ciência

(gr. episteme; lat. Scientia; in. Science; fr. Science; al. Wissenschaft; it. Scienza).

Conhecimento que inclua, em qualquer forma ou medida, uma garantia da própria validade. A limitação expressa pelas palavras “em qualquer forma ou medida” é aqui incluída para tornar a definição aplicável à ciência moderna, que não tem pretensões de absoluto. Mas, segundo o conceito tradicional, a ciência inclui garantia absoluta de validade, sendo, portanto, como conhecimento, o grau máximo da certeza. O oposto da ciência é a opinião, caracterizada pela falta de garantia acerca de sua validade. As diferentes concepções de ciência podem ser distinguidas conforme a garantia de validade que se lhes atribui. Essa garantia pode consistir: 1) na demonstração; 2) na descrição; 3) na corrigibilidade.

1) A doutrina segundo a qual a ciência prove a garantia de sua validade demonstrando suas afirmações, isto é, interligando-as num sistema ou num organismo unitário no qual cada uma delas seja necessária e nenhuma possa ser retirada, anexada ou mudada, é o ideal clássico da ciência. Platão comparava a opinião às estátuas de Dédalo, que estão sempre em atitude de fuga: as opiniões “desertam da alma humana, de modo que não terão grande valor enquanto alguém não conseguir atá-las com um raciocínio causal”. Mas, “uma vez atadas, tornam-se ciência e permanecem fixas. Eis por que a ciência”, conclui Platão, “é mais válida do que a opinião legítima e difere desta pela seus nexos” (Men., 98 a). A doutrina da ciência de Aristóteles é muito mais rica e circunstanciada, mas obedece ao mesmo conceito. A ciência é “conhecimento demonstrativo”. Por conhecimento demonstrativo entende-se o conhecimento “da causa de um objeto, isto é, conhece-se por que o objeto não pode ser diferente do que é” (An. pr., I, 2, 71 b 9 ss.). Em consequência, o objeto da ciência é o necessário; por isso a ciência se distingue da opinião e não coincide com ela; se coincidisse, “estaríamos convencidos de que um mesmo objeto pode comportar-se diferentemente de como se comporta e estaríamos, ao mesmo tempo, convencidos de que não pode comportar-se diferentemente” (An. post, I, 33, 89 a 38). Por isso, Aristóteles exclui que possa haver ciência do não necessário, ou seja da sensação (Ibid, 31, 87 b 27) e do acidental (Mel, VI, 2, 1027, 20), ao mesmo tempo em que identifica o conhecimento científico com o conhecimento da essência necessária ou substância (Ibid, VIII, 6, 1031 b 5). A mais perfeita realização desse ideal da ciência está em Elementos, de Euclides (séc. III a.C). Essa obra, que quis realizar a matemática como ciência perfeitamente dedutiva, sem nenhum recurso à experiência ou à indução, permaneceu por muitos séculos (e sob certos aspectos permanece até hoje) como o próprio modelo da ciência.

Através de Elementos, de Euclides, a concepção da ciência de Platão e Aristóteles foi transmitida com mais eficácia do que através da descrição teórica de Aristóteles, da qual os antigos nunca se afastaram. Os estoicos repetiram-na, afirmando que “a ciência é a compreensão segura, certa e imutável fundada na razão” (Sexto Empírico, Adv. math., VII, 151), ou que ela “é uma compreensão segura ou um hábito imutável de acolher representações, com base na razão” (Dióg. L., VII, 47). Tomás de Aquino repetia as ideias de Aristóteles (S. Th., II, 1, q. 57, a. 2) e Duns Scot acentuava o caráter demonstrativo e necessário da ciência, excluindo dela qualquer conhecimento desprovido desses caracteres, portanto, todo o domínio da (Op. Ox., Prol., q. 1, m. 8). Mesmo a última escolástica, com Ockham, mantinha em pé o ideal aristotélico da ciência (In Sent, III, q. 8).

