acaso

(automaton; lat. Casus; in. Chance; fr. Hasard; al. Zufall; it. Caso).

Podem-se distinguir três conceitos desse termo que se entrecruzaram na história da filosofia. 1) o conceito subjetivista, que atribui a imprevisibilidade e a indeterminação do evento casual à ignorância ou à confusão do homem. 2) o conceito objetivista, que atribui o evento casual à mistura e à interseção das causas. 3) a interpretação moderna, segundo a qual o acaso é a insuficiência de probabilidades na previsão. Este último conceito é o mais geral e o menos metafísico.

1) Aristóteles (Fís., II, 4, 196 b 5) já falava da opinião segundo a qual a sorte seria uma causa superior e divina, oculta para a inteligência humana. Os Estoicos equiparavam o acaso ao erro ou à ilusão; julgavam que tudo acontece no mundo por absoluta necessidade racional (Plac. philos., I, 29). É claro que quem admite uma necessidade desse gênero e a atribui (como achavam os Estoicos) à divindade ima-nente no cosmos ou à ordem mecânica do universo não pode admitir a realidade dos eventos que costumam ser chamados de acidentais ou fortuitos e muito menos do acaso como princípio ou categoria de tais eventos; deve ver neles a ação necessária da causa reconhecida em ato no universo, negando como ilusão ou erro o seu caráter casual. É esse o motivo por que Kant, que modela as suas categorias e os seus princípios a priori sobre a física newtoniana, inteiramente fundada no princípio de causalidade, nega a existência do acaso, e faz, aliás, dessa negação um dos princípios a priori do intelecto: “A proposiçãonada ocorre por acaso (in mundo non datur casus)’ é uma lei a priori da natureza” (Crít. R. Pura, Analítica dos princípios, Refutação do idealismo). Hegel, que parte do princípio da perfeita racionalidade do real, atribui o acaso à natureza, ou melhor, vê na natureza “uma acidentalidade desregulada e desenfreada” (Ene, § 248), mas na medida em que a natureza não está adequada à substância racional do real e, por isso, carece ela própria de realidade. De modo análogo, na filosofia contemporânea, Bergson explicou o acaso pela troca, meramente subjetiva, entre a ordem mecânica e a ordem vital ou espiritual: “Que a mecânica das causas que fazem a roleta parar sobre o número me permita vencer e, por isso, aja como um gênio benéfico para quem os meus interesses tivessem grande importância; ou que a força mecânica do vento arranque uma telha do teto e a arroje sobre a minha cabeça, isto é, que aja como um gênio maléfico que conspirasse contra a minha pessoa; em ambos os acaso eu encontro um mecanismo onde eu teria procurado e onde deveria encontrar, ao que parece, uma intenção: é isso que se exprime quando se fala de acaso” (Évol. créatr., 8a ed., 1911, p. 254).

