SCHELER (Max), filósofo alemão (Munique 1874 — Francfort-sobre-o-Meno 1928). Foi um representante da fenomenologia, cujas análises estendeu à ordem dos sentimentos humanos: morais e religiosos. O formalismo em ética e a ética material dos valores (1913-1916), Essência e formas da simpatia (1923), A situação do homem no mundo (1928) desenvolvem um personalismo muito concreto (a pessoa é um “centro de atos irredutíveis a qualquer atividade particular em que se manifesta”) aliado a uma teoria bastante abstrata dos valores como essências eternas, distintas e imutáveis. [Larousse]
Max Scheler (1875-1928) foi discípulo de Eucken, mas encontrou na fenomenologia de Husserl seu campo de ação, que ele desenvolveu com observações e contribuições próprias. As contribuições mais importantes de Scheler se dão no terreno da axiologia (a ciência dos valores). Influído pelo pensamento de Santo Agostinho, Pascal e Nietzsche, Scheler (esse “Nietzsche cristão”, como o chamaram) construiu uma teoria dos valores, que examinamos em nosso “Filosofia Concreta dos Valores”. [MFS]
A. Personalidade. Influências. Evolução.
Entre os filósofos que receberam a influência de Husserl, Max Scheler ocupa lugar de destaque, graças a sua originalidade e a seus dotes especulativos. Nascido em Munique, em 1874, foi discípulo de Eucken, ensinou primeiramente nas universidades de Iena e de Munique e, desde 1919, na de Colônia. Desta foi chamado para a universidade de Francfort do Meno, onde morreu em 1928, antes de haver dado início a seus cursos.
Scheler era uma personalidade extraordinária, sem dúvida, o pensador alemão mais fulgurante de seu tempo. Sua força reside no campo da ética; mas dedicou igualmente interesse não menos apaixonado à filosofia da religião, à sociologia e a outros problemas. Seu pensamento é sempre importante e próximo da vida, e seus escritos são extremamente ricos de problemas. No domínio da ética, sua obra é sem dúvida a mais importante e a mais característica da primeira metade do século XX.
As mais diversas correntes estimularam seu pensamento. Na quadra da juventude esteve sob a influência de seu mestre Eucken, da qual dão testemunho seus dois primeiros livros. O pensamento de Eucken gira em torno da vida do espírito. Eucken é uma espécie de filósofo da vida, com a diferença de que nele ocupa o primeiro lugar a vida do espírito. É outrossim um dos admiradores de S. Agostinho. Estes dois rasgos, voltamos a encontrá-los em Scheler. Assim, segundo ele, S. Agostinho é o grande teórico do amor, de um amor concebido pelo grande santo de maneira original e desconhecido dos gregos. No segundo período de sua vida, Scheler prosseguirá conscientemente nesta via. Além de S. Agostinho, influíram nele, de maneira definitiva, a filosofia da vida, Nietzsche, Dilthey e Bergson. Pelo que, houve quem o chamasse o “Nietzsche católico” (Troeitsch). Contudo, Husserl foi, talvez, para ele mais importante, pois Scheler não faz mais do que continuar-lhe a doutrina, modificá-la e transpô-la para outro plano. Depois do fundador, passa por ser o primeiro fenomenólogo.
Podemos distinguir três períodos na vida de Scheler. O primeiro — como fica dito — é dominado por Eucken. A seguir, vem a fase da maturidade (entre 1913 e 1922), durante a qual surgem as obras decisivas: Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik (O formalismo em ética e a ética material dos valores), que apareceu primeiramente no Anuário de Husserl (1913-1916), sua obra fundamental, e duas coleções de ensaios com os títulos Vom Umsturz der Werte (Acerca da subversão dos valores) (1919) e Vom Ewigen im Menschen (Do eterno no homem) (1921). Nesta época Scheler é personalista, teísta e cristão convicto. Sofre, em seguida, uma transformação interior, em que têm alguma participação sua natureza pouco unitária e o dinamismo apaixonado de sua vida: não só perde a fé de outrora, como também abandona sua posição de teísta. Esta mudança revela-se já em Die Wissens¡formen und die Gesellschaft (As formas do saber e a sociedade) (1926); e Die Stellung des Menschen im Kosmos (A situação do homem no cosmos) (1928) exprime-a da maneira mais clara. Se até então a filosofia de Scheler se centrava na ideia do deus de amor pessoal, de ora avante diz-nos que o homem “é o lugar único da divinização”. A morte prematura impediu que Scheler desenvolvesse pormenorizadamente seu pensamento deste último período de sua vida.