O surgimento da ciência moderna não pôs em crise esse ideal. De um lado, o necessitarismo dos aristotélicos é compartilhado até por seus adversários; de outro, persiste a sugestão da matemática como ciência perfeita pela sua organização demonstrativa; e o próprio Galileu colocava as “demonstrações necessárias” ao lado da “experiência sensata” como fundamento da ciência (Opere, V, p. 316). O ideal geométrico da ciência também domina as filosofias de Descartes e Spinoza. Descartes queria organizar todo o saber humano pelo modelo da aritmética e da geometria: as únicas ciências que ele considerava “desprovidas de falsidade e de incerteza”, porque fundadas inteiramente na dedução (Regulae ad directionem ingenii, II). E Spinoza chamava de ciência intuitiva a extensão do método geométrico a todo o universo, extensão pela qual, “da ideia adequada da essência formal de alguns atributos de Deus, procede-se ao conhecimento adequado da essência das coisas” (Et., II, 40, scol. 2e). Kant rotulava esse velho ideal com um novo termo, sistema. “A unidade sistemática”, dizia ele, “é o que antes de tudo faz de um conhecimento comum uma ciência, isto é, de um simples agregado, um sistema”; e acrescentava que por sistema é preciso entender “a unidade de conhecimentos múltiplos reunidos sob uma única ideia” (Crít. R. Pura, Doutrina do método, cap. III; cf. Methaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft, Prefácio). Esse conceito da ciência como sistema, introduzido por Kant, tornou-se lugar comum da filosofia do séc. XIX e a ele ainda recorrem as filosofias de caráter teológico ou metafísico. Isso aconteceu sobretudo por ter sido adotado pelo Romantismo, que o repetiu à saciedade. Fichte dizia: “Uma ciência deve ser uma unidade, um todo… As proporções isoladas geralmente não são ciências, mas tornam-se ciência só no todo, graças a seu lugar no todo, à sua relação com o todo” (Ueber den Begriff der Wissenschaftslehre, 1794, § 1). Schelling repetia: “Admite-se, geralmente, que à filosofia convém uma forma peculiar dela, que se chama sistemática. Pressupor tal forma não deduzida compete a outras ciências que já pressupõem a ciência da ciência, mas não esta, que se propõe por objeto a possibilidade de semelhante ciência” (System des transzendentalen Idealismus, 1800, I, cap. I; trad. it., p. 27). E Hegel afirmava peremptoriamente: “A verdadeira forma na qual a verdade existe só pode ser o sistema científico dela. Colaborar para que a filosofia se aproxime da forma da ciência — isto é, da meta que, uma vez alcançada, permitir-lhe-á abandonar o nome de amor ao saber para ser verdadeiro saber — eis o que me propus” (Phänomen des Geistes, Prefácio, I, 1). Fichte, Schelling e Hegel consideravam que o único saber sistemático, portanto a única ciência, era a filosofia. Mas, para muitos filósofos do séc. XIX, o conceito de sistema continuou caracterizando a ciência em geral, portanto também a ciência da natureza. H. Cohen via no sistema a mais alta categoria da natureza e da ciência (Logik, 1902, p. 339). Husserl via o caráter essencial da ciência na “unidade sistemática” que nela encontram os conhecimentos isolados e os seus fundamentos (Logische Untersuchugen, 1900,1, p. 15); e indicava no sistema o próprio ideal da filosofia, se esta quisesse organizar-se como “ciência rigorosa” (Philosophie ais strenge Wissenschaft, 1910-11; trad. it., p. 5). O ideal de ciência como sistema continuou vivo ainda muito tempo depois que as ciências naturais dele se afastaram e começaram a polemizar contra “o espírito de sistema”.

Se hoje é possível considerar superado o ideal clássico de ciência como sistema acabado de verdades necessárias por evidência ou por demonstração, o mesmo não se pode dizer de todas as suas características. Que a ciência seja, ou tende a ser, um sistema, uma unidade, uma totalidade organizada, é pretensão que as outras concepções da própria ciência também têm. O que essa pretensão tem, em todos os casos, de válido é a exigência de que as proposições que constituem o corpo linguístico de uma ciência sejam compatíveis entre si, isto é, não contraditórias. Essa exigência, sem dúvida, é muito menos rigorosa do que aquela para a qual tais proposições deveriam constituir uma unidade ou um sistema; aliás, a rigor, é uma exigência totalmente diferente, pois a nãocontradição não implica, em absoluto, a unidade sistemática. Todavia, na linguagem científica ou filosófica corrente, muitas vezes a exigência sistemática é reduzida à de compatibilidade.

