univocidade

Um termo ou conceito é unívoco, quando é aplicado a diversos seres com a mesma significação. Animal é unívoco quando aplicado a boi, cavalo, símio, etc. Quando usamos, porém, “que animal!”, referindo-nos a um homem, em sentido naturalmente pejorativo, não o usamos univocamente, mas analogamente, porque, aí, retiramos o racional, que caracteriza a essência do homem. O mesmo quando empregamos “é águia”, um “leão”, um “urso”, etc.

A univocidade leva-nos ao monismo, que admite uma única: realidade; Deus (monismo panteísta) ou matéria (monismo materialista) ou ao pensamento (monismo idealista).

Logicamente considerado, um termo é unívoco quando significa (aponta, como sinal) uma razão simplesmente uma, convenientem multis distritibutive (unum in multis), isto é, uma conveniente, distributivamente, a muitos (um em muitos), como o definem os escolásticos. A sabedoria de Salomão e a sabedoria de um homem experiente, enquanto sabedoria, em sua quididade, isto é, em sua formalidade, é unívoca, pois sabedoria é sabedoria, e nada mais. A univocidade, aqui, é puramente formal, porque a sabedoria deste, e neste homem, consta de um saber qualitativamente de outro, pela soma maior ou menor de conhecimentos que um tenha em relação a outro. (Estamos aqui numa univocitas secundum nomen ac rationem, que é uma univocidade de quarto grau, a menor para os escotistas.) Mas a sabedoria, como sabedoria, é unívoca. Este ponto é importante, para, mais adiante, compreendermos a polêmica entre os escotistas, que se colocam, quanto ao ser, no campo da univocidade, com os tomistas, que se colocam no campo da analogia.

A posição escotista ante a univocidade e a analogia

O primeiro objeto do nosso conhecimento é o ser. Esta afirmativa de Duns Scot encontra seu precursor em Avicena, cuja influência, no Doctor Subtilis, é inegavelmente importante.

Porque tudo quanto conhecemos é, e por estar o ser presente em todo o nosso conhecimento, dele partimos para a ele chegar. Mas o ser é um objeto de uma indeterminação total, mas perfeitamente adequado ao nosso conhecimento. Como se poderia dar tal assimilatio do ser, sem que tivéssemos aptidão a conhecer, ou em nossas palavras, sem esquemas que a ele se acomodassem e permitissem a assimilação aos mesmos? E se o ser é captado em tudo quanto é assimilado, em todo o conhecimento, quer dizer que temos um só esquema ao qual é assimilado sempre o mesmo objeto, e, consequentemente, afirmaríamos a univocida-de do ser. Mas até onde alcança essa univocidade é o que pretendemos esclarecer na doutrina escotista, pois muitas têm sido as afirmativas que se opõem flagrantemente ao genuíno pensamento do grande franciscano.

A leitura dos textos da obra do Doctor Subtilis é quase proibitiva, porque só modernamente algumas publicações franciscanas nos tornam acessível o conhecimento do pensamento de Duns Scot, enquanto não fôr totalmente editada a grande edicção da “Opera Omnia”, da qual até o momento saíram apenas dois “volumes, já que os textos estão em edições raras, e entre nós de difícil manuseio. Como, por princípio, só tratamos dos autores dos quais manuseamos os textos, e os lemos com o máximo cuidado e atenção, tivemos ocasião, vencendo grandes dificuldades, de procurar nos textos do Doctor Subtilis aquelas passagens que jios servissem de guia para a boa elucidação do seu pensamento. Ajudaram-nos nessa pesquiza a obra de seus grandes comentadores franciscanos.

Parthenius Minges em sua “Joannis Duns Scoti Doctrina Philosophica et Theologica”, obra fundamental para os que desejam estudar o escotismo, oferece-nos uma série de tópicos, que nos colocam com clareza o seu pensamento, que nós procuraremos sintetizar, expondo-o no nosso tecnicismo, e segundo os princípios da decadialéctica, dos quais já estão familiarizados os nossos leitores.

