O direito se opõe ao fato, como o que é legítimo se opõe ao que é simplesmente real. — Em moral, o direito é o que se pode exigir do outro; opõe-se ao dever, que designa o que o outro pode exigir de nós. Podemos distinguir o direito natural, donde provém toda teoria das relações humanas, baseada na natureza do homem, suas tendências e aspirações (Rousseau, Fichte), e o direito positivo, que resulta dos costumes tradicionais ou das leis escritas (o Código civil). Os direitos de um indivíduo recebem muitas vezes o nome de direitos “subjetivos”; o direito expresso pela lei da sociedade toma o nome de direito “objetivo”. De maneira geral, o direito se opõe à força e à violência. [Larousse]
Direito e justiça ocupam dentro do conjunto da ordem moral uma situação peculiar nitidamente vincada. Não obstante, na linguagem usual predomina a ambiguidade. A terminologia teológica não raro chega ao ponto de equiparar a justiça à santidade. Muito espalhada é a maneira de se expressar que une tão diretamente o direito com a dignidade pessoal, que caracteriza simplesmente como direito da pessoa tudo o que lhe (pessoa) convém enquanto tal. Assim, recebe o nome de “direito” a soberania absoluta de Deus sobre toda a criação, incluindo a irracional, e designa-se igualmente, como “direito” à vida, ao desenvolvimento da personalidade e aos meios de subsistência, a faculdade que o homem tem de possuir sua vida, de conservá-la e de incrementá-la, bem como a faculdade de dispor das criaturas irracionais e de se servir delas para seus fins. Todos estes “direitos” se fundamentam na condição de pessoa, peculiar ao sujeito dos mesmos, de modo mais especial: no domínio que, mercê de sua essência, a pessoa tem sobre os objetos com que está em relação. Cimentados como estão numa base metafisicamente necessária, tais “direitos” são absolutamente inamovíveis do sujeito dos mesmos.
Para obter um conceito de direito nitidamente definido que ponha em destaque a peculiaridade do direito em frente da ordem moral geral, é mister delimitar com maior precisão a esfera do jurídico. Para tanto, a ciência e a filosofia do direito não descobrem nenhum elemento jurídico na soberania da pessoa, mas tão-somente algo de pré-jurídico; vêem apenas a base sustentadora, sobre a qual pode construir-se o mundo jurídico. Em conformidade com o axioma clássico: ius est ad alios (o direito é uma relação a outros, uma ordenação de relações interpessoais), pertencem, em acepção estrita, ao mundo jurídico só relações de pessoa a pessoa (portanto nem relações de pessoas a coisas (propriedade), nem relações entre a pessoa e seus bens pessoais, p. ex., sua vida ou sua consciência). Contudo nem todas as relações interpessoais (p. ex. o amor, a gratidão, a confiança) são de natureza jurídica como nem sequer o são todas as normas ordenadoras da comunidade. Destas numerosas relações normativas, unicamente se revelam como “jurídicas” aquelas que defendem o homem, como indivíduo irrenunciavelmente pessoal, em sua substantividade e distinção perante todos os restantes e, a um tempo, como ser essencialmente social, o ligam à comunidade, quer esta seja natural, quer seja fruto de sua livre vontade. Coordenando entre si estes dois pólos — substantividade pessoal e vinculação à comunidade — o direito determina a estrutura da comunidade e forma o arcabouço em torno ao qual podem dispor-se as demais partes do edifício daquela. Neste sentido, ordem social e ordem jurídica são duas expressões que designam a. mesma coisa. Uma vez que a ordenação da vida de comunidade nunca pode, evidentemente, ser contrária a esta e às suas verdadeira» necessidades vitais, um direito contrário à coletividade é um absurdo. Pela mesma razão, o direito nunca é coisa morta ou rígida, mas algo vivo a todo momento; nem é só capaz de adaptação, senão que incita constantemente ao progresso (justiça social. justiça). Aquilo que, um dia, os homens estabeleceram como ordenação de sua comunidade, pode envelhecer e morrer, e pode também ser conservado ainda por muito tempo, como um cadáver. O direito ou é jovem e mantém o frescor da vida ou então não é coisa alguma.
O termo “direito” pode, além disso, servir para designar:
1. A ordem jurídica, bem como cada uma das normas jurídicas particulares que são elementos de dita ordem (jus normativum).
2. O que corresponde à ordem jurídica ou a normas jurídicas particulares, quer se trate de um produto, de uma disposição ou de um comportamento do homem (jus obiectivum).
3. As faculdades que, em virtude daquela ordem, competem aos que participam da comunidade juridicamente ordenada (jus subiectivum, também chamado jus potestativum).
O vasto domínio do direito divide-se em numerosos domínios parciais, onde podem entrecruzar-se várias de suas divisões. As normas diretamente concernentes à estrutura e desenvolvimento da comunidade (pública) constituem o direito público; as que regulam de maneira imediata as relações entre os membros da comunidade formam o direito privado. Ao direito público pertencem especialmente o direito constitucional, o direito administrativo e o direito penal, que está ao serviço da proteção da ordem pública. O direito dos bens, subdividido em direito de coisas e direito de obrigações, é inequivocamente direito privado. O direito trabalhista, o econômico e outros domínios jurídicos análogos, ainda recentes, têm um aspecto público e outro privado. O direito familiar ocupa situação especial: embora organize a comunidade familiar, contudo habitualmente não é incluído no direito público, visto a família ser uma comunidade privada, e não pública. — O direito anglo-saxônico não conhece esta maneira de distinguir o direito público do privado.
Sendo o direito relação recíproca de pessoas na comunidade, só as pessoas podem ser sujeitos de exigências e de obrigações jurídicas. Daí, o conceito auxiliar de “pessoa jurídica”, de que nos servimos quando, falando sinteticamente, atribuímos exigências e obrigações jurídicas a uma associação ou instituição. — Do mesmo modo, só será possível ao homem entrarem relação jurídica com Deus, se Este baixar até à criatura humana para elevá-la a uma espécie de comunidade com Ele.
O direito, enquanto ordenação da vida da comunidade, é, por sua essência, estruturador de vínculos comunitários; a única coisa que atua em forma desagregadora é o que constitui uma deformação plena do direito. Visto haver transgressores da ordem jurídica, o direito, em atenção à ordem e à paz, necessita da coação, na medida em que o juridicamente devido é susceptível de se obter mediante a força. Com o progresso da cultura jurídica, a tarefa coativa do direito costuma ser reservada, cada vez mais, ao poder executivo da comunidade pública (Estado, etc).
O positivismo jurídico vai mais longe e, desconhecendo que o direito se funda na condição de pessoa peculiar ao homem, condição que lhe é dada juntamente com sua essência, e ignorando a condição social do mesmo homem, por sua vez fundada na natureza pessoal da criatura humana, propugna que a comunidade determina, de maneira absolutamente, primordial, o conteúdo do direito. Consequentemente, só admite como direito preceitos positivamente formulados (e, ao sumo, costumes), e não vincula a determinação positiva da ordem jurídica a nenhuma espécie de direito anterior, senão que, ao invés, faz que seus preceitos sejam “direito”, mesmo no caso em que contradigam as relações essenciais ontológicas e a ordem ética. Na forma mais exacerbada de positivismo, a só coisa capaz de elevar um preceito à categoria de norma jurídica será sua efetiva capacidade de vigência. Por vezes, é certo, parece que se pretende afirmar unicamente que só a comunidade organizada (especialmente o Estado) confere à ordem jurídica aquela perfeição técnica que satisfaz às necessidades sobremaneira prementes da vida atual. Poderá então discutir-se se às ideias relativas a uma ordem, sobre a qual repousa todo o direito positivo, se dá o nome de direito natural, ou se, para substituir esta denominação que, infelizmente, se tornou equívoca, convirá forjar um novo termo imune do lastro de preconceitos e, portanto, isento de falsas interpretações.
