(gr. physike; lat. physica; in. Physics; fr. Physique, al. Physik; it. Física).
Disciplina que tem por objeto o estudo da natureza; portanto, suas características e seus métodos estão em relação com aquilo que entendemos por natureza . Como disciplina específica, pode-se dizer que nasceu com Aristóteles, que a considerou a “filosofia segunda” e, no grupo das ciências teóricas, distinguiu-a da teologia e da matemática (Met., XI, 7, 1064 b 1). Podemos distinguir três conceitos fundamentais dessa ciência, que se sucederam ao longo da história: 1) física como teoria do movimento; 2) física como teoria da ordem necessária; 3) física como previsão do observável.
1) Quando nasceu, com Aristóteles, a física era a teoria do movimento e como tal se manteve até as origens da ciência moderna. Para Aristóteles, a física tem por objeto “a substância que tem em si mesma a causa de seu movimento” (Met., VI, 1, 1025 b 18); portanto, o modo como a física considera as substâncias depende da natureza dos movimentos dos quais elas são dotadas. Dos quatro movimentos distinguidos por Aristóteles (substancial: geração e corrupção; qualitativo: mudança; quantitativo: aumento ou diminuição; local translação [Fis., VIII, 7, 261 a 26]), o de translação é o primeiro e fundamental: todos os outros podem ser explicados pela translação dos corpos (Ibid., VIII, 7, 260a-b). A determinação das várias substâncias físicas deve, por isso, ser feita com base no movimento de translação que é próprio de cada uma delas. O movimento de translação é de três espécies: do alto para o centro do mundo, do centro para o alto, em tomo do centro ou circular. Os primeiros dois movimentos são contrários entre si e (como a geração e a corrupção consistem na passagem de um contrário ao outro) próprios dos corpos sujeitos à geração e à corrupção, ou seja, dos corpos terrestres ou sublunares, compostos por quatro elementos: água, ar, terra e fogo. O movimento circular não tem contrários, porque mover-se da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita circularmente não modifica a atividade circular do movimento (De cael., 1,4); esse movimento é próprio da substância que compõe os corpos não-geráveis e incorruptíveis, que são os corpos celestes, e essa substância é o éter. Dos quatro elementos que compõem o mundo sublunar, dois (ar e fogo) movem-se de baixo para cima; dois (água e terra), de cima para baixo. A física aristotélica, portanto, é qualitativa por considerar que determinado movimento é próprio de determinado elemento, estabelecendo assim nítida divisão qualitativa entre os elementos e entre estes e o éter. Desta postura segue-se o princípio geral da física aristotélica, que é: “Todo elemento move-se para a sua esfera, se não for impedido” (Fís., IV, 1, 208 b 10, ‘); esse princípio implica ou estabelece a existência de lugares absolutos, que são sedes naturais dos elementos para as quais os elementos retornam quando delas são afastados. Esses lugares, segundo Aristóteles, são determinados pelo peso dos elementos. No centro do mundo está a terra, que é o elemento mais pesado (como se conclui, p. ex.. do fato de a pedra cair na água ou afundar na água). Em torno da terra está a esfera da água, e em torno da esfera da água está a do ar, que é mais leve ainda, como demonstra o fato de a bolha de ar que se rompe na água subir à superfície. Em torno da esfera do ar está a do fogo, que é elemento mais leve, como prova o fato de as chamas que estão na superfície da terra tenderem para o alto, para a esfera que está acima do ar. Com base nisso, Aristóteles determina os caracteres do mundo.-único porque os elementos se condensam cada um em sua esfera; finito porque acabado e perfeito; como tal, ordenado para um único fim, que é Deus. Esta doutrina, que se baseia em pequeno número de experiências comuns e é admirável por sua elegância e simplicidade, foi a maior expressão, no pensamento antigo, da síntese dos conhecimentos naturais. Diante dela, a física atomista dos epicuristas e a física panteística dos estoicos têm mais caráter de especulação que de conhecimento científico. Foi realmente isso que os cientistas antigos pensaram, pois deixaram-nas completamente de lado remeten-do-se constantemente à física aristotélica; com ela Ptolomeu (séc. II) elaborou sua astronomia. A física aristotélica dominou sem rival durante muitos séculos, e, apesar das dúvidas levantadas por alguns escolásticos no séc. XIV, só foi abandonada com Leonardo da Vinci, Copérnico, Kepler e Galilei, aos quais se deve a primeira organização da ciência moderna.