B. A teoria do conhecimento.
Existem no homem três espécies de saber. A primeira é o saber indutivo das ciências positivas. Baseia-se no instinto de dominação e nunca chega a leis compulsivas. Seu objeto é a realidade. Scheler admite a existência da realidade, mas afirma com Dilthey que um ser puramente cognoscente não teria realidade, porque a realidade é aquilo que opõe resistência a nosso esforço. O choque com essa resistência prova a existência do real.
A segunda espécie de saber é o saber da estrutura essencial de tudo o que é, da “quididade” (die Washeit) das coisas. A este saber conduz-nos a abstenção do comportamento instintivo, a abstração da presença real das coisas; seu objeto é” o a priori. Scheler assegura, com Kant, que existe um conhecimento do a priori. Considera a priori todas as proposições e unidades significativas ideais que são dadas, abstraindo de toda “posição” do sujeito que as pensa. Contudo, neste terreno, Scheler opõe-se em diferentes pontos a Kant. Em primeiro lugar, as essências, e não as proposições, constituem primariamente o a priori. Em segundo lugar, o domínio do “a priori-evidente” nada tem que ver com o domínio do formal: existe um a priori material, conteúdos independentes da experiência e da indução. Scheler rejeita energicamente o conceptualismo idealista e o nominalismo positivista. Além disso, tampouco quer conceder a Kant que a teoria do conhecimento seja a teoria fundamental do a priori. O proton pseudos (o primeiro passo em falso) dos kantianos consiste em haver posto a questão: como é possível que alguma coisa possa ser dada? em vez da questão fundamental: “que coisa é que é dada?”. Por isso, a teoria do conhecimento não é, segundo ele, senão uma seção da doutrina das relações objetivas das essências. Por fim, a teoria kantiana da espontaneidade do pensamento, segundo a qual tudo o que é relação deve ser produzido pelo entendimento (ou antes, pela razão prática), afigura-se-lhe ser radicalmente falsa. Na realidade, não existe entendimento que prescreva suas leis à natureza. Só podemos estabelecer o que estriba numa convenção, nunca porém leis. Mas o erro máximo de Kant e de toda a filosofia racionalista consiste em haver confundido o a priori e o racional. Na realidade, toda nossa vida espiritual possui um conteúdo a priori — mesmo a parte emotiva do espírito, a que sente, ama, odeia, etc. Existe uma “ordem do coração” a priori, uma “lógica do coração” (Pascal) em sentido estrito. Scheler desenvolveu, a partir deste ponto de vista, a fenomenologia de Husserl de maneira peculiar e abriu-lhe novos horizontes. Designou esta doutrina apriorismo emocional.
A terceira espécie de saber é o saber metafísico ou saber de salvação. Provém da junção dos resultados das ciências positivas com a filosofia que estuda a essência. Constituem seu objeto, primeiramente, os problemas-limites das ciências (por exemplo, “que é a vida?”) e, em seguida, a metafísica do absoluto. Contudo, o caminho para esta metafísica não pode partir do ser–objeto, mas arranca da antropologia filosófica, a qual se propõe a questão: “que é o homem?”. A metafísica moderna deve ser uma meta-antropologia.
C. Os valores.
Os objetos intencionais do sentir (intentionale Gegenstände des Fuhlens) são o a priori do emocional: são os valores. O entendimento é cego para eles, mas eles são dados imediatamente ao sentir intencional, como as cores à visão. São a priori.
Scheler leva a cabo uma crítica demolidora, por um lado, de toda espécie de nominalismo axiológico, para o qual os valores nada mais são do que fatos empíricos, e, por outro lado, do formalismo ético. Por esta forma consegue liberar a filosofia dos preconceitos dominantes no século XIX, mediante um esforço comparável ao de Bergson no campo teórico. Não podemos entrar aqui nos pormenores desta crítica e circunscrevemo-nos a traçar suas linhas fundamentais.