O formalismo jurídico coincide com o positivismo em não admitir também preceitos jurídicos determinados quanto ao conteúdo e anteriores ou superiores aos positivos, aceitando exclusivamente princípios jurídicos “formais”, p. ex., a liberdade, consoante pode coexistir com “igual” liberdade de todos (Kant). Dado que a vida necessita de normas dotadas de conteúdo, devem estas ser estatuídas positivamente em sua totalidade. A majestade do direito é substituída pela devoção à lei (legalidade).
A filosofia do direito ocupa-se com a essência deste e com reduzir o direito a seus últimos fundamentos. Em frente a ela, a sociologia jurídica investiga a maneira como se chega à formação do direito, como prevalecem ou morrem certas convicções jurídicas, e temas idênticos. A ciência do direito elucida a ordem jurídica existente (ou outra que tenha tido existência histórica), aclara seus princípios fundamentais, suas conexões internas, os conceitos jurídicos que nela são usuais, etc.
O homem, que se mantém unido ao direito, acata as exigências jurídicas alheias, esforça-se em cumprir seus deveres jurídicos, pratica a virtude da justiça. Satisfaz-se igualmente às exigências jurídicas, quando o motivo da ação não reside no respeito à ordem jurídica; tal motivo pode ser de índole inferior (interesse pessoal bem interpretado) e também superior. Por isso, o direito não exclui o amor: a cada passo, aquilo que é devido em justiça é, ao mesmo tempo, devido por motivos de caridade e pode sempre ser cumprido por motivos da mais pura benevolência. — Nell-Breuning. [Brugger]
(gr. to dikaiou; lat. jus; in. Law; fr. Droit; al. Recht; it. Dirittó).
Em sentido geral e fundamental, a técnica da coexistência humana, isto é, a técnica que visa a possibilitar a coexistência dos homens. Como técnica, o direito se concretiza em conjunto de regras (nesse caso leis ou normas), que têm por objeto o comportamento inter-subjetivo, ou seja, o comportamento dos homens entre si. Na história do pensamento filosófico e jurídico, sucederam-se ou entrecruzaram-se quatro concepções fundamentais sobre a validade do direito 1) a que considera que o direito positivo (conjunto dos direito que as várias sociedades humanas reconhecem) baseia-se num direito natural eterno, imutável e necessário; 2) a que julga o direito fundado na moral e o considera, portanto, uma forma diminuída ou imperfeita de moralidade; 3) a que reduz o direito à força, ou seja, a uma realidade histórica politicamente organizada; 4) a que considera o direito como uma técnica social.
1. DIREITO NATURAL.
1) A observação da disparidade e da discrepância entre os direito vigentes nas sociedades humanas, bem como do caráter imperfeito de tais direito logo conduziu à noção de direito natural como fundamento ou princípio de todo direito positivo possível, ou seja, como condição de sua validade. O direito natural é a norma constante e invariável que garante infalivelmente a realização da melhor ordenação da sociedade humana: o direito positivo ajusta-se em maior ou menor grau, mas nunca completamente, ao direito natural porque contém elementos variáveis e acidentais que não são redutíveis a este. O direito natural é a perfeita racionalidade da norma, a perfeita adequação da norma ao seu fim de garantir a possibilidade da coexistência. Os direito positivos são realizações imperfeitas ou aproximativas dessa normatividade perfeita. Esse pensamento regeu, por mais de dois mil anos, a história da noção de direito Podemos distinguir duas fases fundamentais dessa longa história: d) Fase antiga, na qual o direito natural é a participação da comunidade humana na ordem racional do universo. Como, segundo os estoicos (aos quais se deve a primeira formulação dessa doutrina), a participação dos seres vivos na ordem universal se dá por meio do instinto, nos animais, e por meio da razão, nos homens (D.L., VII, 85-87), o direito de natureza é às vezes interpretado como instinto e às vezes como razão ou como inclinação racional. Mas em todos os casos, é entendido como participação na ordem universal que é Deus mesmo ou vem de Deus. b) Fase moderna, na qual o direito natural é a disciplina racional indispensável às relações humanas, mas independe da ordem cósmica e de Deus. O conceito de técnica que pode e deve regulamentar da forma mais conveniente as relações humanas apresenta-se com toda clareza nessa fase da doutrina.
d) Fase antiga — O recurso à natureza e à ordenação que ela prescreve às relações humanas é inicialmente uma instância polêmica contra as leis “convencionais”, aquelas que “a maioria” chama de justiça ou que é justiça para “a maioria”. Essa instância foi frequente nos sofistas. Antifontes afirmava que todas as leis são puramente convencionais e por isso contrárias à natureza, e que o melhor modo de viver é seguir a natureza, ou seja, pensar no próprio proveito reservando deferência aparente ou formal às leis dos homens (Oxirhinchus Papyri, nfi 1364, IX, p. 92). Ideias semelhantes a estas são expressas por algumas personagens dos diálogos de Platão, como Cálicles em Górgias (484 a) e Trasímaco e Glauco em República (338, 3, 367 c). Mas mesmo nesse caso o direito natural constitui um tribunal de apelação contra as convenções sociais e no fundo é sempre concebido como justiça mais superior e verdadeira. Nessa concepção, acentua-se o caráter utilitário do direito natural, graças ao qual o direito natural não visará à realização de uma ordem, mas à consecução de uma vantagem, tendo por isso caráter prático mais que especulativo. Portanto, nem sempre essa concepção tem o caráter anti-social de que se reveste em Antifontes e nos outros sofistas. Tampouco teria esse caráter naqueles que a retomaram alguns séculos depois, epicuristas e céticos. Epicuro dizia que o direito natural é uma convenção excogitada pelos homens para seu próprio proveito, a fim de não se prejudicarem uns aos outros (D.L., X, 150). Os céticos, com Carnéades, sustentavam que “os homens sancionaram o direito para seu próprio proveito, já que ele é mudado de acordo com os costumes e dentro de uma mesma sociedade, de acordo com os tempos: logo, não existe direito natural algum; todos, sejam homens, sejam outros seres vivos, são guiados pelo proveito próprio, sob a direção da natureza; consequentemente, ou a justiça não existe em absoluto ou, se existe de algum modo, é o cúmulo da estultice, porque ao defender as vantagens alheias estaria agindo em seu próprio prejuízo (Lactâncio, Div. Inst., V, 16, 2-3; Cícero, De rep., III, 21). Nessas doutrinas a polêmica não se volta diretamente contra o direito natural, mas contra sua interpretação racionalista e otimista, segundo a qual ele é a garantia infalível de uma ordem perfeita.