2) A concepção descritiva da ciência começou a formar-se com Bacon, Newton e os filósofos iluministas. Seu fundamento é a distinção baconiana entre antecipação e interpretação da natureza: a interpretação consiste em “conduzir os homens diante dos fatos particulares e das suas ordens” (Nov. Org., I, 26, 36). Newton estabelecia o conceito descritivo da ciência, contrapondo o método da análise ao método da síntese. Este último consiste “em assumir que as causas foram descobertas, em pô-las como princípios e em explicar os fenômenos partindo de tais princípios e considerando como prova essa explicação”. A análise, ao contrário, consiste “em fazer experimentos e observações, em deles tirar conclusões gerais por meio da indução e em não admitir, contra as conclusões, objeções que não derivem dos experimentos ou de outras verdades seguras” (Opticks, III, 1, q. 31) A filosofia do iluminis-mo exaltou e difundiu o ideal científico de Newton. “Esse grande gênio”, dizia D’Alembert, “viu que era tempo de banir da física as conjecturas e as hipóteses vagas, ou pelo menos de tê-las apenas pelo que valem e de submeter essa ciência somente às experiências e à geometria” (Discours préliminaire de l’Encyclopédie, em OEuvres, ed. Condorcet, p. 143). Ao mesmo tempo, D’Alembert declarava já ser inútil para a ciência e para a filosofia o espírito de sistema. “As ciências todas, fechadas, o máximo possível, nos fatos e nas consequências que delas podem ser deduzidos, não fazem concessões à opinião, a não ser quando a isso são obrigadas”. A ciência reduz-se, assim, à observação dos fatos e às inferências ou aos cálculos fundados nos fatos. O positivismo oitocentista não fazia mais do que recorrer ao mesmo conceito de ciência. Dizia Comte: “O caráter fundamental da filosofia positiva é considerar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta precisa e cuja redução ao menor número possível constituem o objetivo de todos os nossos esforços, ao mesmo tempo em que julgamos absolutamente inacessível e sem sentido a busca daquilo que se chama de causas, tanto primeiras como finais” (Cours de phil. positive, I, § 4; vol. I, pp. 26-27). Mas o positivismo também insistiu no caráter da ciência que Bacon já evidenciara: o caráter ativo ou operacional, graças ao qual ela permite que o homem aja sobre a natureza, e a domine através da previsão dos fatos, possibilitada por leis (Ibid., II, § 2; p. 100). O ideal descritivo da ciência não implica, portanto, que a ciência consiste no espelhamento ou na reprodução fotográfica dos fatos. De um lado, o caráter antecipado do conhecimento científico, graças ao qual ela se concretiza em previsões baseadas em relações verificadas entre os fatos, elimina o seu caráter fotográfico: realmente, não se pode fotografar o futuro. Por outro lado, a mesma ciência positivista evidenciou a orientação ativa da descrição científica. As considerações de Claude Bernard a respeito são muito importantes: “A simples constatação dos fatos”, diz ele, “nunca chegará a constituir uma ciência. Podem-se multiplicar fatos e observações, mas isso não levará à compreensão de nada. Para aprender, é preciso, necessariamente, raciocinar sobre o que se observou, comparar os fatos e julgá-los com outros fatos que servem de controle” (Intr. à l’étude de la médecine expérimentale, 1865, I, 1, § 4). Desse ponto de vista, uma ciência de observação será uma ciência que raciocina sobre os fatos da observação natural, isto é, sobre os fatos pura e simplesmente constatados, ao passo que uma ciência experimental ou de experimento raciocinará sobre os fatos obtidos nas condições que o experimentador criou e determinou (Ibid., 1865, I, 1, § 4).

