gr. pneuma; noûs
lat. spiritus
princípio da vida intelectual, inteligência. — A noção de espírito é mais precisa do que a de alma, que pode designar simultaneamente o princípio da vida e o do pensamento (no século XVII falava-se, sem dúvida, dos “espíritos animais”, que em Descartes designavam o que se denomina atualmente de “influxos nervosos”; mas esse sentido não é mais muito usado). Em compensação, a noção de “espírito” é mais vasta que a de “consciência”, objeto da análise psicológica. É uma noção reflexiva ou metafísica: o espírito é o princípio de toda descoberta; não é uma faculdade, mas um “ato”, do qual temos intuição cada vez que compreendemos efetivamente alguma coisa em qualquer domínio que seja. O “espírito” opõe-se à “matéria”; o “espiritualismo” é a doutrina segundo a qual a matéria liga-se no fundo a uma forma de energia irrepresentável e de natureza espiritual (Leibniz). Opõe-se ao “materialismo”, segundo o qual “o espírito é o mais elevado produto da matéria” (Lênin). [Larousse]
O “espírito” (do latim: spiritus) é um ser imaterial, simples e substancial, capaz de possuir-se a si mesmo mediante a autoconsciência e a livre autodeterminação, bem como de compreender e de realizar valores supra-sensíveis (= espírito subjetivo). Sua imaterialidade exclui não só o ser–matéria, mas também aquela. “íntima vinculação à matéria”, mercê da qual, p. ex., a alma das plantas e dos animais não pode existir nem operar sem a mais estreita união com o corpóreo (hilemorfismo). Sua simplicidade implica uma concentração tal de plenitude de ser e de força, que não permite que ele seja composto de partes entre si separadas espacialmente nem de partes essenciais. Na simplicidade e na imaterialidade do espírito radicam, por um lado, a sua capacidade de possuir-se pela autoconsciência (consciência) e, por outro lado, a sua aptidão para conhecer todo ente em sua verdade, bondade e unidade e para realizar valores supra-sensíveis. Não coarctado em sua ação a restritos domínios parciais da realidade (como o é a alma sensitiva determinada somente aos bens dos sentidos), mas absolutamente ordenado ao ser, o espírito possui uma abertura ilimitada de sua faculdade cognitiva (entendimento, razão), votada à verdade enquanto tal, e, como consequência, uma capacidade ilimitada de sua vontade votada ao valor como tal. Nesta amplitude de suas disposições naturais e da “soberania”, nela implicada, sobre valores parciais delimitados, radica a aptidão para escolher livremente entre valores parciais limitados conhecidos e, com isso, para livremente se auto-determinar (liberdade da vontade). Por último, a natureza do espírito, com sua capacidade nunca susceptível de ser totalmente preenchida pelos bens de uma existência limitada, exige uma ilimitada permanência no ser: ele é feito para uma vida imortal (imortalidade). O espírito, enquanto sujeito destas perfeições e possibilidades ontológicas, é uma essência substancial e sua perfeição fundamenta de maneira natural o ser-pessoa (pessoa).
São vários os graus de perfeição do espírito. O espírito divino, infinito, exclui toda potencialidade, todo ser e acontecer puramente acidentais e qualquer união com outro. Os seres criados puramente espirituais (de que nos fala a revelação, mas cuja existência continua sendo problemática no terreno da pura filosofia) excluem também toda vinculação de seu ser, conhecer e querer, com o material. A alma espiritual humana, como forma substancia! do corpo, tem uma relação essencial necessária com este, muito embora a união de fato com o corpo não seja condição de sua existência (corpo e alma [Relação entre], hilemorfismo). A alma, enquanto tal “forma”, constitui juntamente com o corpo uma unidade de operação na esfera do conhecimento e apetite sensoriais, estando outrossim, em suas operações espirituais, unida, ao menos indiretamente, às condições prévias de ditas operações, enquanto dura a união com o corpo; porque o entendimento elabora a maior parte de seus conteúdos conceptuais a partir de imagens sensíveis, e o querer e a vivência de valor estão ligados à alma toda sensitivo-espiritual (entendimento, pensamento, vontade). Desligada do corpo, a alma poderá manifestar mais livremente sua natureza espiritual na visão intuitiva da própria essência e do ser espiritual alheio. A existência de seres espirituais terrestres, além da alma humana, p. ex., espectros, duendes, é coisa do domínio da ingênua fantasia criadora de lendas, nunca porém demonstrada pelos fatos.