Mas era justamente essa garantia infalível que a outra corrente fundamental, que vai de Platão e Aristóteles aos estoicos, aos juristas romanos e aos escritores medievais, via no direito natural. Na verdade, Platão definiu o direito ao definir a justiça como aquilo que possibilita que um grupo qualquer de homens, mesmo que bandidos ou ladrões, conviva e aja com vistas a um fim comum (Rep., 351 c). Ao que parece, essa seria uma função puramente formal do direito, graças à qual ele é simplesmente a técnica da coexistência. Mas Aristóteles já qualifica o direito tomando como referência a coexistência justa, racionalmente perfeita. O direito, diz ele, é “o que pode criar e conservar, no todo ou em parte, a felicidade da comunidade política” (Et. Nic, V, 1, 1129 b 11), devendo-se recordar que a felicidade, como fim próprio do homem, é a realização ou a perfeição da atividade própria do homem, ou seja, a razão (Ibid., I, 6, 1098 a 3). “A sanção do direito”, diz ele em Política (I, 2,1254 a), “é a ordem da comunidade política, e a sanção do direito é a determinação do que é justo”. Mas um direito assim entendido é só o direito natural, que é o melhor e em toda parte o mesmo (Et. Nic, V, 16, 1135 a 1). O direito fundado na convenção e na utilidade é análogo às unidades de medida que variam de um lugar para outro; o direito natural, ao contrário, é “aquilo que tem a mesma força em toda parte e independe da diversidade das opiniões” (Ibid., V, 6, 1135 a 17). Os estoicos só fizeram explicitar o fundamento dessa doutrina, identificando o direito natural com a justiça e a justiça com a razão (J. Stobeo, Ecl., II, 184; Plutarco, De Stoic. Rep., 9); sua melhor expressão está num famoso trecho de Cícero conservado por Lactâncio: “Há certamente uma lei verdadeira, a reta razão conforme à natureza, difundida entre todos, constante, eterna, que, comandando, incita ao dever e, proibindo, afasta da fraude… Nessa lei não é lícito fazer alterações, nem é lícito retirar dela qualquer coisa ou anulá-la como um todo… Ela não será diferente em Roma, em Atenas, hoje ou amanhã, mas, como lei única, eterna e imutável, governará todos os povos e em todos os tempos, e uma só divindade será guia e chefe de todos: a que encontrou, elaborou e sancionou essa lei; e quem não lhe obedecer estará fugindo de si mesmo, e, por haver renegado a própria natureza humana, sofrerá as mais graves penas, mesmo que tenha conseguido escapar daquilo que em geral é considerado suplício” (Lactâncio, Div. Inst., VI, 8, 6-9; Cícero, De rep., III, 33)- Esse conceito de direito, entre outras coisas, induzia a reconhecer a igualdade de todos os homens visto que em todos eles, pela sua natureza racional, revela-se a lei eterna da razão. Em Cícero, encontra-se esse reconhecimento (De leg., I, 28) e também um dos corolários mais importantes da doutrina do D natural: o princípio e o fundamento de qualquer direito devem ser procurados na lei natural dimanada antes que existisse qualquer Estado; portanto, se o povo ou o príncipe podem fazer leis, estas não terão verdadeiro caráter de direito se não derivarem da lei primeira (Ibid., I, 19-20, 28, 42, 45). Essas afirmações foram reiteradas por Sêneca, em que também se encontra a teoria do “Estado de natureza”, que deveria dominar o pensamento político por muitos séculos. Segundo essa teoria, antes das instituições criadas por convenção pela sociedade, existiu uma idade em que os homens viveram sem lei, unicamente à mercê da inocência da natureza original.
Viviam felizes, fruindo sua convivência. Não eram virtuosos, porque a sua inocência era feita mais de ignorância, ao passo que a virtude é própria da alma doutrinada e experiente. Mas a ordem em que viviam era a melhor possível porque ditada pela própria natureza, nela até os chefes se inspiravam, em sua sabedoria (Ep., 90). Assim, o mito da idade de ouro transforma-se em mito filosófico porque se une à noção de direito natural e é caracterizado por ela. Mas, afora esse mito, os juristas romanos elaboraram uma doutrina do direito bastante semelhante à dos estoicos. Em meados do séc. II, Gaio, nas primeiras palavras das suas Instituições, que são citadas inclusive no Digesto, afirmava: le existe um direito das gentes (jus gentium) universal, que compreende princípios reconhecidos por toda a humanidade; 2° tais princípios foram ensinados aos homens pela razão natural e, por isso, são coevos do gênero humano (Inst., I, 1; Dig, I, 1, 9; Ibid., XLI, 1, 1). O que Gaio chamava de jus gentium era chamado de direito natural por Paulo, mas a definição era a mesma (Dig., I, 1, 11). Mais tarde, no séc. III, distinguiu-se o direito das gentes do direito natural. Segundo Ulpiano, o direito natural é o que a natureza ensinou a todos os animais e por isso não é próprio apenas do gênero humano, mas é comum a todos os animais que vivem na terra, no mar e no céu. Desse direito provém a união do macho e da fêmea, que nós chamamos de matrimônio, a procriação e a educação dos filhos, coisas essas de que também os animais têm experiência. O direito das gentes, ao contrário, é aquele de que se valem todas as raças humanas, sendo próprio somente dos homens (Dig., I, 1, 1-4). Essa distinção representa o produto de outra instância crítica, qual seja, o reconhecimento de que nem todas as leis universalmente reconhecidas como tais pelos homens se fundam no direito natural; p. ex.: a escravidão, como nota o próprio Ulpiano (Ibid., I, 1, 4), embora universalmente admitida, não se funda no direito natural porque o homem é originalmente livre.
Mas com essa distinção, o conceito de direito natural mudava, perdia-se o vínculo entre direito natural e razão. Por ser comum a todos os animais, portanto também aos desprovidos de razão, o direito natural não podia mais ser considerado como ditado pela razão e coincidente com a racionalidade. Por isso, ele foi remetido seguindo-se o esquema estoico, àquilo que, nesse esquema, constituía o equivalente da razão nos animais, ou seja, o instinto. Segundo os Padres da Igreja que, nesse aspecto, continuam a tradição dos juristas romanos, a lei natural está escrita no “coração” dos homens como uma espécie de força inata ou instinto. Diz S. Agostinho: “O direito natural não foi gerado por uma opinião, mas inserido em nós por uma força inata, do mesmo modo como, na religião, estão a piedade, a graça, a observância, a verdade” (Dediv. quaest., 31; cf. S. Ambrósio, De off, 3). E foi justamente esse o conceito legado à filosofia escolática através das Etimologias de Isidoro de Sevilha (séc. VII). Diz Isidoro: “O direito natural é comum a todas as nações, sendo que em todos os lugares deriva do instinto natural, e não de uma constituição; p. ex., a união do macho e da fêmea, a sucessão e a educação dos filhos, a posse comum de todas as coisas e a liberdade de todos, a aquisição das coisas que estão no céu, na terra e no mar, etc.” (Etym., V, 4). Não causa estranheza, portanto, que os juristas medievais tenham considerado o direito natural exatamente como um instinto ou uma tendência inata, que eles interpretam como sinal ou marca posta no homem por Deus (Piacentino, Summa instit, I, 2). No séc. XII Graciano dividia todas as leis em duas partes, atribuindo a Deus as leis naturais e aos costumes, as leis humanas (Decretum, d. I). A identificação da lei natural com a lei divina constitui o fundamento do direito canônico. O direito natural, notava Rufino, comendador de Graciano, é “uma força (vis) que a natureza imprime na criatura humana para levá-la a fazer o bem e a evitar o mal”. Ela ordena o que é útil, como p. ex. “ama o Senhor teu Deus”; proíbe o que é nocivo, como p. ex. “não matarás”; demonstra o que convém, como p. ex. “tende tudo em comum”, ou “seja uma só a liberdade de todos”, etc. (Summa decr., d. I, Dictat. Grat., ad I). A distinção de Graciano entre lei divina e lei humana é assumida como fundamento da doutrina tomista do direito. Segundo Tomás de Aquino, há uma lei eterna, uma razão que governa todo o universo e que existe na mente divina; a lei natural que está nos homens é reflexo ou “participação” dessa lei eterna (S. Th., II, 1, q. 91, a, 1, 2). Além dessa lei eterna, que para o homem é natural, há duas outras espécies de leis: a “inventada pelos homens e segundo a qual se dispõe de determinado modo das coisas a que a lei natural já se refere” (Ibid., II, 1, q. 91, a. 3) e a divina, necessária para encaminhar o homem ao seu fim sobrenatural (Ibid., a. 4). No que diz respeito ao fundamento de todas as leis feitas pelos homens, Tomás de Aquino repete a doutrina tradicional, de que não é lei aquela que não é justa, e, portanto, “qualquer lei humana deve derivar da lei natural, que é a primeira regra da razão” (Ibid., q. 95, a. 2). Em geral, pertence à lei natural tudo aquilo a que o homem se inclina naturalmente; Tomás de Aquino distingue três inclinações fundamentais por natureza: 1) para o bem natural, compartilhada com qualquer substância que, como tal, deseja a própria conservação; 2) para determinados atos, que foram ensinados pela natureza a todos os animais, como a união do macho e da fêmea, a educação dos filhos e outros semelhantes; 3) para o bem, segundo a natureza racional própria do homem, como a inclinação para conhecer a verdade, viver em sociedade, etc. (S. Th., II, 1, q. 94, a. 2). Assim, Tomás de Aquino considera o direito natural, ao mesmo tempo, instinto e razão visto que inclui nele tanto a inclinação que o homem tem em comum com todos os seres da natureza e com os animais, quanto a inclinação específica do homem. Quanto a esta última, ele estabelece entre os preceitos do direito natural e a razão prática a mesma relação que há entre os primeiros princípios das demonstrações e a razão especulativa: tanto os preceitos quanto os primeiros princípios são “conhecidos de per si”, ou seja, evidentes. Mas em todas as suas determinações, tanto instintivas quanto racionais, o direito natural é sempre a participação na “lei eterna”, na ordem providencial ou divina do mundo.