A doutrina de Mach sobre a ciência não poderia ser chamada de descritiva, se por descrição se entender a reprodução fotográfica dos objetos, mas pode ser chamada de descritiva no sentido já esclarecido. Diz Mach: “Se excluirmos aquilo que não tem sentido pesquisar, veremos aparecer mais nitidamente o que podemos realmente atingir por meio de cada ciência: todas as relações e os diferentes modos de relação entre os elementos” (Erkenntniss und Irrtum, cap. I; trad. fr., p. 25). A inovação de Mach consiste no seu conceito dos elementos, já que para ele estes são comuns tanto às coisas como à consciência, diferindo na consciência e na coisa só na medida em que pertençam a conjuntos diferentes (Ibid., cap. I; trad. fr., p. 25; cf. Die Analyse der Empfindungen, 9a ed., 1922, p. 14). A função econômica que Mach atribuiu à ciência, ou, mais precisamente, aos conceitos científicos, não suprime portanto o caráter descritivo da ciência, reconhecível na tese de que a ciência tem por objeto as relações entre os elementos. Justamente por considerar as relações entre os fatos, a ciência é uma descrição abreviadora e econômica dos próprios fatos (Die Mechanik, trad. in., 1902, pp. 481 ss.). Do mesmo modo, Bergson reconhece o caráter convencional e econômico da ciência pelo fato de que ela, que tem como órgão a inteligência, não se detém nas coisas, mas nas relações entre as coisas ou situações (Évol. créatr., 8a ed., 1911, pp. 161, 356). O ideal descritivo da ciência reaparece também em escritores recentes. Dewey afirma: “Como na ciência os significados são determinados com base em sua relação recíproca como significados, as relações tornam-se os objetos da indagação e diminui bastante a importância das qualidades, que só têm função na medida em que ajudem a estabelecer relações” (Logik, VI, § 6; trad. it., p. 171). Ora, “relaçõesnada mais são do que o outro nome de leis, já que a lei nada mais é do que a expressão de uma relação: de modo que o mesmo conceito da ciência pode ser encontrado em todos os escritores que reconhecem na formulação da lei a tarefa da ciência. H. Dingler dizia: “A principal tarefa da ciência consiste em chegar ao maior número possível de leis” (Die Methode der Physik, 1937, I, § 9). E, mais recentemente, R. B. Braithwaite afirmou: “O conceito fundamental da ciência é o da lei científica e o objetivo fundamental de uma ciência é estabelecer leis. Para compreender o modo como uma ciência opera e o modo como qual ela fornece explicações dos fatos que investiga, é necessário compreender a natureza das leis científicas e o modo de estabelecê-las” (Scientific Explanation, Cambridge, 1953, p. 2).

