Nós vivemos, estamos vivendo. Em que consiste nosso viver? Nossa vida consiste em que estamos no mundo; estar no mundo, isto é viver. E estar no mundo consiste em ter mais ou menos à mão — direi — uma porção de coisas, uma porção de objetos, uma porção de objetos materiais, de animais, de objetos de toda classe, que constituem o âmbito onde nos movemos e atuamos. Nossa vida, pois, consiste em tratar com as coisas que há. E as coisas que há, estão em nossa vida e para nossa vida. E esse trato com as coisas é enormemente variado. Fazemos com as coisas — para viver e vivendo — uma multidão de atos: comemos frutas, plantamos árvores, cortamos madeira, fabricamos objetos, transpomos os mares; quer dizer, estamos constantemente atuando com e sobre tudo aquilo que há em nosso derredor. E “uma”, uma coisa das coisas que fazemos com as coisas, é pensá-las. “Além” de acender o fogo, podemos perguntar-nos: que é o fogo? e pensamos acerca do fogo. Mas nossa atitude primeira fundamental não é pensar, mas antes pensar é algo que no decurso de nossa vida se nos impõe. As coisas são para nós amáveis ou odiáveis; dão-nos facilidades ou nos opõem resistência. E quando as coisas opõem resistência à nossa vida, imediatamente procuramos rodeios para vencer essas resistências; e um desses rodeios para vencer essas resistências de uma coisa consiste em pormo-nos um momento a pensar: que é isto?
Pois bem: se tomamos esta atitude reflexiva do pensamento (que, repito, não é a primária, mas já uma atitude derivada ou secundária), então começa o conjunto das coisas a adquirir para nós, de repente, um matiz, um aspecto completamente diferente.
Esfera das coisas reais
Estamos, por exemplo (digo-o somente por via de exemplo) na floresta, e estamos tratando, vivendo com a floresta. Estamos junto a uma árvore e com essa árvore fazemos algo: colocamo-nos, por exemplo, debaixo de sua ramagem, de sua folhagem, para evitar a chuva; decidimo-nos a cortar um galho para acender fogo, ou para fazer com ele um assento ou nos decidimos a tomar um fruto para comer; mas também pode chegar o momento em que nos detenhamos e digamos: O que é esta árvore? Então nossa atitude varia por completo. Já esta árvore não é um fim imediato de nossa ação, de nosso fazer, mas esta ação e este fazer se tornaram agora meditação e pergunta acerca do ser da árvore. Perguntamos qual é o ser da árvore; o que é a árvore, e podemos responder que esta árvore é um carvalho. Podemos continuar perguntando na nossa atitude de pensamento: o que é carvalho? E podemos responder: é uma espécie vegetal. Podemos continuar perguntando: e o que é uma espécie vegetal? E responder que é um modo de ser coisa; uma espécie de vegetal é um conjunto de coisas, árvores, estas coisas, classes de plantas, todas as espécies vegetais. Assim chegamos a determinar dessa maneira que na nossa vida há coisas como árvores, pedras, plantas, animais, um certo conjunto de coisas.
Esfera dos objetos ideais.
Mas também podemos, num momento determinado, fixar a atenção em que, neste bosque onde estamos, esta árvore que temos diante é igual àquela outra árvore que existe lá. Então nos vem à mente a “igualdade” e dizemos: O que é igualdade? e constatamos que a igualdade não é coisa; não há nenhuma coisa que seja a igualdade. As coisas que há são árvores, animais, plantas, pedras, o sol; mas a igualdade não é uma coisa; não há nenhuma coisa, não há nada disso que eu chamo coisa que seja a igualdade.
Também podemos ter percebido que o tronco desta árvore é circular, e podemos então perguntar-nos: o que é o círculo? E também vemos imediatamente que o círculo não é uma coisa, que não há nenhuma coisa que seja o círculo. E então, recapitulando já o momento, verifico que com aquilo que “há” na “minha vida” posso fazer dois grupos: um grupo onde porei árvores, pedras, plantas, animais, casas, o Sol, a Lua, e a esse grupo chamarei coisas; outro grupo em que aquilo que há são: a igualdade, a diferença, o triângulo, o círculo, os números; e a tudo isso não poderemos chamar coisas, dado que o nome de coisas reservei-o para aquelas outras. Esses novos objetos não são coisas. Por enquanto, vamos chamá-los objetos ideais. E constato que no repertório daquilo que há na minha vida achei, primeiro, coisas; segundo, objetos ideais.
Esfera dos valores.
Mas enquanto faço estas reflexões torno a pousar o olhar sobre a árvore e digo a mim mesmo: que bela é esta árvore! E agora surge outra novidade que há em meu mundo. Além das coisas e dos objetos ideais, há a beleza da árvore, e me digo: Onde colocarei a beleza? Entre as coisas? Não, certamente. A beleza não ó uma coisa. Colocá-la- ei entre os objetos ideais? Também não a posso colocar entre os objetos ideais, porque, veja-se que coisa mais curiosa! A beleza “não é”; os objetos ideais são, porém a beleza não é.