Durante toda a Antiguidade e a Idade Média, o direito natural conservou a função de fundamento e, às vezes platonicamente, de arquétipo ou modelo de todo direito positivo. Já nessa fase de sua história, a noção de direito natural constituiu um limite e uma disciplina para toda forma de autoridade estatal ou política, servindo ao mesmo tempo para justificá-la. Mas caberiam outras funções à teoria do direito natural a partir do início do séc. XVII. Por um lado, ele viria a ser utilizado na justificação e na reivindicação prática de novos princípios normativos, como os da tolerância religiosa e da limitação do poder do Estado. Por outro, seria utilizado para fundar um novo ramo do direito, o direito internacional, exatamente no momento em que o surgimento das monarquias absolutas e a aceitação mais ou menos explícita do maquiavelismo como condutor de suas políticas pareciam fazer da força o único árbitro das relações internacionais. Mas para cumprir essas novas tarefas, a teoria do direito natural devia sofrer uma transformação radical: essa função coube ao jusnatu-ralismo moderno.
b) Jusnaturalismo moderno — Para o jus-naturalismo moderno, o direito natural não é mais o caminho através do qual as comunidades humanas podem participar da ordem cósmica ou contribuir para ela, e passa a ser uma técnica racional de coexistência. Conquanto Alberico Gentile — que, antes de Grócio, ainda procurou extrair as noções normativas do direito natural da consideração do estado de guerra (De jure belli, 1588) — utilizasse o conceito de instinto natural imutável que manteria os homens unidos como membros de um único corpo, todos os conceitos desse gênero foram descartados por Grócio. A teoria do direito natural foi levada por Grócio ao mesmo plano racional da matemática, para o qual o próprio Descartes quis levar a filosofia e todas as outras pesquisas científicas. Como fundamento da obra de Grócio, há o recurso à razão, que é o recurso à razão matemática, à qual os filósofos do séc. XVII julgam estar confiadas as verdades da ciência. Segundo Grócio, a matriz do direito natural é a própria natureza humana, que conduziria os homens às relações sociais mesmo que eles não tivessem necessidade uns dos outros. Por isso, o direito que se funda na natureza humana “teria lugar mesmo que se admitisse aquilo que não pode ser admitido sem cometer um delito: que Deus não existe ou que não se preocupa com as coisas humanas” (De jure belli ac pacis, 1625, Prol., § 11). Porquanto procede por legítima dedução dos princípios da natureza, o direito natural distingue-se do direito das gentes (jus gentium), que não nasce da natureza, mas do consenso de todos os povos ou de alguns deles e visa ao proveito de todas as nações. Pela sua própria origem, o direito natural é próprio do homem, único ser racional, ainda que se refira a atos comuns a todos os animais, como a criação da prole (Ibid., I, 1, 11). É definido por Grócio como “o mandamento da reta razão que indica a lealdade moral ou a necessidade moral inerente a uma ação qualquer, mediante o acordo ou o desacordo desta com a natureza racional” (Ibid., I, 1, 10). As ações sobre as quais versa o mandamento são obrigatórias ou ilícitas de per si, e portanto são entendidas como necessariamente prescritas ou vetadas por Deus. Nisso o direito natural distingue-se nâo só do direito humano, mas também do direito voluntário divino, que não prescreve nem proíbe as ações que pela própria natureza são obrigatórias ou ilícitas, mas torna ilícitas algumas ações, vetando-as, e obrigatórias outras, prescrevendo-as. O direito natural é, portanto, tão imutável que não pode ser mudado nem por Deus. “Assim como Deus não pode fazer que dois mais dois não sejam quatro, tampouco pode fazer que deixe de ser mal aquilo que, por razão intrínseca, é mal” (Ibid., I, 1, 10). Logo, a verdadeira prova do direito natural é prova a príori, que se obtém mostrando a concordância ou discordância necessária de uma ação com a natureza racional e social. A prova a posteriori, obtida a partir daquilo que, em todos os povos ou nos mais civilizados, é tido como legítimo, é apenas provável e funda-se na presunção de que um efeito universal exige uma causa universal (Ibid., I, 1, 12). Distingue-se do direito natural o direito voluntário, que não se origina da natureza, mas da vontade, e pode ser humano ou divino (Ibid., I, 1, 13-15). Mas só o direito natural fornece o critério da justiça e da injustiça: “Por injusto entende-se o que repug-na necessariamente à natureza racional e social” (Ibid, I, 2, 1).
A doutrina do direito natural teve de Grócio a formulação mais madura e perfeita de sua longa história. Certamente essa formulação é condicionada pelo racionalismo geometrizante do tempo. Técnica racional, nos tempos de Grócio e Descartes, é técnica geométrica; nela, uma proposição só se justifica quando pode derivar, por dedução necessária, de um ou mais princípios evidentes. Mas já ao mostrar que as normas do direito natural podem ser deduzidas da exigência de existência de uma sociedade ordenada, Grócio estabelece, entre essa exigência e as normas, uma relação condicional que exprime bem o caráter de técnica. A concordância necessária entre a norma e a “natureza racional e social”, que ele assume como critério para decidir da validade da norma, isto é, de sua naturalidade, significa de fato o juízo sobre o caráter indispensável da norma para a possibilidade de relações entre os homens. Assim, para ele, o respeito à propriedade, o respeito aos pactos, o ressarcimento dos danos e a cominação de penalidades são condições indispensáveis de qualquer coexistência humana, constituindo, por isso mesmo, as normas fundamentais do direito natural. Ademais, o reconhecimento da independência desse direito em relação ao arbítrio humano e divino transformou-o em poderosíssima alavanca na luta pela liberdade do mundo moderno.