Duns Scot sintetiza o que concebe por unívoco nestas suas palavras: “univocum est, cujus ratio est in se una, sive illa ratio sit ratio subjecti, sive denominei subjectum, sive per accidens dicatur de subjecto”.

Um termo, portanto, será unívoco quando, em todos os seus empregos, diz ele a mesma coisa (sive per accidens dicatur de subjecto).

Em qualquer sentido que se empregue o ser é sempre ser o que se diz. Tudo quanto está no ser é ser. Há, entretanto, termos que são apenas denominações do ser, como “ato” e “potência”, mas todo ser ou é ato ou é potência.

Chama-as Duns Scot de differentiae ultimae (diferenças últimas), enquanto os transcendentais, que já estudamos, são propriae passiones entis (propriedades últimas dos entes) como o bem, o verdadeiro, etc.

O ser é unívoco quando se refere à essência, in quid. Não é unívoco, porém, quanto às determinações do ser, nem quanto aos transcendentais, que qualificam a essência do ser, salvo quanto à virtualidade. (“Quantum ad primum dico quod ens non est univocum dictum in quid de omnibus per se intelligibilibus, quis non de differentiis ultimis nec propriis passionibus entis” Scot, cit. por Gilson, op. cit. p. 95).

Toda a leitura da obra de Parthenius Minges, I pág. 20, em diante, oferece pleno esclarecimento ao tema, pois Scot não rejeita a analogia, embora afirme a univocidade, (em termos), do ser, pois não é unlvocamente predicável das diferenças últimas, pois do contrário estas não seriam diferenças do ser, pois o ser, enquanto tal não poderia servir para diferenciar o ser enquanto ser. Há, deste modo, o que não é propriamente o ser, mas apenas qualificação ou determinação deste, do qual não se pode predicar univocamente o ser (do ser, enquanto ser pode-se predicare in quid, isto é, referindo-se à sua essência como tal, enquanto das diferenças últimas, por ex., se predica in quale, porque se predica uma diferença específica ou um acidente).

O conceito de ser é um conceito simples. Para sair da indeterminação do ser é preciso um conceito composto, que será um esquema conceitual formado de dois conceitos. Para tal será necessário que um conceito esteja em face do outro numa relação de ato e potência. Um dos conceitos terá a função de determinante (característica do ato) e o outro, a de determinável (característica da potência).

O conceito de ser, como esquema noético, isto é, como esquema construído por nós, é determinável, pois por sua comunidade não inclui nenhuma determinação. Esse conceito, que é um puro determinável, nos mostra Gilson, comentando as ideias de Duns Scot, precisa estar composto com outros determinantes, que sejam imediatamente atos.

Observava Duns Scot que os filósofos que haviam considerado o ser sob um modo, por exemplo, fluídico, como o fogo, ou líquido, com a água, podiam não ter certeza de que o ser, em seu princípio, fora assim ou era assim, nem poderiam prová-lo suficientemente.

Não podiam ainda ter certeza se fora criado ou incriado. Não podiam ter certeza de que nem a água nem o fogo fossem o ser primordial, e tanto é verdade que entre eles surgiam discórdias e muitos sustentavam opiniões contrárias.

Mas não há discórdia filosófica num ponto: é que todos, pelo menos, sabem que o principio primeiro é ser, sem, no entanto, ter certeza quanto à natureza desse ser.

O intelecto humano não pode pensar criado nem incriado, modalidade esta ou aquela, sem pensar no ser, portador de tais pensamentos. Mas pode pensar no ser sem determiná-lo por esta ou aquela diferença. E esse ser indeterminado não é um puro nada, porque dele surge tudo, é ele o suppositum de tudo, o sustentáculo de tudo. Se fora nada, um nada absoluto, como poderia ter eficácia para criar, quando essa eficácia já é ser?

