neste particular, se por um lado se manifesta, o poder benéfico da técnica, sem a qual não teria sido possível que a humanidade e sua cultura alcançassem o atual grau de desenvolvimento, por outro lado não se pode desconhecer uma série de consequências indesejáveis, que evidentemente não brotam, em sua totalidade, da essência da técnica, mas, amiúde, de sua defeituosa inserção no domínio global da vida. Em parte necessárias e, em parte, evitáveis ou compensáveis por medidas adequadas, são consequências da técnica: a evolução da indústria doméstica para indústria fabril, a desligação do operário do meio familiar, a acumulação de vultuosos capitais, a desigual possibilidade de lucro, o crescimento das grandes cidades, o aumento das necessidades, o afastamento do trabalho para longe da natureza com os concomitantes perigos para a saúde, para a alma e para o Estado. A independência relativamente à técnica ou a subordinação a ela da economia e das restantes esferas da vida (tecnocracia) deve conduzir à superprodução, à escravização do homem pela máquina e à desorganização social. A técnica deve servir, não deve dominar. — Brugger.


(do gr. techne, a arte manual, a indústria).

a) technikos é o que concerne a uma arte, o que é próprio de uma arte). Daí formar-se o conceito técnica, que é o conjunto dos processos definidos e sistematicamente ordenados, com o fim de produzir certos resultados julgados úteis ou convenientes.

b) Indica os métodos organizados de uma disciplina científica; ou seja, os meios para alcançar os resultados desejados.

c) Na estética é o conjunto dos processos que são indispensáveis como instrumentos ou materiais para alcançar o fim desejado. Como adjetivo refere-se a tudo quanto é concernente à técnica ou que tem qualquer aspecto referente à ela.

Análise – É comum ouvir chamar-se a nossa era de “era mecânica” e também afirmar-se que a transformação que se observa na indústria começa com a invenção da máquina a vapor, atribuída a Watt, ou com a “máquina automática de tecer”. O desenvolvimento da máquina processou-se durante pelo menos sete séculos, na Europa, antes que se dessem as mudanças que acompanharam a chamada “revolução industrial”. A mecanização do homem no mosteiro e no exército, precedem à que se verificou na fábrica. Nem a mecanização, nem a sistematização são fenômenos novos na história. O que houve de novo foi a organização das formas.

“Tanto os gregos como os árabes tinham máquinas, mas não haviam desenvolvido a máquina” (Mumford). Foi à Europa Ocidental que coube o papel de adaptar a vida ao ritmo e à capacidade da máquina, como a ela caberá incorporar o inorgânico à máquina, à vida. Para Mumford três são os momentos sucessivos de penetração da máquina na nossa civilização. A primeira deu-se no século X, a segunda no século XVIII e, em nossos dias, temos o início do terceiro momento.

Máquina é uma combinação de corpos resistentes dispostos em forma tal para que, mediante eles, as forças mecânicas da natureza possam ser obrigadas a fazer trabalho, acompanhadas por certos movimentos determinados”(Reulau).

A máquina serve para poupar forças e obter maior proveito com menor esforço, pois o automatismo adquire mais exatidão, reduzindo o trabalho humano. Foi nos mosteiros do Ocidente que o desejo de ordem e de poder, distinto do domínio militar, manifestou-se mais plenamente e onde reinava a mais completa disciplina. O relógio foi a primeira grande máquina, que teve sua influência decisiva sobre a formação técnica. Nos mosteiros, sobretudo nos dos beneditinos, onde imperavam a ordem e a disciplina, deu-se uma das revoluções que sucedem à revolução cristã. Os beneditinos são em grande parte os fundadores do capitalismo moderno. O trabalho, que havia sido apresentado como uma maldição, encontrou neles uma redenção. Com o não advento do juízo final, aos poucos o espírito místico do cristianismo foi sofrendo um refluxo cada vez maior e os homens começaram a olhar para a vida e para o corpo com outra atenção. Este é mais um dos elementos que vão constituir uma das coordenadas do capitalismo em sua fase ascendente. Vide Capitalismo e a técnica.

Foi o relógio a máquina-chave da época industrial moderna, e não a máquina a vapor que, ao sobrevir, já abre o campo a uma outra fase no terreno técnico. O relógio é o símbolo mais típico da máquina. Serviu de modelo para outras classes de funções mecânicas, como também permitiu a análise do movimento, os tipos de engrenagens e transmissões e a exatidão da medida. Com o tempo adquiriu um sentido quantitativo, separando-se do sentido intuitivo, qualitativo, que lhe era próprio. Passou a ser medido, separado em minutos, segundos e permitiu que se tivesse da existência uma outra concepção, favorecendo assim o advento da ciência. A ideia de tempo tornou-se tão importante que o maior ideal burguês foi a regularidade: “ser regular como um relógio”, “funcionar como um relógio”. “Tempo é dinheiro” é uma das frases prediletas dos burgueses do século XVIII em diante, quando o relógio atingiu a sua grande perfeição cronológica. A própria vida humana passou a ser regulada por ele!