3) Uma terceira concepção é a que reconhece, como garantia única da validade da ciência, a sua autocorrigibilidade. Trata-se de uma concepção das vanguardas mais críticas ou menos dogmáticas da metodologia contemporânea e ainda não alcançou o desenvolvimento das outras duas concepções acima; apesar disso, é significativa, seja por partir da desistência de qualquer pretensão à garantia absoluta, seja por abrir novas perspectivas ao estudo analítico dos instrumentos de pesquisa de que as ciências dispõem. O pressuposto dessa concepção é o falibilismo, que Peirce atribuía a qualquer conhecimento humano (Coll. Pap., I, 13, 141-52). Mas essa tese foi expressa pela primeira vez por Morris R. Cohen: “Podemos definir a ciência como um Sistema autocorretivo. A ciência convida à dúvida. Pode desenvolver-se ou progredir não só porque é fragmentária, mas também porque nenhuma proposição sua é, em si mesma, absolutamente certa, e assim o processo de correção pode atuar quando encontramos provas mais adequadas. Mas é preciso notar que a dúvida e a correção são compatíveis com os cânones do método científico, de tal modo que a correção é o seu elo de continuidade” (Studies in Philosophy and Science, 1949, p. 50). M. Black, mais recentemente, adotou ponto de vista análogo: “Os princípios do método científico devem, por sua vez, ser considerados provisórios e sujeitos a correções ulteriores, de tal modo que uma definição de ‘método científico’ seria verificável em qualquer sentido do termo” (Problems of Analysis, 1954; p. 23). Em termos aparentemente paradoxais, mas equivalentes, K. Popper afirmara, em Lógica da descoberta científica (1935), que o instrumental da ciência não está voltado para a verificação, mas para a falsificação das proposições científicas. “Nosso método de pesquisa”, dizia ele, “não visa defender as nossas antecipações para provar que temos razão, mas, ao contrário, visa destruí-las. Usando todas as armas do nosso arsenal lógico, matemático e técnico, tentamos provar que nossas antecipações são falsas, para apresentar, no lugar delas, novas antecipações não justificadas e injustificáveis, novos ‘preconceitos apressados e prematuros’ como escarnecia Bacon” (The Logic of Scientific Discovery, 2a ed., 1958, § 85, p. 279). Com isso, Popper pretendeu assinalar o abandono do ideal clássico da ciência: “O velho ideal científico da episteme, do conhecimento absolutamente certo e demonstrável, revelou-se um mito. A exigência de objetividade científica torna inevitável que qualquer asserção científica seja sempre provisória”. O homem não pode conhecer, mas só conjecturar (Ibid, pp. 278, 280). Afirmar que os instrumentos de que a ciência dispõe se destinam a demonstrar a falsidade da ciência é um outro modo de exprimir o conceito da autocorrigibilidade da ciência: provar a falsidade de uma asserção significa, de fato, substituí-la por outra asserção, cuja falsidade ainda não foi provada, corrigindo portanto a primeira. A noção da autocorrigibilidade sem dúvida constitui a garantia menos dogmática que a ciência pode exigir da sua própria validade. Permite uma análise menos preconceituosa dos instrumentos de verificação e controle de que cada ciência dispõe. [Abbagnano]


gr. episteme (do latim, scientia, de sciens, instruído, que sabe).

É o conhecimento certo das coisas por suas causas principais. Em sentido estrito, é um corpo de doutrina, metodicamente formado e ordenado, que constitui um ramo particular do humano saber. Para haver ciência, não se exige a certeza de todas as proposições e fundamentações particulares, porque pode compreender também hipóteses e teorias ainda não devidamente corroboradas. Pelo contrário, à noção de ciência (conhecimento científico) une-se frequentemente o pensamento acessório de que os recursos empregados e os resultados obtidos devem, em princípio, ser acessíveis a todos, suposta, naturalmente, a necessária instrução preliminar; contudo parece ser preferível não incluir este requisito na definição da ciência; aliás, seu cumprimento está, via de regra, assegurado pela vinculação objetiva (objetividade) do saber científico às cois-sas e pela essencial igualdade das faculdades cognitivas humanas. A objetividade é essencial à ciência, porque ela, enquanto conhecimento (intelectual), deve tender necessariamente à verdade. Outra propriedade essencial do conhecimento científico é o seu processamento metódico ( Método); a conexão de fundamentação, que ele tem em mira, não é levada a efeito, alinhando sem plano, umas às outras, quaisquer observações e ideias, senão que exige observação e reflexão, de acordo com um plano ou seja, metodicamente. Importante recurso metódico é a terminologia científica, a linguagem técnica, que procura oferecer expressões quando possível claras e unívocas aos conceitos da ciência.

A unidade de cada ciência baseia-se na unidade de seu objeto. A doutrina escolástica sobre a ciência distingue o objeto material (obiectum materiale), ou seja, o objeto integral concreto a que se dirige a ciência, e o objeto formal (obiectum formale), ou seja, o aspecto peculiar sob o qual o todo é considerado; o que caracteriza cada ciência é seu objeto formal, ao passo que o mesmo objeto material pode ser comum a várias ciências.

O desdobramento dos objetos do saber levou a uma progressiva especialização das ciências, com o subsequente risco de restringir a visão a um reduzido domínio técnico e de se perder de vista as grandes conexões da totalidade do ser.