Como portador (sujeito) do impulso tendente à realização de valores, o espírito subjetivo manifesta-se não só nas atitudes de valor e nas convicções relativamente estáveis, por ele formadas, como também nas obras do espírito: ciência, arte, técnica, indústria, instituições sociais, etc. (espírito objetivo [ser espiritual]). Quando o espírito humano, ao formar valores culturais, esquece em demasia, por efeito de excessivo espiritualismo, sua vinculação ao ser global do homem, esse exclusivismo traduz-se em formas defeituosas da vida cultural. Uma unilateral filosofia da vida (filosofia da vida) inferiu daí o direito de proscrever o “espírito” com recriminações fantasticamente exageradas, tendo-o na conta de princípio inimigo da vida, e concebendo-o preferentemente como faculdade dos conceitos (cf. L. Klages, Der Geist ais Widersacher der Seele, “O espírito como adversário da alma”). Na realidade, o que passa é que a alma espiritual humana é, ao mesmo tempo, princípio da vida sensitiva (alma, corpo e alma [relação entre]). Sendo assim, o espírito humano exterioriza-se, por assim dizer, no vital, opõe a si mesmo sua antítese a-espiritual, mas não só como algo oposto ao espiritual, senão como campo de sua atividade e expressão, unido porém radicalmente ao ser total do homem. Quando o sensível-vital se subtrai a esta unidade do homem global, para seguir unicamente sua própria tendência, atua de maneira destrutiva. Sendo o espírito aquilo que no homem há de mais elevado e o princípio formativo de todos os valores culturais e, além disso, superando, em virtude de sua imortalidade, o domínio total dos valores terrenos, o cultivo adequado da vida espiritual constitui a mais nobre tarefa da formação humana. — Willwoll. [Brugger]
Dada a multiplicidade de significados do vocábulo Espírito, é recomendável utilizá-lo em geral, para designar todos os diversos modos de ser que, de algum modo, transcendem o vital. Em particular, convém restringi-lo para designar um dos conceitos fundamentais do idealismo alemão, que alcançou grande desenvolvimento com Hegel e se manifestou durante este século numa série de doutrinas sobre o ser espiritual, quer como um modo de ser específico, quer como a maneira de ser própria do homem como “ser histórico”. Referir-nos-emos às correntes mencionadas. Espírito foi um dos vocábulos mais abundantemente usados pelos idealistas alemães. Era importante dentro desse pensamento a ideia de uma contraposição entre Espírito e Natureza e, por outro lado, a ideia de uma conciliação dos dois mediante o Espírito. Hegel fala, por vezes, de ideia e de ideia absoluta como se fossem o mesmo que o Espírito. E, em certa medida, são o mesmo, só que a ideia é o aspecto abstrato da realidade concreta e viva do Espírito. A dificuldade de circunscrever a noção de Espírito deve-se a que, de certa maneira, o o Espírito é tudo. Ora, antes de ser tudo ou, mais propriamente, “a verdade de tudo”, o Espírito começa por ser uma verdade parcial que precisa de se completar. O Espírito aparece como o objeto e o sujeito da consciência de si. Mas o Espírito não é algo particular e muito menos uma substância particular:
o Espírito é o universal que se desenvolve a si mesmo. A “fenomenologia do Espírito” é a descrição da história desse auto-desenvolvimento, no decurso do qual se encontram os objetos em, por e também contra os quais se realiza o Espírito. Ao atingir o último estádio do seu desenvolvimento, o Espírito reconhece-se como uma verdade que é tal só por que absorveu o erro, a negatividade e a parcialidade. A filosofia é, de certo modo, “filosofia do Espírito”.
Apoiando-se explicitamente em Hegel, mas por reação contra ele, Benedetto Croce tentou uma fenomenologia do Espírito na qual a absorção dos diferentes graus por uma síntese não equivaleriam a uma supressão, mas precisamente a uma afirmação do distinto. Os diferentes graus do Espírito estão, segundo Croce, implicados entre si; constituem um círculo no qual não pode indicar-se qual é a realidade primária, porque qualquer grau se apoia nos restantes e, ao mesmo tempo, completa-os. Pode considerar-se o Espírito no seu aspecto teórico ou prático: no primeiro, é consciência do individual, e é este o tema da estética, ou consciência do universal concreto, e é este o tema da lógica; no segundo, pode-se considerá-lo como querer do individual, ou economia, ou como querer do universal, ou ética. [Ferrater]
(gr pneuma, noûs; in. Mind, Spirit; fr. Esprit; al. Geist; it. Spirito).
Podem-se distinguir os seguintes significados:
1) Alma racional ou intelecto em geral; esse é o significado predominante na filosofia moderna e contemporânea, bem como na linguagem comum.