A nova ideia do tempo permitiu que se desenvolvesse o conceito da história sob outros aspectos e o interesse sobre o tempo passado tornou-se tão forte, que o Renascimento, em seu aspecto cultural, foi uma tentativa de reviver o que já se dera, o esplendor das civilizações greco-romanas. Depois da atomização europeia, que decorrera da invasão dos bárbaros, com seus castelos fortificados, seus burgos defendidos, com a vida segregada nos mosteiros, o mundo tomara uma feição espacial estreita bastante limitada. A amplificação do espaço foi também uma influência da ideia nova de tempo. A divisão do espaço e a nova concepção que dele se forma têm início sobretudo nos séculos XVI e XVII, na época das descobertas. O espaço não é mais uma hierarquia de valores, mas um sistema de magnitude. O sentido quantitativo predomina definitivamente.

A relação simbólica entre os objetos é substituída por uma relação visual. A fase místico-espiritual dos cristãos, que substituiu a fase orgânica dos gregos, foi sucedida pela fase mecânica do Renascimento. Surgiu, com Galileu e Leonardo, novas concepções. Em vez de procurar saber por que um corpo cai, preocupou-se Galileu em estudar como caía. O modo tornou-se mais importante e urgente de conhecer-se do que o porquê, entregue apenas à filosofia. A ciência introduzia-se no campo das coisas contingentes e experimentáveis.

“Assim como todas as diferenças qualitativas entre as mercadorias desaparecem quando intervêm o dinheiro, este, que é um nivelador radical, faz desaparecer todas as distinções. O próprio dinheiro é uma mercadoria, um objeto externo, capaz de chegar a ser a propriedade privada de um indivíduo. Portanto, o poder social se converte em poder privado em mãos de uma pessoa privada”(Marx).

E a medida comum, o denominador comum é o dinheiro, representado pelo ouro, tomou um vulto extraordinário e simplificou as relações de troca. A atenção humana foi desviada para o “ganho e a perda” e surgiram os banqueiros. Não podiam os cristãos, nos primeiros séculos do cristianismo, emprestar dinheiro com juros. No entanto, a reforma protestante o permitiu e além disso os judeus, não sujeitos a essas restrições, faziam grandes negócios com empréstimos a juros. Esses elementos são importantes e vão constituir as coordenadas do capitalismo moderno que, conjugadas com as anteriores, formam as condições concretas das grandes transformações que a economia começa a sofrer. Por outro lado os protestantes, como Calvino, julgavam que a vitória no mundo dos negócios era uma manifestação da graça divina. Os homens que venciam, que aumentavam seu pecúlio, eram agraciados por Deus, o que significava uma reviravolta importante.

Essa época marca a predominância do quantitativo. “Assim como o ouvido está feito para perceber o som, e a vista a cor, a mente do homem foi formada para compreender, não toda classe de coisas, mas quantidades. Quanto mais se aproxima uma coisa, quanto à sua origem, às quantidades nítidas, tanto melhor a percebe a mente, e à medida que uma coisa se afasta das quantidades, aumentam nela, em proporção, a obscuridade e o erro” (Kepler).

O capitalismo ter-se-ia de tornar racional, portanto quantitativista, pois o mercador pesa, mede, compara, conta. A razão é a função do espírito que mede, pesa e conta, compara. O racionalismo, como a racionalização do cristianismo, que passava do domínio platônico para o aristotélico, era uma decorrente dessas condições. O desenvolvimento técnico influiu sobre o capitalismo como este sobre a técnica. Se a indústria necessitava de capitais e tendia a crescer, graças à mecanização, o comércio oferecia também possibilidades de grandes lucros. A economia fechada, que então predominava, abria-se e procurava mercados.

O capitalismo existiu em outras épocas, mas com técnicas diferentes. A técnica permitiu que o capitalismo ocidental tomasse a feição que conhecemos. Mas ela não depende dele, como observou Marx. O mundo para o homem religioso ocidental não era a realidade que aparecia. Havia uma outra. As coisas permitiam que se vissem as intenções de Deus e o mundo era demasiadamente insignificante para ser valorado em extremo, A visão era mística e só a valorização da visão natural e a libertação do misticismo poderia permitir a ciência de formar-se sob uma base realista.

Os estudos sobre o corpo humano o qual se pode, sob certo aspecto, considerar uma grande máquina, o desenvolvimento da anatomia e da fisiologia, a ânsia de conhecer o mundo, os animais, sua forma de vida, enfim o conhecimento intensivo e extensivo da natureza permitiram que Leonardo da Vinci construísse seus inventos. O desejo das descobertas, as grandes aventuras atiçavam o espírito humano ao conhecimento das coisas e não da divindade. Note-se que a máquina começou por imitar a vida, os homens e os animais. As primeiras máquinas tinham representações de animais; só depois, no desenvolvimento da técnica é que ela tomou o aspecto puramente mecânico. Por não serem as máquinas mais feias e repulsivas que o corpo humano, tão desprezado por alguns religiosos, esses não a combateram, apesar de encontrar-se na Crônica de Nuremberg, em 1038 frases como esta: “o diabo é o realizador das máquinas e rodas que realizam estranhas ações e trabalho”. Mas nos mosteiros, entre os beneditinos, por exemplo, as máquinas eram construídas. Tiveram elas seu maior desenvolvimento nos mosteiros, nos campos de batalha e nas minas, e menor entre os camponeses, por serem mais conservadores.