No comportamento humano distingue Scheler a tendência (Streben), os fins (Zwecke), os objetivos (Ziele) e os valores (Werte). O fim é um conteúdo, dado para ser realizado; pertence sempre à esfera dos conteúdos figurados, é, portanto, representado. Nem em toda tendência há um fim. Pelo contrário, toda tendência tem um objetivo: radica no próprio curso da tendência e não é condicionado por nenhum ato da representação. Em todo objetivo há um valor: o valor é o conteúdo imediato do objetivo. É totalmente errônea a afirmação de que o homem aspira sempre ao prazer. Na realidade nunca procura originariamente o prazer nem qualquer outro estado afetivo, mas sim os valores. E mesmo nos casos em que o prazer se converte em objetivo, na intenção ele converte-se em valor. Mas nem todo dado de valor está ligado a uma tendência: podemos sentir valores (mesmo éticos) sem tender para eles. Segue-se, portanto, que os valores não dependem dos fins, mas radicam já nos objetivos de nossas tendências, que lhes servem de fundamento, e mais ainda aos fins. Por outro lado, tampouco se deve confundir o valor com o dever ser. Scheler distingue aqui entre o “dever ser ideal” e o “dever ser normativo” (imperativista). Neste último, um conteúdo de “dever ser ideal” é referido, como exigência, a uma tendência. O valor fundamenta o dever ser ideal e este é o fundamento do dever ser normativo. Constitui grave equívoco pretender construir a ética sobre este último.
Os valores são tudo menos relativos: são absolutos no duplo sentido da palavra. Seu conteúdo não é uma relação; pertencem à categoria da qualidade, e são imutáveis. Relativo é o nosso conhecimento dos valores, e não os valores. Neste ponto Scheler investe energicamente contra as diferentes formas de relativismo e, especialmente, contra a ética relativista. Empreende, sucessivamente, o exame do subjetivismo que reduz os valores ao homem, do relativismo que os reduz à vida ou os considera historicamente necessitados. Deste ponto de vista, descobrimos variações do sentimento (portanto, do conhecimento) dos valores (Ethos), variações no juízo dos valores (Ethik), variações dos tipos unitários de instituições, de bens e de ações, da moralidade prática, que afeta o valor do comportamento humano, finalmente variações dos costumes e usos tradicionalmente estabelecidos. Tudo isto é captado numa evolução constante, mas os valores morais permanecem intatos. Estes podem ser mais ou menos bem captados, concebidos e formulados, mas, em si mesmos, permanecem absolutos e imutáveis.
Os valores constituem um mundo de relações, no qual reinam as relações de essência e as leis formais a priori. Segundo isso, os valores dividem-se em positivos e negativos. A existência de um valor positivo é, em si mesma, um valor positivo, e sua não–existência um valor negativo; a existência de um valor negativo é um valor negativo, e sua não–existência um valor positivo. O mesmo valor não pode ser, a um tempo, negativo e positivo, todo valor não negativo é positivo e vice-versa. Os valores agrupam-se em superiores e inferiores. São valores superiores os mais consistentes, os menos “divisíveis”, os que servem de fundamento aos outros, os que provocam satisfação mais profunda, finalmente os que são os menos relativos. A hierarquia a priori das modalidades de valor é a seguinte: 1) valores sensíveis: o agradável e o desagradável; 2) valores vitais: o nobre e o vulgar; 3) valores espirituais: o belo e o feio, o justo e o injusto, o conhecimento puro da verdade; 4) valores do sagrado e do profano. A verdade não é um valor. Esta classificação não contém os valores éticos (morais), porque estes consistem na realidade de outros valores relativamente superiores ou inferiores.
Finalmente, os valores agrupam-se segundo seus portadores. A divisão mais importante é a de valores de pessoa e valores de coisa. São valores de coisa ou reais os que concernem a objetos de valor (bens), entre outros também aos bens de cultura. São valores de pessoa ou pessoais os valores da “própria” pessoa e os valores de virtude. São, por essência, superiores aos valores de coisa. Só a pessoa é originariamente boa ou má. Em segundo lugar, estes valores correspondem às direções da capacidade moral e, em terceiro lugar, aos atos de uma pessoa. Pelo que, os valores morais são valores pessoais por excelência.
D. A pessoa e a comunidade.
O problema da pessoa ocupa o centro do sistema de Scheler. A pessoa não se identifica com a alma, nem mesmo com o eu. Nem todos os homens são pessoas no sentido pleno da palavra. A noção de pessoa compreende o pleno uso da reflexão (Vollsinnigkeit), a maturidade (Mundigkeit) e o poder de escolher (Wahlmächtigkeit). A pessoa não se identifica com a substância da alma, não é psíquica nem tem nada que ver com o problema psicofísico, com o caráter, a saúde ou a insanidade da alma, etc. Não é nem substância nem objeto. É antes a unidade de ser concreta de atos (konkrete Seinseinheit von Akten), que não são objetos. A pessoa existe unicamente na execução de seus atos. Mas isto não quer dizer que ela seja simples “ponto de partida” de atos e, menos ainda, que ela consista nestes atos, como o considerava Kant. A pessoa apresenta-se antes como inserta, toda quanta, em cada ato e variando com ele, sem que seu ser seja absorvido por algum ato. E como a esfera total dos atos é espírito, a pessoa é, por essência, espiritual. Por espirito, entende Scheler não a inteligência nem a capacidade de escolher — visto que, sob este respeito, não haveria nenhuma diferença essencial entre um chimpanzé inteligente e Edison, mas tão só diferença de grau — mas um princípio novo e totalmente diferente da natureza. Os atos que determinam o espírito não são funções do eu, são apsíquicos (mas nem por isso são físicos); são executados, ao passo que as funções psíquicas se executam. O ato de ideação, ou seja, a faculdade de separar a existência da essência, constitui a característica fundamental do espírito humano. Por conseguinte, o espírito é objetividade, possibilidade de ser determinado pelo “ser assim” (Sosein) das próprias coisas.