Contudo, o jusnaturalismo nem sempre permaneceu fiel às formulações de Grócio. Locke, no Ensaio sobre a lei natural, negava que essa lei fosse um ditame da razão, e considerava-a como sancionada e imprimida nos corações humanos por uma potência superior; desse modo, a razão só faz descobri-la, não sendo sua autora, mas sua intérprete (Law of Nature, V ed., 1954, p. 110). Nisso, adotava a doutrina de Hooker ( The Laws of the Ecclesiastic Politycs, 1594-97,1, 8), que, por sua vez, adotava a doutrina tomista. O segundo passo decisivo do jusnaturalismo moderno foi dado por Hobbes, graças a quem são eliminados da noção de direito natural alguns vestígios dogmáticos que ainda persistiam na doutrina de Grócio. Para Hobbes, a lei natural é, sem dúvida, “um ditame da reta razão”, mas a razão de que ele fala é a razão humana falível. “Por reta razão no estado natural da humanidade entendo, ao contrário da maior parte dos escritores que a consideram uma faculdade infalível, o ato de raciocinar, o raciocínio próprio de cada indivíduo, verdadeiro em termos de ações; que podem gerar vantagens ou prejuízos aos outros homens. Digo ‘própria de cada indivíduo’ porque, ainda que no Estado a razão (ou seja, a lei civil) do Estado deva ser observada por todos os cidadãos, fora do Estado, porém, onde ninguém pode distinguir a razão correta da falsa, a não ser confron-tando-a com sua própria razão, cada um deve considerar sua própria razão não só como regra de suas ações, realizadas por sua conta e risco, mas também como medida das razões alheias em relação às coisas. Digo ‘verdadeiro’, ou seja, derivado de princípios verdadeiros corretamente elaborados, porque toda violação das leis naturais resume-se na falsidade dos raciocínios, na estupidez dos homens que não julgam necessário à sua própria conservação cumprir seu dever para com os outros” (De cive, 1642, II, 1, nota). Nesse importantíssimo trecho de Hobbes, além da reafirmação do caráter racional do direito natural, comum a todo o jusnaturalismo moderno, encontra-se o primeiro e decisivo reconhecimento do caráter falível, finito ou humano da razão que funda o direito natural. Grócio transferira o direito natural da esfera da razão divina (na qual os escritores antigos e medievais a situavam) para a esfera da razão humana, mas continuara atribuindo a essa razão o caráter de infalibidade. Hobbes dá mais um passo ao negar esse caráter. Por fim, a razão “própria de cada indivíduo”, ou seja, própria de cada um e de todos os indivíduos humanos, é tribunal que julga da legitimidade ou naturalidade de uma lei; e faz esse julgamento em termos de possibilidade de ser inferida ou deduzida de princípios verdadeiros que, de resto, derivam todos de um princípio único, qual seja, “deve-se buscar a paz sempre que ela for possível; quando não, é preciso buscar socorro para a guerra” (Ibid., II, 2). Em De jure naturae etgentium (1672), Samuel Pufendorf fazia uma síntese feliz das doutrinas de Grócio e de Hobbes ao dizer que “a lei natural deriva dos ditames da reta razão, no sentido de que o intelecto humano é capaz de compreender com clareza, a partir da observação de nossa condição, que é preciso viver necessariamente do acordo com as normas do direito natural e investigar, ao mesmo tempo, o princípio de onde tais normas recebem sua sólida e clara demonstração” (De jure nat., II, 3, 8). Para Pufendorf, assim como para Hobbes, o princípio supremo do direito natural exprime a exigência da coexistência pacífica entre os homens (Ibid., II, 3, 8, 10). Graças a Grócio, Hobbes e Pufendorf, a doutrina tradicional do direito natural transformou-se em técnica racional das relações humanas, que, embora estritamente dependente do conceito de racionalidade geométrica predominante na época, constitui uma noção que ainda hoje poderia ser recuperada com vistas a uma “teoria geral do direito” (v. mais abaixo). A teoria de Hume não é mais que a reelaboraçâo em linguagem diferente e a retificação empirista dessa doutrina, enquanto a teoria de Spinoza, comparada a ela, representa um retorno à fase clássica da teoria do direito natural.
Quando Spinoza diz: “Cada um existe por supremo direito natural e faz o que decorre da necessidade de sua natureza” (Et., IV, 37, scol. 2), está apenas retornando à concepção dos estoicos, segundo a qual o direito natural nada mais é que a necessidade de todo ser de adequar-se à ordem racional do todo. Por outro lado, Hume nega o estado natural, qualificando-o de “ficção filosófica”, mas dificilmente sua crítica pode ser entendida como crítica ao direito natural. Quando ele insiste na subordinação de todas as normas, concernentes ao estado de paz ou ao estado de guerra, à utilidade humana, só faz repetir uma tese apreciada pelos jusnaturalistas modernos, em particular Hobbes. O caráter utilitário, eficiente, das regras que regem todos os tipos de relações humanas, enquanto destinadas a possibilitar essas relações, é ilustrado por Hume
com um exemplo que nos parece muito evidente, o das normas de tráfego. “As regras são necessárias sempre que entre os homens haja uma relação qualquer. Sem elas, nem mesmo podem passar uns ao lado dos outros na rua. Os carreteiros, os cocheiros, os postilhões obedecem a princípios para dar passagem, e esses princípios baseiam-se principalmente na comodidade e na conveniência recíprocas. Algumas vezes, são arbitrários ou pelo menos dependentes de alguma espécie de analogia caprichosa, assim como muitos raciocínios dos advogados” (Inq. Conc. Morals, IV, ao final). Assim, Hume certamente não admite o caráter de racionalidade necessária que Grócio atribuía às normas que regulam as relações humanas, mas compartilha da noção fundamental do jusnaturalismo moderno, de que tais normas constituem uma técnica razoável, ainda que nem sempre racional, das relações humanas.
2. DIREITO COMO MORAL.
A segunda concepção de direito, fundado na moral, prenuncia-se quando se começa a atribuir à moral caracteres que os autores até aqui examinados atribuíam ao direito Em todas as doutrinas do direito natural, nem chega a nascer o problema da distinção entre moral e direito. O direito natural é constantemente identificado com o que é bem ou justo na ordem das relações humanas, portanto com a verdadeira moralidade; por outro lado, a sua diferença em relação ao que Graciano e Tomás chamavam de lei humana e que Grócio chamava de lei voluntária é a distinção entre o que é justo e bom em si mesmo (verdadeiramente moral) e o que é justo ou bom só por participação, podendo, pois, não ser justo e bom, como de fato às vezes não é. Não há dúvida, portanto, de que nos autores até aqui examinados a esfera do direito natural coincidiu com a esfera que denominamos moral, porém talvez fosse mais exato dizer que eles simplesmente não faziam distinção entre direito natural e moral. O primeiro sinal dessa distinção pode ser visto na tentativa de Leibniz de fazer o direito natural derivar da moral, o que parece supor certa distinção entre as duas esferas. Leibniz diz que o direito é uma “potência moral” e que a obrigação é uma “necessidade moral”, entendendo por moral o que é natural no homem bom, ou seja, o amor ao próximo no sentido da alegria pela felicidade alheia. “Dessa fonte”, acrescenta, “flui o direito natural, que tem três graus.- o direito estrito, que é a justiça comutativa; a equidade ou caridade, que é a justiça distributiva; a piedade ou a probidade, que é a justiça universal. Esses graus correspondem aos três preceitos seguintes: ‘não prejudicar ninguém’, ‘atribuir a cada um o que lhe é devido’ e ‘viver honestamente’ (ou piamente)” (De notionibus júris et justitiae, 1693, Op., ed. Erdmann, p. 119). Já nessas formulações de Leibniz a esfera da moral é entendida como originária e primária em relação à do direito natural. Mas foi Cristiano Thomasius (1655-1728) o primeiro a expressar com clareza e impor na filosofia jurídica a distinção entre esfera jurídica e esfera moral, marcando assim a passagem da teoria do direito natural à teoria do direito fundado na moralidade. Thomasius distinguiu três “fontes” do bem: a honestidade (honestum), o decoro (decorum) e a justiça (justum). A honestidade é o bem mais alto e o seu oposto é a torpeza. A justiça opõe-se ao mal extremo, que é a injustiça. E o decoro é um bem intermediário e por isso imperfeito, sendo um mal imperfeito a falta de decoro (Fundamenta júris naturae et gentium exsensu communi deducta, 1705,1, 4, § 89). Correspondentemente, “a honestidade dirige as ações internas dos ignorantes; o decoro, as ações externas que visam a angariar a benevolência alheia; a justiça, as ações externas, para que não perturbem a paz ou a restituam quando for perturbada” (Ibid., I, 4, § 90). À norma da honestidade pertence uma obrigação interna que é a mais perfeita e não obriga em face dos outros homens, mas em face de si mesmo. Pertence à norma da justiça uma obrigação externa, segundo a qual “ninguém tem o direito em si mesmo”, visto que “todo direito é externo, não interno” (Ibid., I, 5, § 16, 17, 24). “Do que se disse”, acrescenta Thomasius, “infere-se que tudo o que o homem faz por obrigação interna e em conformidade com as regras da honestidade e do decoro é regido pela virtude em geral, e por isso o homem é dito virtuoso, e não justo; ao passo que o que ele faz segundo as regras da justiça, ou por obrigação externa, é regido pela justiça e faz que possa ser chamado de justo” (Ibid., I, 5, § 25). Com essas palavras, a esfera da moralidade e a esfera do direito são claramente distinguidas e contrapostas: a primeira é a esfera privada da interioridade ou, como Thomasius às vezes também diz, do “coração” (Ibid., I, 6, § 15, 18 etc); a segunda é a esfera da exterioridade e das obrigações para com os outros. Por isso, os deveres para consigo mesmo são extraídos por Thomasius do princípio da honestidade mais do que do princípio da justiça (Ibid., II, 2, § 2); o mesmo princípio do direito natural, do qual todas as normas de tal direito devem ser dedutíveis, é formulado por Thomasius principalmente em termos de vida moral: “É preciso fazer tudo o que é possível para tornar a vida dos homens mais longa e feliz e evitar tudo o que torna a vida infeliz e apressa a morte” (Ibid., I, 6, § 21).