2) Pneuma ou sopro animador, admitido pela física estoica, passando desta a várias doutrinas antigas e modernas. É o significado originário do termo, do qual derivaram todos os outros. Esse significado ainda permanece nas expressões em que espírito significa “aquilo que vivifica”. Kant usou o termo nesse sentido em sua teoria estética: “No significado estético, espírito é o princípio vivificante do sentimento. Mas aquilo com que esse princípio vivifica a alma, a matéria de que se serve, é o que confere impulso finalista à faculdade do sentimento e a insere num jogo que se alimenta de si mesmo e fortifica as faculdades de que resulta” (Crít. do Juízo, § 49; Antr., § 71 b). Foi com esse sentido que a palavra espírito permaneceu no uso corrente, em que às vezes se contrapõe a “letra”, para indicar o que vivifica ou, sem metáfora, o significado autêntico de alguma coisa. Nesse sentido, foi também empregada por Montesquieu no título da sua obra, O espírito das leis.
3) Substâncias incorpóreas, ou seja, anjos, demônios e almas dos mortos. Era nesse sentido que Locke empregava a palavra spirit (reservando mind a espírito no significado le) e dizia: “Com exceção de algumas pouquíssimas ideias que obtemos mediante a reflexão e tudo o que, a partir delas, podemos reunir a respeito do Pai de todos os espírito, o eterno e independente autor deles, de nós e de todas as coisas, até mesmo da existência de outros espírito, não temos informação segura a não ser por via de revelação” (Ensaio, IV, 3, 27). E Kant, em Sonhos de um visionário esclarecidos por sonhos da metafísica (1766), entendia Geist no mesmo sentido: “espírito é um ser dotado de razão. Não é, pois, um dom maravilhoso ver espírito, já que quem vê homens vê seres dotados de razão. Mas prossigamos: esse ser que no homem é dotado de razão é apenas uma parte do homem; e essa parte, que o vivifica, é um espírito” (Träume eines Geistersehers, I, 1). Como Locke, Kant é cético sobre a existência do espírito nesse sentido e, em todo caso, julga impossível demonstrá-la. Também com esse sentido, a palavra espírito permaneceu no uso corrente (v. anjos; demônio; espiritismo).
4) Matéria sutil ou impalpável que é a força animadora das coisas. Esse significado, derivado do estoicismo, encontra-se com frequência nos magos do Renascimento, sobretudo em Agripa (De oceulta philosophia, I, 14) e em Paracelso (Meteor, pp. 79 ss.).
5) Em relação mais estreita com o significado le, esse termo às vezes significa disposição ou atitude, como nas célebres expressões de Pascal “espírito de geometria” e “espírito de finura” e em expressões correntes como “espírito religioso”, “espírito esportivo”, etc.
Desses cinco significados, o único estritamente vinculado à problemática da filosofia moderna é o primeiro. Foi Descartes quem introduziu e impôs esse significado. “Portanto, a rigor, não sou mais que uma coisa que pensa, um espírito, um intelecto ou uma razão, termos cujo significado antes me era desconhecido” (Méd., II). E na resposta às segundas objeções ele esclarece, em forma de definição, o significado do termo: “A substância na qual reside imediatamente o pensamento aqui é chamada de espírito. Embora esse nome seja equívoco, porque às vezes é atribuído também ao vento e aos licores sutilíssimos, não conheço nenhum outro mais apropriado” (II Rép., def. VI). Embora nessa expressão de Descartes a noção de substância sirva de intermediária entre o significado novo e o antigo (substância incorpórea) do termo, seu uso em Descartes acaba por tomá-la equivalente a consciência. Substância pensante, consciência, intelecto ou razão são, portanto, sinônimos de espírito. Locke, como se disse, usava o termo mind no mesmo sentido (cf., p. ex., Ensaio, II, 1, 5). Leibniz dizia: “O conhecimento das verdades necessárias e eternas é o que nos distingue dos simples animais e nos dota de razão e ciência, elevando-nos ao conhecimento de nós mesmos e de Deus. É isso o que em nós se chama alma racional ou espírito” (Monad., § 29). Berkeley, por sua vez, adotou esse termo e estabeleceu suas equivalências: “Esse ser ativo e perceptivo é o que chamo de mind, spirit, soul (alma) ou myself (eu)” (Principles of Human Knowledge, I, § 2). Hume entendia esse termo como alma, intelecto ou eu (Treatise, I, 4, 2, ed. Selby-Bigge, p. 207). Essas equivalências mantêm-se constantes no uso posterior do termo: assim, os problemas a que ele dá origem são os vinculados às noções de alma, consciência, intelecto, razão e eu. Nesses verbetes, encontrar-se-á a indicação dos problemas que tiveram origem na noção de espírito em suas diversas especificações. Aqui basta recordar que alguns dos empregos paradoxais às vezes encontrados na filosofia contemporânea se referem na realidade ao significado tradicional instituído por Descartes. Assim, quando L. Klages contrapôs espírito a alma, entendeu por espírito o conjunto de atividades racionais, confrontadas com as tendências instintivas representadas pela alma (Der Geist ais Widersacher der Seele, 1929). Por outro lado, G. Santayana entendeu espírito no sentido — também cartesiano — de consciência: “Por espírito entendo não só a intuição passiva implícita em ser dado de essência, mas também o entendimento e a crença que pode acompanhar a presença da essência” (Scepticism and Animal Faith, cap. 26, Dover Publ., p. 272). De resto, chega a ser supérfluo advertir que, na expressão “ciências do espírito”, difundida por Dilthey, entende-se por espírito a atividade racional do homem (v. classificação das ciências).