Estas e outras razões levaram muitas vezes a menosprezar a ciência, principalmente a ciência “pura”, isto é, não dirigida a ser aproveitada na técnica, na medicina, etc. E certo que uma formação unilateral do entendimento pode torná-lo inapto para a vida e que uma sobrevalorização da forma e do método rigorosamente científico a expensas do conteúdo, pode conduzir a um árido raciona-lismo; mas é fora de dúvida que a ciência, devidamente subordinada à tendência para a perfeição integral humana, conserva seu grande valor formativo, uma vez que nos faculta olhar para as alturas e profundidades da realidade. Tão merecedor de ser rejeitado como o irracionalismo inimigo da ciência, é o cientismo, que pensa resolver os mais profundos problemas, valendo-se dos métodos das ciências particulares, especialmente das ciências naturais, e, mercê de uma “concepção científica do universo (mundividência), tornar desnecessárias a metafísica da religião. — De Vries. [Brugger]


Etimologicamente, ciência equivale a “o saber”.

Contudo, não é recomendável ater-se a esta equivalência. Há saberes que não pertencem à ciência, Por exemplo, o saber que por vezes se qualifica de comum, ordinário, ou vulgar. Parece necessário qual o tipo de saber científico e distinguir entre a ciência e a filosofia. À medida que se foram organizando as chamadas ciências particulares e se foi tornando mais intenso o movimento de autonomia, primeiro, e de independências das ciências, depois, a distinção em questão tornou-se cada vez mais importante e urgente. A questão da natureza do saber científico só superficialmente aqui se pode tratar. Limitamo-nos a indicar que a ciência é um modo de conhecimento que procura formular, mediante linguagens rigorosas e apropriadas – tanto quanto possível, com o auxílio da linguagem matemática – leis por meio das quais se regem os fenômenos. Estas leis são de diversas categorias. Todas têm, porém, vários elementos em comum: serem capazes de descrever séries de fenômenos; serem comprováveis por meio da observação dos fatos e da experimentação; serem capazes de predizer – quer mediante predicação completa, quer mediante predicação estatística – acontecimentos futuros. A comprovação e predicação nem sempre se efetuam da mesma maneira, não em cada uma das ciências, mas também em diversas esferas da mesma ciência. Em grande parte, dependem do nível das teorias correspondentes. Em geral, pode dizer-se que uma teoria científica mais compreensiva obedece mais facilmente a exigências de natureza interna, à estrutura da teoria – simplicidade, harmonia, coerência etc – do que uma teoria menos compreensiva. As teorias de teorias (como por exemplo, a teoria da relatividade) parecem por isso mais afastadas dos fatos ou, melhor dizendo, menos necessitadas de um grupo relativamente grande e considerável de fatos para serem confirmadas. A comprovação e precisão atrás referidas dependem também dos métodos usados, os quais também são diferentes para cada ciência e para partes diferentes da mesma ciência. Em geral, considera-se que uma teoria científica é tanto mais perfeita quanto mais formalizada estiver. O que mais nos interessa é a relação entre ciência e filosofia.

São possíveis três respostas fundamentais a este respeito:

1: A CIÊNCIA E A FILOSOFIA NÃO TÊM QUALQUER RELAÇÃO:

2: A CIÊNCIA E A FILOSOFIA ESTÃO TÃO INTIMAMENTE INTERLIGADAS ENTRE SI QUE, DE FACTO, SÃO A MESMA COISA.

3: A CIÊNCIA E A FILOSOFIA MANTÊM ENTRE SI RELAÇÕES MUITO COMPLEXAS.

Vamos indicar algumas das razões apresentadas a favor desta última resposta:

3 a: A relação entre a filosofia e a ciência é de índole histórica: a filosofia foi e continuará a ser a mãe das ciências, por ser aquela disciplina que se ocupa da formação de problemas, depois tomados pela ciência para os solucionar.

3 b: A filosofia é não só a mãe das ciências no decurso da história, mas também a rainha das ciências em absoluto, quer por conhecer mediante o mais alto grau de abstração, quer por se ocupar do ser em geral, quer por tratar dos supostos da ciência.

3 c: A ciência – ou as ciências – constituem um dos objetos da filosofia ao lado dos outros. Há por isso uma filosofia das ciências (e das diversas ciências fundamentais) tal como há uma filosofia da religião, da arte, etc..