Depois de Thomasius, a distinção entre a esfera do direito e a esfera moral tornou-se lugar-comum da filosofia. Wolff deduzia o primeiro corolário dessa distinção ao identificar o direito natural com a teoria da filosofia prática, ou seja, com a ética, a política e a economia (Log., Discursus prel., § 68). E Kant, que a reexpôs a seu modo, transformou-a num dos fundamentos da filosofia moral e jurídica moderna. Mas com a predominância dessa distinção, a teoria do direito natural tornava-se útil; o fundamento do direito era colocado ou reconhecido na moral e o próprio direito era entendido como uma forma reduzida ou imperfeita de moralidade. Um dos pontos básicos da doutrina de Kant é a distinção entre legalidade e moralidade. “A pura concordância e discordância de uma ação com a lei”, diz ele, “sem considerar o móvel da ação, chama-se legalidade (conformidade com a lei), ao passo que se tem a moralidade quando a ideia do dever, derivada da lei, é ao mesmo tempo móvel da ação (doutrina moral). Os deveres impostos pela legislação jurídica podem ser apenas deveres externos porque essa legislação não exige que a ideia do dever, que é totalmente interna, seja de per si motivo determinante da vontade do agente e, como tem necessidade de móveis apropriados às suas leis, só pode admitir móveis externos. A legislação moral, ao contrário, embora erija em deveres também ações internas, nem por isso exclui as ações externas, mas refere-se em geral a tudo o que é dever” (Met. der Sitten, I, Intr., § 3). Portanto, o direito é “o conjunto de condições por meio das quais o arbítrio de um pode ajustar-se ao arbítrio de outro, segundo uma lei universal da liberdade”, e pode ser representado como “uma coação geral e recíproca”, de tal modo que “direito e faculdade de coagir significam a mesma coisa” (Ibid., Intr. à doutrina do dir., § E). Sob esse aspecto, não há diferença entre direito natural e direito positivo, que são distintos só na medida em que o direito natural repousa exclusivamente em princípios apriori, ao passo que o direito positivo deriva da vontade do legislador (Ibid., Div. da doutr. do dir., § B).
Nessa doutrina de Kant há três pontos importantes: 1) o caráter primário e fundamental da norma moral, que é a única lei racional, e portanto dá origem à norma de direito; 2) o caráter “externo”, logo imperfeito, da norma de direito e, por conseguinte, o caráter imperfeito e incompleto da ação legal em relação à ação moral; 3) o caráter necessariamente coercitivo do direito Esses três pontos tiveram grande importância no desenvolvimento sucessivo da doutrina do direito; o primeiro deles é, obviamente, resultado da doutrina do direito natural.
E também inspira grande número de correntes da moderna filosofia do direito, mais precisamente aquelas que partem da distinção entre a esfera externa da ação, como pertencente ao direito, e a esfera interna da intenção ou da consciência, como pertencente à moralidade. Assim, a teoria do direito como “o minimum ético”, proposta por Jellinek (Die sozialethische Bedeutung von Recht, Unrecht, und Strafe, 1878), implica, ao mesmo tempo, que o direito deriva da moral e que o direito se reduz a uma esfera moral restrita ou diminuta. Concepção análoga foi sustentada por Croce, que a exprimia com a fórmula da identidade entre atividade jurídica e atividade econômica, identidade que servia para fazer a distinção entre direito e moral, ao mesmo tempo em que vinculava os dois, de acordo com a solução geral apresentada por Kant (Filosofia da pratica, 1909, pp. 370 ss.).
Outro modo de exprimir a mesma noção de direito pode ser visto na doutrina de R. Stammler, de direito como tendência imanente em todo direito positivo e da moralidade como perfeição do direito correto, isto é, como perfeição última deste (Lebre von richtigen Recht, 1902, p. 87). Ainda na mesma linha situa-se o russo Leon Petrazycki (Introdução ao estudo do direito e da moral, 1905; Teoria do direito, 1907), que fez a distinção entre as normas morais que estabelecem “obrigações livres”, ou seja, não conferem aos outros nenhum direito ou pretensão, e as normas morais que garantem tais obrigações em relação aos outros, ou seja, dão aos outros o direito de pretender o que a norma garante (Low and Morality, trad. in., 1955, pp. 46-47). E recentemente A. L. Goodhart reafirmava, ao menos em relação à Common Law anglo-saxônica, o fundamento moral do direito, entendendo-o como obrigação ou dever–ser (oughtness), que não pode ser reduzido à coerção externa ou à sanção (English Law and the Moral Law, 1953, pp. 18 ss.).