A pessoa é totalmente individual; cada homem, na medida em que é uma pessoa, é um ser e um valor único. O individual opõe-se, neste caso, ao geral, não à totalidade. Não se pode falar de uma pessoa geral: a “consciência em geral” de Kant é um absurdo. A pessoa é autônoma de duas maneiras: por um lado, temos a autonomia da visão pessoal do bem e do mal; por outro lado, a autonomia do ato pessoal de querer o que é dado como bem ou mal. A pessoa está também unida ao corpo, mas sem qualquer relação de dependência relativamente a ele; o domínio sobre o corpo é antes uma das condições da existência da pessoa. Por último, a pessoa nunca é “parte”, mas é sempre o correlato de um “mundo”, de sorte que a cada pessoa corresponde um mundo (microcosmo) e a cada mundo uma pessoa.
Mas a pessoa divide-se em pessoa singular e em pessoa plural (Gesamtperson). Compete à essência de uma pessoa que ela seja originariamente, em todo seu ser e agir espiritual, tanto uma realidade individual (pessoa singular) quanto uma realidade que seja membro de uma comunidade. A cada pessoa finita “pertence” pois uma pessoa singular e uma pessoa plural. Esta última radica nos centros múltiplos da vida, na totalidade da vida em comum. Scheler distingue quatro tipos de unidades sociais: 1) unidade por contágio e imitação involuntária (a massa); 2) unidade por convivência ou por viver-segundo, de sorte que haja uma compreensão entre os membros, mas que não preceda a convivência (comunidade de vida); 3) unidade artificial, na qual toda relação entre indivíduos se estabelece mediante certos atos conscientes (sociedade; aliás, não há sociedade sem comunidade); 4) unidade de pessoas singulares autônomas numa pessoa plural autônoma, espiritual, individual. A unidade desta última funda-se numa unidade de essência com referência a um valor determinado. Não existem, de fato, senão dois tipos de pessoas plurais puras: a igreja (valor de salvação) e a nação ou esfera de cultura (pessoa plural cultural, valores culturais espirituais).
E. O homem e Deus.
A palavra “homem” tem dupla significação. O homem enquanto homo naturalis é um diminuto rincão, um beco sem saída da vida, a qual constitui um todo único em constante evolução. Não se desenvolveu a partir do mundo animal: era animal, é animal e será eternamente animal. A humanidade do homo naturalis não possui unidade nem grandeza. Não existe equívoco maior do que a adoração, por parte de Comte, desta humanidade como o “grand être”. Mas a palavra “homem” tem ainda outro significado: homem é o ser que ora, o que busca Deus, a imagem finita e viva de Deus: o ponto de irrupção de uma forma prenhe de sentido, de valor e de eficácia superior a toda existência natural, a “pessoa”.
O homem possui uma experiência religiosa original e inderivável: o divino pertence ao dado mais primitivo da humana consciência. As determinações mais formais da essência do divino são: ens a se, infinidade, omni-realidade e santidade. O Deus religioso é um Deus vivo: é pessoa, a pessoa das pessoas. O Deus panteísta não é mais que um reflexo da fé teísta. A censura de antropomorfismo, que se faz a esta última, é absurda e cômica, porque não é Deus que é concebido à imagem do homem, senão o inverso: a única ideia sensata que se pode ter do “homem” é um “teo-morfismo”. Todo espírito finito crê ou em Deus ou num ídolo, e até o agnóstico crê no nada. À fé corresponde, por parte de Deus, a revelação. Por este motivo a religião e a fé não são dadas senão pela ação de um Deus pessoal.