2) O segundo conceito fundamental da física considera-a como estudo da ordem experimentável da natureza. Para esse conceito contribuíram os aristotélicos do Renascimento, com a defesa da necessidade da ordem natural, os platônicos do Renascimento, em especial Nicolau de Cusa, com a afirmação do caráter matemático da ordem natural, e a magia, com a pretensão de atingir e exercer domínio efetivo sobre a natureza. O conceito da natureza, que já está claro em Galilei, é de ordem objetiva, escrita em caracteres matemáticos, necessária e destituída de finalidade, atingível por meio do experimento. Sobre este conceito de ordem fundava-se a noção de harmonia, que para Kepler era a base da ciência da natureza (Harmonices mundi, 1619, IV, I). A obra de Newton conduzia à maturidade o conceito correspondente de física Passava a ser tarefa da física, explícita e unicamente, a descrição da ordem natural. A física aristotélica, como teoria do movimento, era dirigida ao estudo das causas do movimento, que coincidiam com as substâncias (formas ou causas finais) das coisas. Newton esclarecia em que sentido a determinação da ordem natural deve ser objeto da ciência, chegando a negar, em oposição à ciência aristotélica, que a física fosse ciência das causas (Optice, 1740, III, q. 31). Em 1764 Kant assim descrevia o conceito newtoniano de ciência: “Com experiências seguras e, no caso, com o auxílio da geometria também, devem ser procuradas as regras segundo as quais ocorrem certos fenômenos da natureza” (Untersuchung über die Deutlichkeit der Grundsätze der natürlichen Theologie und der Moral, 1763, II). Estas regras são as leis naturais, que traçam a ordem dos fenômenos naturais, ou seja, o modo necessário, portanto uniforme e constante, de interconexão entre eles. Descrever essa conexão é tarefa da física O iluminismo e o positivismo aplicaram esse conceito de física, que foi enfatizado por D’Alembert (Élements de phil, 1759, § 4) e serve de base para a noção de ciência expressa por Comte: “O caráter fundamental da física positiva é considerar todos os fenômenos como submetidos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta exata e cuja redução ao mínimo número possível constituem os objetivos de todos os nossos esforços, considerando-se absolutamente inacessível e sem sentido a busca daquilo a que se dá o nome de causas, sejam estas primárias ou finais” (Cours de phil. positive, liç. I, § 4). As leis nada mais são que expressões da ordem necessária da natureza.
O conceito de física como teoria da ordem natural contrapõe-se ao conceito de física como teoria do movimento por pretender limitar-se a descrevera natureza em sua ordem, em vez de explicá-la em suas causas. A partir de Newton a descrição opõe-se à explicação, como tarefa própria da física Ou então — o que dá no mesmo —, considera-se que a explicação à qual a física deve aspirar legitimamente é a determinação da relação entre dois fenômenos, de acordo com uma lei, o que, sob um outro aspecto, é simples descrição. Portanto, a característica desse conceito de física é o reconhecimento das conexões necessárias entre os fenômenos, nas quais se concretiza ou ganha corpo a ordem natural, bem como a crença na experimentação, na verificação empírica dessa conexão. O conceito de ordem natural coincide com o da causalidade necessária e portanto com o de previsibilidade infalível dos fenômenos naturais. Se a natureza é a ordem necessária, a física como estudo dessa ordem pode estabelecer regras que permitam a previsão infalível dos fenômenos. Essa é a crença que serviu de base para a física clássica até os primeiros decênios do séc. XX e que também sustentou sua hipótese fundamental: o mecanicismo . Esta hipótese tinha, entre outras, a vantagem de possibilitar a descrição visual do curso dos fenômenos, descrição que recorria a imagens visuais com as quais pretendia representar (por meio de partículas em movimento) a estrutura efetiva dos fenômenos. Mas foi exatamente essa pretensão que deu origem às primeiras dificuldades, quando, com a física relativista, o conceito de campo começou a substituir a representação visual das partículas em movimento. “Era necessária uma corajosa imaginação científica”, observam Einstein e Infeld, “para reconhecer que o essencial para a ordenação e a compreensão dos acontecimentos pode não ser o comportamento dos corpos, mas o comportamento de alguma coisa que se