2) Por outro lado, segundo a interpretação objetivista, o acaso não é um fenômeno subjetivo, mas objetivo, e consiste no entrecruzar-se de duas ou mais ordens ou séries diversas de causas. A mais antiga das interpretações desse tipo é a de Aristóteles. Aristóteles começa notando que o acaso não se verifica nem nas coisas que acontecem sempre do mesmo modo, nem nas que acontecem quase sempre do mesmo modo, mas entre as que ocorrem por exceção e sem qualquer uniformidade (Fís., II, 5, 196 b 10 ss.). Desse modo, ele atribui corretamente o acaso à esfera do imprevisível, isto é, do que acontece fora do necessário (“o que acontece sempre do mesmo modo”) e do uniforme (“o que acontece quase sempre do mesmo modo”). Assim sendo, o acaso (ou a sorte) é definido por Aristóteles como “uma causa acidental no âmbito das coisas que não acontecem nem de modo absolutamente uniforme nem frequente e que poderiam acontecer com vistas a uma finalidade” (ibid., 197 a 32). Para Aristóteles, a determinação da finalidade é essencial, já que o acaso tem ao menos o aspecto ou a aparência da finalidade: como no exemplo de quem vai ao mercado por motivo completamente diferente e ali encontra um devedor que lhe restitui a soma devida. Nesse exemplo chama-se acaso (ou sorte) o evento da restituição devido ao encontro que não foi deliberado ou desejado como finalidade, mas que teria podido ser uma finalidade: enquanto, na realidade, foi o efeito acidental de causas que agiam com vistas a outras finalidades. A noção de encontro, de enredamento de séries causais para a explicação do acaso, foi retomada na Idade Moderna por filósofos, matemáticos e economistas, que reconheceram a importância da noção de probabilidade para a interpretação da realidade em geral. Assim, Cournot definiu o acaso como o caráter de um acontecimento, “devido à combinação ou ao encontro de fenômenos independentes na ordem da causalidade” (Théorie des chances et des probabilités, 1843, cap. II), noção que se tornou predominante no positivismo, também porque foi aceita por Stuart Mill (Logic, III, 17, § 2): “Um evento que aconteça por acaso pode ser mais bem descrito como uma coincidência da qual não temos motivo para inferir uniformidade… Podemos dizer que dois ou mais fenômenos são reunidos ao acaso ou que coexistem ou se sucedem por acaso, no sentido de não serem, de modo algum, vinculados pela causação; que não são nem a causa ou o efeito um do outro, nem efeitos da mesma causa ou de causas entre as quais subsista uma lei de coincidência, nem efeitos da mesma colocação de causas primárias”. De modo semelhante, Ardigò (Opere, III, p. 122) relaciona o acaso com a pluralidade e o entrelaçamento de séries causais distintas. Essa noção, todavia, é objetiva só entre certos limites, ou melhor, só na aparência. Dizer que o acaso consiste no encontro de duas séries causais diferentes significa que ele é um acontecimento causalmente determinado como todos os outros, mas só mais difícil de ser previsto porque a sua ocorrência não depende do curso de uma série causai única. Segundo essa noção, a determinação causai do acaso é mais complexa, mas não menos necessitante; a imprevisibilidade, característica fundamental do acaso, deve-se tão-somente a tal complexidade e não é de natureza objetiva. Para que seja de natureza objetiva, tal imprevisibilidade deve ser realmente devida a uma indeterminação efetiva inerente ao funcionamento da própria causalidade.

3) Essa última alternativa constitui um terceiro conceito do acaso, conceito que se pode fazer remontar a Hume. Parece que Hume quer reduzir o acaso a um fenômeno puramente subjetivo, pois diz: “Embora não haja no mundo alguma coisa como o acaso, a nossa ignorância da causa real de cada acontecimento exerce a mesma influência sobre o intelecto e gera semelhante espécie de crença ou de opinião”. Mas, na realidade, se não existe “acaso” como noção ou categoria em si, tampouco existe a “causa” no sentido necessário e absoluto do termo; existe somente a “probabilidade”. E é na probabilidade que está fundado o que chamamos acaso: “Parece evidente que, quando a mente procura prever para descobrir o acontecimento que pode resultar do lançamento do dado, considera-se o aparecimento de cada lado como igualmente provável; e essa é a verdadeira natureza do acaso: de igualar inteiramente todos os eventos individuais que compreende” (Inq. Conc. Underst., VI). Essa ideia de Hume deveria revelar-se extremamente fecunda na filosofia contemporânea. O conceito, de que o acaso consiste na equivalência de probabilidades que não dão acesso a uma previsão positiva em um sentido ou em outro foi enfatizado por Peirce, que também viu sua implicação filosófica fundamental: a eliminação do “necessitarismo”, isto é, da doutrina segundo a qual tudo no mundo acontece por necessidade (Chance, Love and Logic, II, 2; trad. it., p. 128 ss.). Desse ponto de vista, o acaso torna-se um exemplo particular do juízo de probabilidade, mais precisamente, de que a própria probabilidade não tem relevância suficiente para permitir prever um evento. Nesse sentido, o acaso foi considerado uma espécie de entropia e o conceito relativo comumente é empregado no campo da informação e da cibernética. [Abbagnano]