A metafísica, que é sempre hipotética, não pode fundamentar a religião. Aliás, o deus da filosofia não é mais do que um rígido fundamento do mundo. Se as provas da existência de Deus gozaram de força persuasiva na Idade Média, coisa que hoje não acontece, é porque então havia uma rica experiência religiosa. No entanto, a metafísica é uma fase preliminar absolutamente necessária de todo conhecimento religioso; porque uma cultura sem metafísica é uma impossibilidade religiosa. Por outro lado, a religião reinterpreta a sistemática essencial do mundo (Konformitätssystem). Todavia, Scheler aduz nova prova da existência de Deus: todo saber que se tem de Deus é um saber mediante Deus; ora, como existe semelhante saber, isto é, um ato religioso, segue-se que também Deus existe. :Êle é dado como correlato do mundo: assim como a cada microcosmo corresponde uma pessoa finita, Deus como pessoa corresponde à totalidade do mundo (macrocosmo).
F. O amor.
As ideias até aqui expostas são já revolucionárias em seu conteúdo e forma, mas é com a sua teoria do amor que Scheler se opõe da maneira mais radical ao pensamento do século XIX. Em primeiro lugar, o amor não se identifica com a simpatia, nem é, em geral, um sentimento. Não pressupõe nenhum juízo, não é um ato do esforço humano. Nada tem de social em si e tanto pode ser dirigido a si como a outrem. Todas as teorias do século XIX sobre o amor padecem de grave equívoco. Identificou-se o amor com o altruísmo, ideia absurda, segundo a qual outrem deve ser amado enquanto outro. Fêz-se dele um amor da humanidade, um amor a qualquer coisa de abstrato, o que é nova monstruosidade. Identificaram-no com a inclinação para melhorar ou ajudar a outrem, rasgo que pode ser o resultado do amor, mas que não funda sua essência. Valendo-se de minuciosa análise, mostra Scheler que o altruísmo e formas análogas da mentalidade moderna se baseiam num ressentimento; portanto, no ódio a valores superiores e, em última instância, a Deus. O sentimento de inveja que se tem aos sujeitos portadores de valores superiores gerou os ideais igualitários e humanitários que, no fundo, são uma negação do amor.
O amor genuíno (como o ódio genuíno) é sempre amor de uma pessoa, não de um valor enquanto tal; Scheler vai ao extremo de afirmar que não é possível amar o bem. O amor endereça-se à pessoa como realidade através do valor da pessoa. A análise do amor que se tem a uma pessoa mostra que a soma dos valores de uma pessoa amada não pode nem de longe coincidir com o nosso amor a ela. Subsiste sempre um “insondável” mais. Este “mais”, a pessoa concreta do ente amado, é o verdadeiro objeto do amor. O último de todos os valores morais da pessoa só nos é dado na “co-execução” (Mitvollzug) de seu próprio ato de amor.
O amor é um movimento, no qual cada objeto individual concreto, portador de valores, chega ao valor mais elevado possível segundo sua determinação ideal. Visa ele elevar o amado e eleva também o amante. O amor compreensivo é o escultor que, dado o caso, numa simples ação, num só gesto — independentemente de todo conhecimento empírico e intuitivo, que antes encobre a essência da pessoa — é capaz de apreender pela vista as linhas de sua essência de valor. Eis o motivo por que o progresso moral e, em geral, axiológico, é sempre devido a pessoas sociais exemplares, ao gênio, ao herói, ao santo.
O ponto culminante do amor é o amor de Deus, concebido não como amor a Deus infinitamente bom, mas como “co-execução” de seu amor para com o mundo (amare mundum in Deo). Deus aparece como centro supremo do amor. Êle confere à pessoa o fundamento de seu sentido, ou seja, seu amor. Por último, a teoria da comunidade é considerada sob este ponto de vista.
A filosofia que Scheler esboçou já no fim da vida significa a negação de grande parte de suas doutrinas anteriores. Sua tese capital é, agora, que as etapas superiores do ser são mais fracas que as inferiores. O que há de primordial e mais potente são os centros de força, cegos para as ideias, formas e estruturas, do mundo inorgânico como ínfimo ponto de ação de um ímpeto cego. Sobre esta base, Scheler esboçou uma teologia que relembra muito a que Alexander elaborara anteriormente. Mas este período de seu pensamento permaneceu inacabado. Perante a história, ele continua sendo o pensador personalista e teísta; e seu mérito imarcescível será o ter rompido com os preconceitos monistas do século XIX e restaurado a pessoa em todos os seus direitos. Sua importância reside outrossim no fato de que, por ter sublinhado o caráter não objetivável da pessoa, representa uma transição para a filosofia da existência. [Bochanski]