interpõe entre eles, vale dizer, o campo” (The Evolution of Physics, IV; trad. it., p. 302). A física quântica representava mais um passo para a destruição da possibilidade de uma descrição visualizante. Bohr notava: “Na adaptação da exigência relativista ao postulado do quantum devemos preparar-nos para uma renúncia à visualização (no sentido comum do termo) ainda mais radical que a encontrada na formulação das leis quânticas consideradas até hoje. Encontramo-nos no caminho encetado por Einstein ao adaptarmos nossos modos de percepção, derivados das sensações, ao conhecimento cada vez mais profundo das leis naturais” (Atomic Theory and the Description of Nature, 1934, p. 90). A renúncia à visualização na realidade também era renúncia à descrição, uma vez que a impossibilidade de visualizar o curso completo dos fenômenos é impossibilidade de descrever sua ordem necessária em sua integridade. De fato, essa impossibilidade foi reconhecida na física com a introdução do chamado “princípio de indeterminação” de Heisenberg (1927), com o qual a causalidade rigorosa dos fenômenos físicos era negada pela primeira vez, em virtude da impossibilidade de prever com exatidão o comportamento das partículas atômicas (v. indeterminação). Com a queda da pretensão à causalidade rigorosa e, por conseguinte, da descrição da ordem total dos fenômenos, a física não podia mais ser entendida como teoria da ordem necessária da natureza.
3) O terceiro conceito de física, que começou a ser traçado a partir de 1930, parte de uma determinação já considerada fundamental pela noção de física que a precedeu. Na esteira de Bacon, Comte já insistira na exigência de a ciência estabelecer previsões que permitissem o domínio sobre a natureza: “Ciência, donde previsão; previsão, donde ação” (Cours de phil. positive, liç. II, § 3). Em 1894, Hertz, em Princípios de mecânica, dá ênfase ao mesmo conceito: “O mais imediato e, em certo sentido, o mais importante problema que o nosso conhecimento da natureza deve capacitar-nos a resolver é a previsão dos acontecimentos futuros, graças à qual poderemos organizar nossas ocupações presentes”. À medida que a tarefa da descrição total da ordem dos acontecimentos ia sendo considerada fora das possibilidades da física, a tarefa da previsão ia adquirindo maior relevância. A limitação a essa tarefa aumentou enormemente o poder de ação ou de transformação da física O princípio de complementaridade expresso por Bohr em 1927 marca o abandono definitivo da pretensão de que a física pudesse valer como teoria da ordem necessária. Segundo esse princípio, “não é possível realizar simultaneamente a descrição espácio-temporal rigorosa e a conexão causal rigorosa dos processos individuais: uma ou outra deve ser sacrificada”. Isso significa que a cadeia de causas e efeitos só poderia ser quantitativamente verificada se o universo inteiro fosse considerado como um sistema único, mas neste caso a física desapareceria e ficaria apenas um esquema matemático (Heisenberg, Diephysikalischen Prinzipien der Quantentheorie, 1930, IV, § 1). Deste ponto de vista, embora não se possa descrever todo o curso de um fenômeno, pode-se calcular com exatidão o resultado de uma observação futura. Heisenberg diz: “Meçam-se, em certo instante, certas grandezas físicas com a máxima exatidão possível, ter-se-ão então, em cada instante seguinte, grandezas cujo valor pode ser calculado exatamente, ou seja, para as quais o resultado de uma medição pode ser previsto com exatidão, contanto que o sistema observado não seja submetido a nenhuma perturbação, exceto à própria medição” (Ibid., TV, § 1). Dirac enunciou o mesmo conceito dizendo: “O único objeto da física teórica é o de calcular resultados que possam ser comparados com a experimentação, sendo completamente inútil fazer uma descrição satisfatória de todo o desenvolvimento do fenômeno” (Principles of Quantum Mechanics, 1930, p. 7).
Assim, a física transforma-se em teoria da previsão dos eventos observáveis e abandona as exigências descritivas de sua segunda fase, além das explicativas de sua fase anterior. Do ponto de vista filosófico, esse caráter fundamental da física contemporânea foi perfeitamente expresso por Heisenberg quando disse que a física do nosso tempo não nos fornece mais “uma imagem da natureza, mas uma imagem das nossas relações com a natureza” (Das Natur-bild der heutigen Physik, 1955, p. 21). [Abbagnano]