3. DIREITO COMO FORÇA.
Da negação do direito natural e da ligação da noção de direito com a de coerção externa ou sanção nasce a terceira concepção fundamental de direito, que o identifica com a força. A característica essencial da força é garantir a realização da norma, de tal modo que o direito como força é o direito realizado, ou seja, direito que ganha corpo e substância em instituições historicamente existentes. O pressuposto dessa corrente é, portanto, a negação do direito como dever–ser, aliás, do próprio dever–ser: é a identificação entre norma e realidade, entre dever–ser e ser. Este último aspecto exclui Hobbes dessa corrente doutrinal, pois, uma vez que ele não identificou o dever–ser com o ser, admitiu um direito natural que é a saída razoável do homem de uma situação hostil que ameaça destruí-lo, e não considerou que essa saída era infalivelmente garantida e plenamente realizada. A concepção do direito como força, com base na identificação entre dever–ser e ser, nasce com Hegel. Segundo ele, o direito é “uma existência em geral que seja existência da vontade livre” (Fil. do dir., § 29). Isso significa que o direito é uma liberdade realizada em instituições historicamente determinadas, que como tais nada têm mais a ver com a liberdade entendida como arbítrio individual. Hegel, como todo o Romantismo reacionário do séc. XIX, via na liberdade do indivíduo o conceito e a inspiração fundamental do Iluminismo e da Revolução Francesa, contra os quais entendia assestar sua doutrina. Citando a definição kantiana de direito (v. acima), ele observava: “A citada definição de direito contém a opinião, corrente sobretudo depois de Rousseau, segundo a qual o querer deve ser fundamento substancial e primeiro princípio, não enquanto racional em si e para si, não enquanto espírito e espírito verdadeiro, mas enquanto individualidade particular, enquanto vontade do indivíduo em seu arbítrio particular. Uma vez acolhido esse princípio, o racional certamente só pode aparecer como limitador dessa liberdade; logo, não como racionalidade imanente, mas só como universal externo, formal. Esse ponto de vista é desprovido de qualquer pensamento especulativo, e é rejeitado pelo conceito filosófico, visto ter produzido, nas mentes e na realidade, fenômenos cuja horribilidade só tem paralelo na superficialidade do pensamento em que se fundavam” (Ibid., § 29). Assim, os “horrores” da Revolução Francesa constituem um paralelo à “superficialidade” de entender a liberdade não como realidade histórica, mas como o dever–ser de uma norma. Consequentemente, Hegel acha que o direito é algo sagrado, só por ser “a existência do conceito absoluto, da liberdade autoconsciente”, e que um direito superior, ou seja, mais real, subordina um direito mais abstrato, ou seja, menos real ou imperfeitamente real. Assim, a esfera do “direito abstrato” subordina-se à da “moralidade”, e ambas se subordinam à da “eticidade”, que é a própria liberdade “transformada em mundo existente” (Ibid,, § 142). E a eticidade culmina no Estado, que é a realidade histórica máxima e, portanto, a mais elevada, a única verdadeira e definitiva realização do direito. “O ingresso de Deus no mundo”, diz Hegel, “é o Estado; seu fundamento é a potência da razão que se realiza como vontade. Como ideia de Estado não se devem ter em mente estados particulares, instituições particulares, mas considerar a Ideia por si, esse Deus real” (Ibid., § 258, Zusatz). Embora fale assim do Estado “em si”, que conserva caráter divino ainda que, em suas manifestações particulares, se mostre imperfeito, assim como um homem conserva caráter humano mesmo quando é aleijado ou deficiente, Hegel julga que todos os Estados são encarnações do “Espírito do povo”, a autoconsciência que um povo tem de sua própria verdade e de seu ser, ou a “cultura” de uma nação (Phil. der Geschichte, ed. Lasson, p. 93). O direito não é senão a realização da liberdade no Estado: existe só como lei do Estado. Correspondentemente, a liberdade existe só como obediência às leis do Estado. “Ao Estado pertencem as leis, e isso significa que o costume não subsiste só na forma imediata, mas na forma do universal, como objeto de um saber. O fato de esse universal ser conhecido constitui a espiritualidade do Estado. O Indivíduo obedece às leis, e sabe que nessa obediência está a sua liberdade; nela, portanto, entra em relação com seu próprio querer” (Ibid., p. 99).
Durante muito tempo a doutrina do direito natural afirmara que a norma natural é a própria vontade de Deus, ou vice-versa. Hegel afirma que Deus apareceu ou realizou-se na história: é o próprio Estado. A lei positiva é assim imbuída do valor e do prestígio que a tradição atribuía ao direito natural. Ao passo que, ao longo de toda a tradição, sobretudo no mundo moderno, esse direito, entendido como lei divina ou como princípio humano de razão, era um tribunal de apelação ao qual o homem podia recorrer, como de fato recorria, contra a injustiça ou a imperfeição do direito positivo, na doutrina de Hegel não existe nenhum tribunal de apelação e, aliás, a própria doutrina não passa de negação desse tribunal, que é entendido como fonte de pensamentos “superficiais” e de acontecimentos “horríveis”. O indivíduo não tem defesa contra o Estado ou o direito positivo; não pode desobedecer-lhes e nem mesmo discuti-los; e de fato, discutindo-os, estaria apenas contrapondo as exigências de seu intelecto “finito” à racionalidade “infinita” da história. O Estado tem sempre razão. Desse ponto de vista, ao direito só resta a força.
Algumas dessas características da doutrina hegeliana do direito, especialmente a redução do dever–ser ao ser, que é, de resto, o achatamento da norma no fato, são compartilhadas também por escolas que não se inspiram na concepção geral de Hegel. Assim, a escola histórica do direito, cujo representante principal é F. von Savigny (1779-1861), ao considerar o Estado como “manifestação orgânica do povo”, vê no direito um produto do “espírito do povo”, algo que encontra realidade ria vontade comum do povo (Über den Beruf unserer Zeit, 1814). Como última justificação do caráter histórico, portanto nacional, do direito, os seguidores dessa escola aduzem a consideração de que o direito, visando conservar a ordem nacional, contribui no campo da história para conservar e garantir a ordem cósmica desejada por Deus. J. Stahl diz que o direito é “a ordem vital do povo, especialmente da comunidade dos povos, com vistas à conservação da ordem cósmica estabelecida por Deus. Ele é uma ordem humana, mas a serviço da ordem divina determinada por um mandamento divino e fundada na permissão divina” (Phil. des Rechts, 1830, II, 1), p. 194). Ao contário de Hegel e da escola hegeliana, a escola histórica não identifica o direito realizado (ou Estado) com Deus, mas vê no direito algo que provém de Deus e cuja justificação consiste em subordinar-se à ordem cósmica estabelecida por Deus.
Pode-se ver a mesma orientação fundamental (cuja melhor expressão ainda é a doutrina de Hegel) em todas as doutrinas do direito que de algum modo relacionem a origem e o fundamento do direito com o “Espírito do povo”, com a “Nação” ou com o “Estado”, reduzindo, portanto, a obrigatoriedade do direito à força coercitiva de uma instituição histórica qualquer, considerada como instrumento providencial da ordem cósmica ou como essa mesma ordem em sua manifestação. De fato, é de se observar que a ênfase ou mesmo a exaltação do caráter “ético”, “racional”, “providencial” ou de qualquer forma necessário e necessitante do direito positivo têm como consequência simetricamente oposta a atribuição de caracteres idênticos ao direito natural. Se esses caracteres são atribuídos ao direito natural, reconhece-se ao mesmo tempo e com base nisso a possibilidade de discutir, avaliar e julgar o direito positivo, reconhecendo-se, portanto, implícita ou explicitamente, a possibilidade e a autonomia desse juízo. Mas quando esses caracteres são atribuídos apenas ao direito positivo, nega-se qualquer possibilidade de discutir, avaliar e julgar tal direito, negando-se portanto a autonomia e a própria possibilidade de qualquer juízo e até mesmo da mais inócua discussão sobre o direito E essa negação que muitas vezes as teorias desse gênero pretendem garantir e justificar.