Se a árvore é bela, esta beleza que a árvore tem não acrescenta nem um átomo ao seu “ser” árvore. Se a árvore não fosse bela, não deixaria por isto de ser tão árvore como se fosse bela. A beleza não acrescentou, pois, à árvore nem um átomo de ser. Não posso dizer que a beleza seja um objeto ideal, porque os objetos ideais são e a beleza não é. Não posso ter a beleza como tenho o círculo diante da vista do pensamento, diante da visão intelectual. Diante de minha visão intelectual tenho o círculo; e deste círculo que tenho, que está na minha vida, posso dizer isto, isso ou aquilo. Diante de minha visão intelectual tenho o número sete, c dele posso dizer que é primo e que é ímpar. Estes são objetos ideais. Porém ante minha visão intelectual não tenho a beleza. A beleza é sempre algo que tenho que pensar de uma coisa. Mas quando digo de uma coisa que é bela, não acrescento um átomo de ser a essa coisa. A coisa que tem beleza nem por isso tem mais ser que a coisa que não tem beleza. Que é aquilo que tem então a coisa que tem beleza e que a distingue das outras coisas? A coisa que tem beleza e que nem por isto tem mais ser, “tem mais valor. A árvore bela não “é” mais que a árvore não bela, porém “vale” mais; o quadro belo, bem pintado, não é ontologicamente mais que o quadro mal pintado ou feio, porém tem mais valor. Ah! Encontro-me agora com um grupo de objetos que “há” na minha vida e que não são nem as coisas nem os objetos ideais, e que nem sequer têm ser, mas valor; que nem sequer são, mas que valem. Estes objetos vou chamá-los “valores”.
Assim, pois, tenho já descobertos, no âmbito de minha vida, estes três conjuntos de objetos que há. Na minha vida há coisas, na minha vida há objetos ideais, na minha vida há valores.
Nossa vida.
Por acaso com isto. já terminamos? Por acaso com isto está já dito tudo aquilo que há na minha vida? Não, certamente. Pois se, sentado ao pé desta árvore fecunda e frutífera (para a ontologia), dedico-me a fazer agora algumas reflexões mais desinteressadas ainda, porque abrangem a totalidade daquilo que há em minha vida, reflexões de caráter completo e total, verifico que, além dessas três esferas de objetos, há minha própria vida, há o conjunto de todas elas na minha vida, há minha vida mesma. E minha vida mesma, direi primeiro, não será um desses três objetos? E acho que não. Porque minha vida não é uma coisa. Como poderia ser minha vida uma coisa, quando as coisas estão na minha vida? Como poderia ser minha vida uma coisa, quando minha vida é a que contém as coisas? Não pode, pois, minha vida ser ao mesmo tempo a que contém e a contida. Não é, pois, minha vida uma coisa. Será então minha vida um objeto ideal? Mas também não é possível que minha vida seja um objeto ideal, porque os objetos ideais são aquilo que são: o número sete, a raiz quadrada de três, a igualdade, o círculo, o triângulo são aquilo que são, em todo tempo, fora do tempo e do espaço; não mudam. Ao contrário, minha vida flui no tempo, muda no tempo; uns dias é isto, outros dias é aquilo, e, sobretudo, minha vida é propriamente aquilo que ainda não é. Minha vida, propriamente, é aquilo que vai ser; minha vida, propriamente, está por ser. Ao contrário todos estes objetos ideais são eternamente e fora do tempo e do espaço aquilo que são, de uma vez para sempre.
Direi, então, que minha vida é um valor? Mas também não o posso dizer; porque os valores não são, mas valem. Os valores são qualidades de coisas; as coisas são válidas, porém os valores, eles, não são, senão que imprimem às coisas seu valor, e minha vida, ao contrário, é uma realidade. De minha vida posso predicar o ser, que não posso predicar dos valores. Por conseguinte, minha vida não é nem coisa, nem objeto ideal, nem valor. Então, o que é minha vida?
Nem realismo nem idealismo. (v. realismo e idealismo)
Poderíamos aqui, neste momento, distinguir entre mim que vivo e o mundo ou conjunto daquilo que há em mim; poderíamos aqui, neste instante, distinguir entre mim e o outro; e então poderíamos nos perguntar: que relação de ser, que relação ontológica há entre mim e o outro? Mas esta distinção entre mim e o outro é uma distinção válida, aceitável na vida mesma, dentro da vida. Psicologicamente o eu, vivendo sua vida, consiste, precisamente, em estar entre coisas. Porém ontologicamente esta distinção não é válida. Pois como, não perseguimos durante os séculos que vêm desde Parmênides até Kant precisamente os esforços da metafísica para verificar esta distinção? Os realistas dizem: “Se eu me elimino, ficam as coisas.” Os idealistas dizem: “Se eu me elimino, elimino também as coisas.” Mas vimos, justamente, que esta contraposição radical das duas doutrinas é o que há de falso nelas. Se eu me elimino, não se dão as coisas; nisso tem razão o idealismo. Mas, de outra parte, se elimino as coisas, não fica o eu; e nisso tem razão o realismo. O eu e as coisas não podem, pois, distinguir-se e separar-se radicalmente, mas ambos, o eu e as coisas, unidos em síntese de reciprocidade, constituem minha vida. E eu não vivo como independente das coisas, nem as coisas se dão como independentes de mim, antes viver — como diz Heidegger, embora empregando outra terminologia — viver é estar no mundo; e tão necessárias são para minha existência e na minha existência as coisas com que vivo, como eu vivendo com as coisas. Por conseguinte, o subterfúgio que consistiria em cortar a vida em dois — o eu e as coisas — e apresentar o problema ontológico alternativamente sobre o eu e sobre as coisas, conduziria à disputa secular entre idealismo e realismo. Porém foi porque se cortou arbitrariamente a autêntica realidade que é a vida; e a vida não permite esse corte em dois, eu e as coisas, antes a vida é estar no mundo, e tão necessária e essencial é para o ser da vida a existência das coisas como a existência do eu.
Por conseguinte, nem realismo nem idealismo exclusivistas e exagerados, pois a vida não tolera divisão, e, portanto, exemplifica em si mesma um quarto tipo de objeto que não se pode reduzir, nem a coisas, nem a objetos ideais, nem a valores, e que é aquilo que chamaríamos, pelo menos provisoriamente, objeto metafísico. [Morente]