Quando Hegel considerava que o Ser indeterminado e o Nada eram “idênticos”, fazia questão de ressaltar um ponto que passou desapercebido a muitos dos que estudaram a sua obra: é que havia uma diferença entre o ser indeterminado e o nada (e nada aqui, não era o nada absoluto, metafísico): e que, do ser indeterminado, seguia-se o ser determinado, enquanto o nada seria privação da determinação. E dessa forma, o ser permanecia teticamente colocado.

No estado actual da intelectualidade humana, (intellectus viatoris) é o homem capaz de alcançar um conceito de ser, como tal, unívoco em sua comunidade. As determinações ou modalidades estão afirmando o ser em sua eterna consistência, coerência e coesão, ser que não é mais ser, pois haveria um surgimento de ser, vindo de fora do ser, do nada, o que é absurdo; nem pode ser menos ser, pois haveria um destruir-se dele.

O ser é um maximum e um minimum em sua homogeneidade, mas nas modalidades que apresenta, no devir dos seres determinados finitamente, é heterogeneidade. Duns Scot, fundado no paralelismo, que já estudamos na “Teoria do Conhecimento”, afirma a realidade do conceito de ser que o homem capta no estado de desenvolvimento de sua inteligência, e que é fundado na certeza de um ser primordial, homogêneo e univoco.

Ora, desde o momento que esse conceito é destacado do real (como o faz Duns Scot), a univocidade está afirmada; mas desde que não o seja (como o faz São Tomás), a analogia é inevitável.

Dialecticamente o ser é homogêneo (posição que aceita a univocidade), homogêneo na eficacidade, poder único e absoluto, eternamente o mesmo, e heterogêneo nas suas modalidades, que afirmam o primeiro, porque afirmam a eficacidade do ser em ser tudo quanto pode ser, e em ser tudo quanto é.

Não é difícil, portanto, viver-se e compreender-se ambas posições. O ser, enquanto tal, é unívoco. Mas o ente finito, que é ser, é sempre outro que o ser, como este livro é sempre outro que o que constitui o esquema de livro. Portanto, há neste livro, uma síntese da diferença e da semelhança. É ele, portanto, análogo. Mas o ser que o sustenta e que lhe permite surgir nesta modalidade, esse ser é unívoco com todo o ser. Portanto se vê que se a heterogeneidade e a homogeneidade se excluem formalmente, identificam-se na cooperação dialéctica do ser, que a tudo sustenta, e justifica.

Desta forma, vê-se claramente que a univocidade do ser refere-se apenas à sua comunidade, no referente ao ser de todos os entes, não, porém, quanto às suas diferenças últimas, onde Duns Scot admite a analogia. Estas têm o papel de determinantes, não estando, portanto, inclusas directamente na sua univocidade. Pode o homem, noeticamente, construir o esquema conceitual, eidético, de ser, desprezando suas heterogeneidades, sem considerá-lo nem como finito, nem como infinito, nem como criado, nem como incriado. O ser, enquanto ser, não é um nem outro; ele é neuter ex se, neutro por si mesmo, e, neste sentido, é unívoco.

Se nos colocamos no ângulo do esquema eidético, tem razão Duns Scot ao afirmar a univocidade; mas, fundando-nos no empirismo, de onde parte a análise tomista, tem São Tomás razão de afirmar a analogia.

Não há aí contradição que não permita uma coerência dialéctica entre os dois pensamentos, e a disputa entre tomistas e escotistas, peca por nenhuma das partes considerar que o ponto de partida, de cada uma ,é diferente, com consequências diferentes, mas que se harmonizam dialecticamente.

Partindo do ser concreto, temos que afirmar a analogia: partindo-se do esquema noético-eidético, alcançamos a univocidade.

Um funda-se na heterogeneidade; outro, na homogeneidade. O pensamento dialéctico, que não dissassocia, senão noeticamente a heterogeneidade da homogeneidade, terá de construir uma visão bi-polar e conciliadora dos dois extremos, que se completam numa cooperação das mais belas da metafísica. O dialágo entre São Tomás e Duns Scot, se fosse mantido por ambos, não os separaria. Havia bastante genialidade, tanto num como noutro, para perfeitamente se entenderem.