4. DIREITO COMO TÉCNICA SOCIAL.
A concepção de direito como força nega o direito natural por negar qualquer dever–ser, e nega qualquer dever–ser por considerar o direito apenas como força necessariamente realizadora. Não prescinde de considerações de valor e, particularmente, da ideia de justiça, ou seja, de um tipo de coexistência perfeita entre os homens, mas considera o valor ou a justiça já desde sempre realizados: como dizia Hegel, a razão não é tão impotente que não possa realizar-se no mundo. As correntes formalistas da moderna filosofia do direito tendem, ao contrário, a prescindir de qualquer ideal valorativo, ou seja, da própria noção de justiça, que é entregue à esfera política e moral, mas considerada estranha à do direito O direito natural, como delineamento normativo de condições perfeitas, desse ponto de vista é mera ficção: o único direito de que se pode legitimamente falar, que pode ser objeto de consideração científica, e não de desejos ou de aspirações idealizadoras, é o direito positivo. Mas o direito positivo nada tem de perfeito ou de transcendente, não inclui nenhum valor último e absoluto. É simplesmente um instrumento para alcançar certos fins; e, como todo instrumento, pode ser julgado em termos da eficiência, da capacidade de garantir uma ordenação (qualquer) da sociedade humana. Sob esse aspecto, o direito deve ser reconhecido como um dever–ser, como uma regulamentação do comportamento humano, com a qual esse comportamento pode até não se ajustar.
Nessa concepção, confluem vários elementos historicamente reconhecíveis: a velha ideia do direito como utilidade, que sofistas, epicuristas e céticos já haviam defendido na Antiguidade e que no mundo moderno foi retomada por Hobbes e Hume; e, em especial, a ideia central do jusnaturalismo moderno de que o direito é a racionalidade das relações humanas (pacíficas ou não) e que, portanto, em sua esfera inclui-se qualquer regulamentação racional de tais relações. Este último também é o conceito de direito aceito pela teoria formal, se bem que a polêmica tradicional de ordem ideal e perfeita da comunidade até agora impediu que essa teoria se identificasse em seu precedente histórico mais ilustre e significativo. Não há dúvida de que a ideia de direito como técnica ou instrumento para possibilitar as relações humanas, tanto na paz quanto na guerra — ideia exprimível na forma de imperativos hipotéticos ou de proposições condicionais do tipo se… então—, é comum ao jusnaturalismo clássico de Grócio, Hobbes, Pufendorf e a outros defensores hodiernos da “teoria geral do direito”
Pode-se ver um precedente dessa teoria na doutrina de John Austin que definiu o direito como “regra formulada para que um ser inteligente guie outro ser inteligente e tenha poder sobre ele”. direito seria, portanto, mando-, expressão da vontade de um indivíduo, injuntiva para o indivíduo a quem é dirigida, no sentido de obrigá-lo a fazer o que o mandante requer (Lectures on Jurisprudence, 1861, 5a ed., 1885, I, pp. 88 ss.). As características fundamentais da doutrina de Austin são duas: la redução do direito a uma norma injuntiva, enquanto mando; 2a caráter racional, ou pelo menos razoável, desse comando, visto emanar de um ser inteligente e dirigir-se a outro ser inteligente. Essas características também se encontram em doutrinas aparentemente diferentes da de Austin, como p. ex. na doutrina sociológica de Eugen Ehrlich, para quem “o direito é uma organização, vale dizer uma norma que atribui a cada membro da associação sua posição na comunidade, seja ela de preeminência ou de sujeição, bem como seus deveres” (Grundlegung der Soziologie des Rechts, 1913, p. 18). Nessa doutrina, o conceito de ordenação prevalece sobre o de mando, mas a ordenação, assim como o mando de Austin, é uma norma apta a realizar certa forma de convivência. Kelsen, hoje o maior defensor e representante da teoria formal do direito, remete-se a esses predecessores. Distingue-se de Ehrlich por não julgar que o conceito de ordenação baste para constituir o direito, porquanto nem sempre a ordenação tem força injuntiva; e distingue-se de Austin por julgar que tal força injuntiva não consiste no mando, mas no dever–ser do direito, ou seja, na estrutura normativa do próprio direito Mais precisamente, para Kelsen o direito é “a técnica social específica de uma ordenação coercitiva”, sendo, pois, caracterizado pela “organização da força” (General Theory of Law and State, 1945,1, A, d; trad. it., pp. 19 ss.). A eficiência dessa técnica é condicionada, segundo Kelsen, por sua coerência, que pode ser medida a partir de uma “norma fundamental”, que serviu de base para a criação das várias normas de determinada ordem jurídica. “O sistema do positivismo jurídico, diz Kelsen, “exclui a tentativa de deduzir da natureza ou da razão normas substanciais, que, estando além do direito positivo, possam servir-lhe de modelo, tentativa cujo êxito é sempre aparente, e que termina com fórmulas que só têm a pretensão de possuir conteúdo. Ao contrário, examina com senso de responsabilidade os pressupostos hipotéticos de cada direito positivo, ou seja, suas condições meramente formais” (ibid., Ap., IV, B, c, p. 443). Kelsen está cônscio do parentesco que, sob esse aspecto, seu “positivismo jurídico” tem com o jusnaturalismo clássico, especialmente com a forma assumida na filosofia kantiana (Ibid., pp. 445, 453), embora continue dizendo que o positivismo rejeita “a ideologia de que a teoria jusnaturalista se vale para justificar o direito positivo” (Ibid., Apêndice, IV, B, h, p. 453). Na realidade, no jusnaturalimo ele não distingue suficientemente a fase moderna da fase antiga e assim atribui à sua fase moderna a noção da ordem perfeita e providencial da justiça, que caracterizava a fase antiga e entrou em crise com Grócio. Na realidade, a filosofia política e jurídica contemporânea ainda não conseguiu recuperar os ensinamentos fundamentais da teoria do direito natural, especialmente em sua formulação jusnaturalista de Grócio a Hume. O que impediu ou obstou essa recuperação foi a crença de que aquela teoria se fundava num conceito “metafísico” ou “platônico” de justiça, além da exigência de eliminar da consideração “científica” do direito qualquer ideal valorativo. Mas na realidade o jusnaturalismo moderno não se apoiou em determinado ideal de justiça, mas na exigência de que o direito, sejam quais forem as normas particulares em que se concretize, seja eficiente no objetivo de possibilitar as relações humanas. Nessa exigência, como se viu, Grócio e Hume estão de acordo embora possam dis-sentir quanto ao caráter “necessariamente racional” ou simplesmente “útil”, logo razoável, do direito. Ora, o que se espera de uma técnica, qualquer que seja ela, é a eficiência. E o juízo sobre a eficiência de uma técnica não pode fundar-se exclusivamente em sua coerência interna, como pretende Kelsen. É claro que há uma condição fundamental para que a uma técnica qualquer conserve sua eficiência e a aumente: é a retificabilidade da própria técnica. De fato, quando uma técnica qualquer pode ser oportunamente modificada e adaptada às circunstâncias, sem mudar substancialmente, conclui-se que é capaz de conservar e de incrementar a sua eficiência. Portanto, toda técnica eficaz deve ser auto-retificável; essa é, na verdade, a única vantagem que a técnica da ciência experimental, desde Galileu até hoje, possui sobre as outras. Desse ponto de vista, o juízo técnico sobre determinado sistema de direito é o juízo sobre a sua capacidade de corrigir ou eliminar suas próprias imperfeições, de tomar-se mais ágil e, ao mesmo tempo, mais rigoroso. Não é um juízo que se refira à mera coerência do sistema, nem um juízo de valor resultante do confronto do sistema com um ideal prévio de justiça. E um juízo concreto e diretivo, capaz de influir na evolução histórica do direito.
O quadro acima, sobre as teorias filosóficas do direito, mostra definitivamente que não tem sentido qualquer tentativa de definir as relações entre direito e moral, entendendo tanto o direito quanto a moral como duas categorias “eternas” do espírito. De fato, direito e moral devem ser considerados idênticos tanto do ponto de vista da teoria do direito natural quanto do ponto de vista da teoria do direito como força. Obviamente, a teoria segundo a qual o direito se apoia na moral faz uma distinção entre ambas e, na realidade, é a teoria de tal distinção. Quanto à teoria formal do direito, provavelmente permite tanto uma quanto outra solução (v. ética). [Abbagnano]