Foi só com Hegel que se teve uma especificação diferente da noção de espírito, com as noções de espírito objetivo e espírito absoluto. Se por espírito subjetivo ele entende o espírito finito, ou seja, alma, intelecto ou razão (espírito no significado cartesiano do termo) (Enc., § 386), por espírito objetivo ele entende as instituições fundamentais do mundo humano, quais sejam, direito, moralidade e eticidade, e por espírito absoluto entende o mundo da arte, da religião e da filosofia. Nessas duas concepções, o espírito deixou de ser atividade subjetiva para tornar-se realidade histórica, mundo de valores. Enquanto espírito objetivo é o mundo das instituições jurídicas, sociais e históricas que culmina na eticidade (que compreende as três principais instituições históricas: família, sociedade civil e Estado), espírito absoluto é o mundo da Autoconsciência, que se revela a si mesma nas produções superiores, que são a arte, a religião e a filosofia (Ibid., §§ 486, 553). Para Hegel, as três formas de espírito sâo manifestações da Ideia, da Razão infinita, mas é só no espírito objetivo e no espírito absoluto que a Ideia ou Razão se realiza plenamente ou chega à manifestação acabada ou adequada. Essas noções caracterizam o idealismo romântico de inspiração hegeliana, que identificou espírito com sujeito absoluto ou eu universal, como o fez Gentile (Teoria generale dello S., 1920), ou com Conceito, em sua universalidade ou concretude, que é a Razão absoluta, como o fez Croce (Lógica. 1920, pp. 26 ss.).
Mesmo fora do idealismo, todavia, a noção do espírito objetivo, como mundo de instituições histórico-sociais, de valores institucionalizados ou de formas de vida, foi acolhida e estudada. De fato, foi aceita por Dilthey, que por ela entendeu “a conexão estrutural das unidades vivas, que continua nas comunidades” e criticou o caráter absoluto e dogmático dessa noção em Hegel (Gesammelte Schriften, VII, p. 150; cf. P. Rosse, Lo storicismo tedesco contemporâneo 1956, pp. 104-105). Nesse sentido limitado, a noção foi aceita por espírito Spranger, que entendeu como ciência do espírito a disciplina que cuida das formações ultra-pessoais ou coletivas da vida histórica (Lebensformen, 1914, p. 7). Foi aceita igualmente por N. Hartmann, que considerou o espírito objetivo como uma superestrutura que se eleva acima do mundo orgânico. Ao espírito objetivo pertenceriam todas as produções espirituais: letras, artes, técnicas, religiões, mitos, ciências, filosofias, etc. Ele é o verdadeiro protagonista da história, segundo Hartmann (Das Problem desgeistigen Seins, 1931, P- 262). Acima do espírito Objetivo, Hartmann situa o espírito vivo, que seria a unidade do espírito objetivo e da consciência pessoal (Ibid., p. 259). Por certo Hartmann ainda está muito próximo da inspiração hegeliana. Mas o caráter impessoal e objetivo do espírito também é ressaltado por Dewey, que parte de pressupostos filosóficos diferentes: “Toda a história da ciência, da arte e da moral demonstra que o espírito que aparece nos indivíduos não é, como tal, espírito individual. É em si mesmo um sistema de crenças, de reconhecimentos e de ignorâncias, de aceitações e de recusas, de expectativas e de apreciações de significados, e foi instituído sob a influência do costume e da tradição” (Experience and Nature, 1926, p. 218).