Silburn
O Xivaísmo é chamado Trika porque distingue três planos da realidade: Xiva, a Energia, o indivíduo. Esses planos correspondem a três níveis de experiência sobre cada um dos quais predomina uma energia: o puro Sujeito conhecedor, todo por inteiro em seu ato de vontade, o conhecimento onde reina naturalmente a energia cognitiva, enfim o nível do objeto conhecido, onde se exerce a atividade.
A aparição dessas três energias divinas em uma rápida sucessão corresponde aos três momentos da manifestação diferenciada do universo e cobre todo o campo da experiência humana:
Nada aparece que não repouse na tripla energia consciente se exprimindo por: eu quero, eu sei, eu faço » escreveu Abhinavagupta [H.A. p. 13].
Mas os dois primeiros momentos são tão sutis que escapam ao homem ordinário que ignora o processo, pois vive no único nível da objetividade e da dualidade. O místico, ao contrário, volta ao momento inicial, à tomada de consciência do abalo original, esse da incitação divina, e se esforça de aí se manter tomando uma firme consciência de sua essência. [tr. Antonio Carneiro, de excerto de SILBURN, Lilian. HERMÈS I. 1981, p. 145]
Hulin
O Śivaismo do Kaśmïr — ao qual nos referiremos aqui pelo seu nome usual de Trika [[O sistema é chamado de “trinitário” porque admite três realidades fundamentais: Śiva, śakti e a alma individual — anu —, porque sua não-dualidade [abheda] também incorpora a dualidade [bheda] e a dualidade-e-não-dualidade [bhedābheda], porque inclui as três escolas Kula, Krama e Pralyabhijnā, e assim por diante. Mas o termo Trika deu origem a muitas outras “justificativas” simbólicas e místicas; detalhes em K. G. Pandey, Abhinavagupta, pp. 294-296 e 597-603.]] — se assemelha ao Advaita de Sankara no sentido de que também é um não-dualismo de consciência pura [samvid, bodha, cit, etc.]. Seria fácil encontrar nele a mesma abordagem fundamental de retorno dos fenômenos particulares à autoluminosidade — svayamprakāsatā — como o princípio último da manifestação. Esse ponto será assumido aqui e nossa investigação se concentrará apenas nas diferenças significativas que separam as duas escolas. Mas, em vez de confrontar imediatamente duas dogmáticas constituídas, é melhor tentar detectar, no próprio nível da experiência, a lacuna sutil por meio da qual a originalidade do projeto filosófico e místico específico do Trika é sinalizada.
A intuição fundadora da doutrina poderia ser formulada nestes termos: a instabilidade da consciência empírica, em seus vários aspectos de distração, imaginação desordenada, curiosidade extrovertida, medo e esperança, etc., não é algo que deva ser dado como certo, Pelo contrário, atesta a presença em nós de uma inquietude que é constitutiva da própria consciência absoluta, uma espécie de expansividade e efervescência espontâneas por meio das quais, escapando da inércia e da morte, se realiza precisamente como consciência. Disso decorre: 1] que a consciência é, em suas profundezas, o vazio criativo, a expectativa e o chamado da manifestação cósmica; 2] que sua relação com a multiplicidade, antes de ser impureza e alienação, é prazer, porque representa sua possibilidade mais íntima; 3] que o infortúnio da existência finita tem menos a ver com a apropriação pela consciência de conteúdos estranhos fictícios [o corpo e outros upādhi] do que com um certo entorpecimento de seu dinamismo intrínseco que a torna obcecada por esses conteúdos, suas próprias criações, e a impede de retornar a si mesma indo além deles; 4] que a reconquista do si — a abolição da distância entre a consciência empírica individual e a consciência absoluta — envolve não tanto uma conversão do olhar para dentro [como em Advaita, Yoga clássico, etc.] quanto um tipo de sobressalto heroico da consciência sacudindo sua própria letargia. Logo se tornará aparente que os principais temas do Trika: a substituição do par Śiva-śakti pelo par brahman-māyā, da pūrnāhamtā [“egoísmo em sua plenitude”] pelo ātman, a procissão das hipóstases, a valorização “iogue” da experiência perceptiva e afetiva, etc., não fazem mais do que explorar essa intuição original e suas consequências diretas. Começaremos, portanto, examinando alguns textos dedicados a revelar esse afloramento de um dinamismo positivo na própria consciência empírica. [PEPIC:285-286]