Pode significar: 1. o que não é necessário por sua essência nem está determinado por uma causa eficiente ou final (acaso absoluto) (princípio de causalidade); 2. o que tem causa eficiente, mas não tem causa final (princípio de finalidade). — Casual entende-se ou no sentido da contingência ou do acaso (2). — O caso absoluto (1) designa completa absurdidade ou carência de sentido do real; opõe-se à unidade do ser. No que tange à Causa primeira (Deus) não há acaso (2) relativo; este só se dá em relação às causas segundas, como efeito acessório imprevisto de alguma coisa querida ou como efeito oriundo de duas ou mais causas eficientes, que não estão de propósito orientadas para ele nem por natureza nem por ação de uma causa estranha dirigida a um fim. Neste sentido, o acaso não é regulado nem pela natureza nem pelo fim. — Denomina-se teoria do acaso (casualismo) a tentativa de explicar, à margem de causas finais, o que na natureza aparece como teleológico, p. ex., as diversas manifestações da ordem nas coisas e a origem dos graus mais elevados do ser, a partir dos inferiores (finalidade). A teoria do acaso é acientífica, porque não logra assinalar causa alguma de passagem de um estado de desordem cósmica ao estado de ordem agora existente e regido por leis. É arbitrária, porque restringe o acaso à origem primeira das coisas. — Frank [Brugger]


A característica de um acontecimento, de um fato cujo desenvolvimento não se pode prever. — A questão de saber se é possível determinar a causa dos acasos (encontros, sorte) foi, durante mui- s to tempo, um assunto de discussão: em direito, o acaso não tem causa, uma vez que é pura “contingência (exemplo tipo, citado por Coumot, da telha que cai do teto, “seja que eu passe ou que não passe na rua”); entretanto, a ciência (cálculo das probabilidades) focalizou seu estudo até no domínio do indeterminado: segundo Cournot, o acaso seria apenas a “combinação” de acontecimentos que pertencem a séries (causas) independentes umas das outras.” Assim, pode-se determinar praticamente, em função da lei dos grandes números, a quantidade exata dos tiros de canhão que, por uma mesma alça de mira da boca de fogo, cairão em “diferentes zonas de dispersão do tiro”, com a condição de que o número de tiros seja grande (100, por ex.). Não existe, para a ciência, indeterminação pura ou acaso no sentido amplo do termo: o acaso liga-se a uma previsão estatística (ao que a física moderna denomina “determinismo global”). [Larousse]


(lat. casus)

1. O acaso é aquilo que não podemos prever, o que permanece indetermina-do. Na filosofia antiga e renascentista, assemelha-se ao destino acidental da criação do mundo e à contingência dos acontecimentos futuros. quer dizer, à sua nãonecessidade. Todo o esforço do homem consistiu em reduzir a possibilidade do acaso. Os mitos, a religião e a ciência tentam contê-lo nos limites da certeza e do conhecido. Num certo sentido, é aquilo que não conhecemos ainda, é o nome que damos à nossa ignorância: a característica dos fenômenos fortuitos é a de que dependem de causas muito complexas que ignoramos ainda. Cournot deu uma definição célebre do acaso, fazendo dele o resultado de duas séries de acontecimentos independentes que concorrem acidentalmente para produzir um fenômeno: saio de casa para visitar um amigo e, na rua, um vaso de flores cai sobre minha cabeça. Contudo, o acaso não é somente o produto de séries totalmente independentes, como nos mostra todo jogo de azar. Hoje, depois que se começou a matematizar o acaso, ele está ligado à noção de probabilidade e à teoria dos jogos. Assim. conseguimos medir a eventualidade do aparecimento de um acontecimento. Além disso, o acaso se tornou o princípio de explicação em física: o princípio de indeterminismo de Heisenberg tende a reduzir a causalidade direta em microfísica: também as teorias da evolução, em biologia molecular, submetem o acaso a uma certa “finalidade”.

2. Na linguagem corrente. a palavra acaso é frequentemente utilizada para designar a causa fictícia daquilo que acontece de modo imprevisto; melhor ainda, é o nome que damos à ausência de causa, àquilo que parece não resultar nem de uma necessidade inerente à natureza das coisas nem tampouco de um plano concebido pela inteligência: tudo o que nos parece indetermina-do ou. imprevisível aparece-nos como efeito do acaso. Ver indeterminismo. [DBF]