3 d: A filosofia é fundamentalmente uma teoria do conhecimento das ciências.

3 e: As teorias científicas mais compreensivas são teorias de teorias.

3 f: A filosofia está em relação de constante intercâmbio mútuo relativamente à ciência; proporciona-lhe certos conceitos gerais (ou certas análises), enquanto esta proporciona àquela dados sobre os quais desenvolve esses conceitos gerais (ou leva cabo essas análises).

3 g: A filosofia examina certos enunciados que a ciência pressupõe, mas que não pertencem à linguagem da ciência.

É fácil comprovar então que a maior parte dos argumentos são de caráter parcial; esta parcialidade deve-se a um suposto prévio: o de que ciência e filosofia são conjuntos de proposições que se procura comparar, identificar, subordinar, etc. Quando em contrapartida, se insiste em examinar os pontos de vista adotados por uma e outra, nota-se que é possível afirmar a existência de relações complexas e variáveis sem por isso se agarrar a argumentações parciais ou desembocar num historicismo radical.

Estes pontos de vista não precisam, além disso, de ser opostos, mas isso não significa tão-pouco que sejam totalmente diferentes; podem ser, em muitos aspectos, complementares. A isso aspiram pelo menos muitos filósofos para os quais a ciência não é nem um erro, nem um conhecimento superficial, nem um saber subordinado ao filosófico, mas uma das poucas grandes criações humanas, e também muitos cientistas para os quais a filosofia não é nem um conjunto de sofismas, nem de sentimentos que emergem e se fundem continuamente, nem de mais ou menos lindas concepções de índole, em última análise, poética. [Ferrater]


A noção de ciência implica numa sucessão de graves dificuldades. Diferente da ideia grega de episteme (que traduzimos por “ciência”, mas que significa aproximadamente “conjunto de técnicas e habilidades”) e da noção escolástica de scientia, a palavra “ciência”, com o uso que dela fazemos hoje, surgiu apenas no início do século dezenove. Uma análise superficial nos divide o campo das ciências em duas grandes regiões. Uma delas, que envolve disciplinas como a matemática, a física, a química e biologias (incluindo áreas intermediárias como a físico-química, a bioquímica, a zoologia), tem reconhecidamente seu status “científico” conferido em época anterior ao surgimento do problema da noção de ciência (Gilbert, Galileu, Newton, Descartes e Leibniz, fundadores da física e da matemática modernas viveram antes do século dezenove, e se consideravam pelo menos filósofos naturais; a mesma situação ocorre com Boyle e Lavoisier, na química, ou com Harvey na biologia). A outra área, das “ciências sociais” — sociologia, psicologia, história — desenvolvidas sobretudo no século XIX, não tem o seu status “científico” tão firmemente reconhecido como o das ciências naturais (uma situação intermediária é a da economia, embora uma análise mais cuidadosa também nos leve a duvidar de seu status científico, enquadrando-a entre as “ciências” sociais) . As questões que parecem se apresentar são, (1) o que caracteriza uma ciência? (2) dessa característica, o que atribui à disciplina seu status “científico”?