Não se deve considerar o papel do protestantismo na formação do capitalismo ocidental como o predominante, mas apenas como um dos fatores coordenados. “O tempo é uma coisa real: aproveite-o! O trabalho é uma coisa real: pratique-o! O dinheiro é uma coisa real: economize-o! O espaço é uma coisa real: conquiste-o! A matéria é uma coisa real: meça-a! Essas eram as realidades e os imperativos da classe média”. A mecanização cresce nas coisas e no espírito. O orgânico dos gregos e o espiritual místico dos primeiros cristãos é reduzido ao mecânico. Não era possível ao homem, imbuído pelas máximas do cristianismo, duvidoso da carne pecaminosa, voltar aos gregos. O renascimento foi um grande equívoco. Ele não retornava, apenas justificava através da arte uma nova visão da vida, que não era mais orgânica, pois procurava até no orgânico apenas o aspecto mecânico, extensista, quantitativo, e inibia, virtualizava, o intensista e qualitativo. Tudo tomava “fins práticos”.

“Mencionarei agora algumas obras de arte maravilhosas e também algumas obras maravilhosas da natureza, que nada têm que ver com a magia, e que esta não poderia realizar. Podem fazer-se instrumentos graças aos quais grandes barcos serão guiados por um só marinheiro; tais barcos viajarão mais rapidamente do que se tivessem a bordo uma grande tripulação. Poder-se-ão construir carros que se transladarão de um lado a outro com incrível rapidez, sem a ajuda de animais. Talvez se construam aparelhos para voar, nos quais o homem sentado com toda comodidade e meditando sobre qualquer tema, possa bater o ar com suas asas artificiais, tal como o fazem os pássaros… e também máquinas que permitirão aos homens caminhar no fundo dos mares ou dos rios” (Roger Bacon).

O trabalho nas minas era penoso e os riscos eram numerosos. Com as descobertas de uma maquinaria complicada de bombear água, ventilar a mina, com o aproveitamento da energia hidráulica para acionar os grandes fornos, tornou-se necessário o emprego de capital, que não possuíam os primeiros trabalhadores Desta forma capitais particulares começaram a ser aplicados na indústria da mineração, oferecido por patrões que não tomavam parte no trabalho, os quais, com o decorrer do tempo, foram apropriando-se plenamente da propriedade da mina e transformando os antigos patrões trabalhadores, em meros assalariados. No século XV dá-se na Europa um grande desenvolvimento da indústria mineira que prosseguiu em ascensão e atraiu o emprego de vultuosos capitais, graças aos lucros que oferecia, ocasionando a conquista de territórios para exploração das jazidas minerais. provocando guerras de conquista.

O papel da pilhagem foi um dos meios de poupar trabalho e a guerra permitiu obter mulheres e poder, pelo uso da força. A guerra forçava um desenvolvimento da técnica e esta, por seu turno, a própria guerra. Os primeiros altos fornos construídos na Europa foram destinados às fundições e à manufatura de material bélico. Como a guerra e o exército são consumidores puros e oferecem maiores lucros às indústrias, provocaram a construção de grandes fábricas de armas. Pode-se dizer que a primeira produção em série organizada tecnicamente deu-se na fábrica de material bélico.

As necessidades individuais eram colocadas de lado para atingir-se a uniformização, o que tinha fatalmente que levar à criação de uma indústria em série, já que o exército é um consumidor ideal, que tende a reduzir a zero o produto, e sendo todo-poderoso em suas exigências foi o estimulador da indústria moderna. Se observarmos também a psicologia do militar, se considerarmos as abstenções e cruezas bestiais dos campos de batalha, os excessos praticados após os combates, a exacerbação do erótico, o gasto descontrolado, o luxo, tudo isso provoca uma ampliação da produção. Num campo de batalha não se fazem restrições ao consumo. No decorrer da Idade Média, os senhores feudais e os chefes militares procuraram, por todos os meios, aumentar o seu poder à custa dos outros. Tal prática levou os imperadores a centralizar o poder num poder superior, decorrendo daí a formação das côrtes. Estas, pela necessidade da magnificência e para impressionar foram levadas ao uso de um luxo desmedido. Os que se deixaram arrastar pelo luxo, acabaram por gastar mais do que podiam, terminando por comprometerem seus bens junto aos grandes banqueiros e mercadores, de quem obtinham empréstimos, acabando por se empobrecerem. A consequência foi a decadência da classe dominante e o domínio econômico de uma nova classe detentora do capital que, no século XVIII, já senhora do campo econômico, tornou-se finalmente do campo político. A aristocracia, levada pelos gastos era obrigada a relacionar-se, por meio do casamento, com os mercadores e industriais. Com a vitória econômica e política da burguesia, a classe aristocrática se tornou subserviente.

Patrick Geddes dividiu as fases da técnica em três: a eotécnica, a paleotécnica e a neotécnica. [MFSDIC]