Quando Duns Scot diz estas palavras, que abaixo reproduzimos, não impede a conciliação entre os dois pensamentos. Ouçamo-lo:

“Experimentamos em nós mesmos, que podemos conceber o ser sem concebê-lo como tal substância ou tal acidente, pois não se sabe, quando se concebe o ser, se se trata de um ser em si ou em outro…: concebemos, portanto, de início alguma coisa de indiferente aos dois, e a seguir percebemos que um e outro estão imediatamente inclusos num termo tal, que o primeiro, o conceito de ser, nele está compreendido”.

Como se vê pela obra de Minges, mostra Duns Scot que não há, para o lógico, meio termo entre o equívoco e o unívoco. O análogo é apenas um caso particular do equívoco. A analogia só tem sentido para as ciências do real (ponto, onde se encontra São Tomás), não para o metafísico, quando transcende o físico, isto é, quando transcende a “diversidade do real” e pode construir um conceito único e comum a todos, que é o esquema noético-eidético de ser, que é unívoco.

Se vê deste modo que a acusação de panteísmo que se faz aos escotistas não procede em absoluto. Nem os tomistas refutam os escotistas, nem estes aqueles.

Mas se prestarmos a atenção ao nosso esquema da analogia, vemos que partindo da posição tomista, alcançamos ao idêntico absoluto do ser, (univocidade), como partindo da univocidade, chegaríamos ao diferente absoluto, (Ser Supremo, Deus), que seria o ponto de partida de Duns Scot. Nossa posição, em face da analogia, concreciona dialecticamente as duas posições, que cooperam com suas positividades para uma visão concreta do saber epistêmico ontológico.

Não fecharemos este artigo sem examinar as palavras abaixo de Fuetscher, notável escotista:

“Uma conclusão podemos tirar para a analogia. No aspecto metafísico, apesar da diferenciação substancial, temos univocidade, porque se dá conveniência perfeita na essência específica, e, consequentemente, na definição essencial. Essa univocidade também convém ao conceito genérico animal, enquanto se extende ao homem e ao bruto. Em compensação, no aspecto físico, o conceito genérico animal é análogo a respeito do homem e do bruto, pois a forma concreta de verificação é respectivamente diversa em ambos. Isto mesmo se pode aplicar às almas distintas substancialmente e ao conceito específico a respeito dos indivíduos de uma mesma espécie que sejam distintos qualitativamente. Teremos, pois, univocidade metafísica e física se os indivíduos diferem apenas numericamente. Ao contrário, se supomos o paralelismo epistemológico, então a analogia física será excluída pela univocidade metafísica, pois a forma concreta de verificação teria que ser distinta ex natura rei da essência, e qualquer diferença física substancial teria, como consequência, outra diferença na essência metafísica”. (Fuetscher, op. cit. p. 222).

A busca do ponto de identificação é sempre oportuna. Há um ponto de identificação próximo e outro remoto. Devemos procurar o próximo (pelo menos na quididade), pois o remoto acabaremos, fatalmente, por encontrá-lo. E esse ponto remoto de identificação é o ser, que dá o nexo final e absoluto a todas as coisas, que dá a unidade a todo o existente.

E há ordem, porque há esse ponto de identificação; há ordem porque o ser é um só, único e absoluto.

A ordem não é esta como poderia ser aquela, o que lhe daria a característica de ser casual. A ordem é esta porque é a ordem do ser, e nenhuma outra ordem poderia surgir, pois toda, que surja, é sempre do ser. Não há aqui acasos, mas sim a eficácia e a eficiência do ser ao realizar a ordem. O nosso cosmo não nos revela toda a ordem do ser, mas apenas aquela que nossos esquemas podem captar. Portanto, não nos admiremos de mistérios. O que nos cabe é construir esquemas que nos habilitem a penetrar e realizar a mistagogia, a penetrar nos mistérios, (desenvolvimento do Intellectus viatoris dos escolásticos) para obter a iluminação que melhor nos revele a verdade. [MFS]