Estas questões parecem estar se apoiando numa valorização indevida da noção de “ciência” como forma “aperfeiçoada” de conhecimento. O sentido desta valorização está implícita quando o status científico é conferido às “ciências naturais”, e não às “ciências sociais”: as ciências naturais são aquelas onde a formalização da linguagem mais progrediu. Este fenômeno é sintetizado na pretensão de se desenvolverem ciências sociais que atinjam o “status de rigor da física matemática”. A noção implícita de ciência conteria, como categorias fundamentais, o rigor e a formalização. No entanto, vários exemplos de dentro das ciências naturais sugerem que nem o rigor nem a formalização constituem o centro, o núcleo da contribuição científica. O fato mais notável é o surgimento da teoria da relatividade restrita em 1905. A contribuição de Einstein, do ponto de vista formal, se limitou a repetir um conjunto de equações, chamadas “transformações de Lorentz”, que o físico holandês Hendryk Lorentz vinha utilizando desde 1898. O grande avanço de Einstein não foi um avanço formal, mas sim conceituai. Einstein mostrou, em 1905, qual o significado físico das transformações de Lorentz, interpretando-as através do postulado da constância da velocidade da luz. O que significaria: a contribuição de Einstein está na parte expositiva de seu paper de 1905, e não na parte matemática (que estende um pouco as consequências das transformações de Lorentz, mas com o apoio de sua intuição a respeito) . O caso de Einstein não é único (um outro exemplo é a interpretação que o físico P.A.M. Dirac propõe para os valores negativos da energia de um elétron, e que redundaram na “teoria dos buracos” da antimatéria. Dentro do mesmo problema formal, Feynman propôs que o antielétron fosse visto como um elétron movendo-se para trás no tempo. Os formalismos são equivalentes, mas as ontologias são radicalmente diferentes). Se a categoria de formalização nos leva a tais dificuldades, a categoria de rigor também nos levanta problemas. Dois casos são suficientes para assinalar como a exigência do rigor teria bloqueado um avanço científico. O primeiro é o desenvolvimento que Fourier fez da teoria das séries que levam seu nome. Utilizando-as como uma ajuda na sua teoria do calor, Fourier passou por cima de uma quantidade de problemas matemáticos que levaram perto de um século para serem esclarecidos (ou que ainda não foram esclarecidos de todo, se levarmos em conta que uma das consequências da teoria das séries de Fourier foi a teoria dos conjuntos de Cantor). O segundo exemplo é a postulação, por parte de Dirac, da “função delta”. Dirac postulou a função, utilizou-a e deu dela apenas uma imagem intuitiva; a sua teoria rigorosa só veio duas décadas mais tarde, com a “teoria das distribuições” de Laurent Schwartz. Na verdade, um exame da história das ciências naturais mostra como nem a “formalização” nem o “rigor” constituem a essência do método científico. O problema da cientificidade de uma disciplina está na intencionalidade que a constitui. Uma analítica do objeto mostra como as ciências naturais se fundam no rompimento da instrumentalidade das coisas do mundo, e como, em certos casos, a intencionalidade com que a disciplina científico-natural se constitui permite o surgimento do “rigor” e da “formalização” dentro dela (a biologia e certas partes da química não são “matematizáveis”, embora isto não lhes retire seu status de ciência). Esta investigação, que se desenrola no campo da fenomenologia da “coisa”, está fora dos limites de nosso assunto aqui. Uma outra perspectiva para a elucidação do problema da ciência está numa elucidação fenomenológica da história, baseada numa perspectiva análoga à que nos conduziu a uma analítica do objeto. Empiricamente sabemos que a “ciência ocidental” é um fenômeno moderno, pós-medieval. Uma fenomenologia da história poderia, talvez, elucidar o “corte” na visão-do-mundo que parece se ter dado com o Renascimento, e que gerou historicamente fenômenos como o capitalismo, a tecnologia, a ciência, a noção estreita de arte dentro da qual vivemos.

A importância da elucidação para nós do que seja a “ciência” está no esclarecimento do status de uma teoria da comunicação. Se esta teoria se constituir dentro de uma ciência social, se ela for uma teoria sociológica da comunicação, ou uma teoria psicológica da comunicação, a validade e a verdade de seus resultados dependerão, em último plano, do status de sua ciência fundadora. Se por outro lado ela se apresentar — como a analítica existencial da comunicação se apresenta como “ontologia fundamental”, esta ontologia fundamental deve justificar os motivos para o “corte” entre as ciências naturais e as ciências sociais, desta maneira justificando seu status (provocadoramente) arqui-científico (onde o arqui — deve ser compreendido no sentido de arche, “princípio, “fundamento”). Em linhas gerais, conforme uma analítica do objeto o elucida, o motivo para o “corte” é a diferente constituição fenomenológica dos dois campos: as ciências naturais são “teorias da coisa”, as ciências sociais “teorias do objeto”. Em linhas gerais isto nos mostra que a questão da ciência até hoje não teve uma formulação adequada, fora de tentativas esparsas. Já é tempo de dela encontrarmos a formulação adequada. [Francisco Antônio Dória]