sobrenatural

(in. Supernatural; fr. Surnaturel; al. Übernaturlich; it. Soprannaturalé).

O que acontece na natureza, mas não decorre das forças ou dos procedimentos da natureza e não pode ser explicado com base neles. É um conceito próprio da teologia cristã, que atribui à a crença no sobrenatural assim entendido (cf. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q. 99, a. 1). (Abbagnano)


Na linguagem corrente da teologia católica, designa o que não pertence à substância ou à complementação da natureza, nem é consequência ou exigência desta. Natureza pode aqui entender-se como natureza ou essência de um indivíduo ou, então, como a totalidade dos seres finitos. Sendo assim, distingue-se o sobrenatural com relação a uma natureza individual (= extranatural) e o simplesmente sobrenatural, ou seja, com relação à totalidade da natureza criada. Aquilo que para uma natureza individual é extranatural (p. ex., a vida para uma pedra), pode ser natural para outra (p. ex., a vida para a planta). O simplesmente sobrenatural ou sobrenatural absoluto é natural só para Deus, e tão peculiar é a Ele, que por natureza não pode convir a nenhuma criatura. Contudo, se Deus o torna acessível, fá-lo por pura graça (participação da natureza divina concedida como dom). O conjunto do simplesmente sobrenatural denomina se sobrenatureza (ou também, e mais frequentemente, o sobrenatural). Embora a sobrenatureza nunca seja complemento da natureza na esfera própria desta, todavia não contradiz, por forma alguma, a natureza espiritual. Pelo contrário, o espírito, com sua abertura ao ser e ao bem, possui, além de sua natural capacidade de complementação ou perfeição, a possibilidade de que Deus, em virtude de seu poder supremo, o eleve a participar de sua própria vida (potentia obedientialis: potência obediencial; vide potência). Portanto, a sobrenatureza não destrói a natureza, antes a pressupõe e aperfeiçoa para além de sua esfera própria. — Entende-se por sobrenaturalismo, ou (1) o reconhecimento de uma ordem sobrenatural, ou (2), desvalorizando o termo, qualquer teoria ou modo de proceder que deprime a natureza perante a sobrenatureza. — O conceito de sobrenatureza é fundamental para compreender a revelação cristã. Deve distinguir-se entre o sobrenatural segundo o ser e o sobrenatural quanto ao modo de acontecer (que se dá, p. ex., quando Deus milagrosamente (vide milagre) restabelece a saúde (vide bem natural) de um homem. Fora do uso teológico, o termo “sobrenatural” significa também, muitas vezes, o supra-sensível ou o espiritual, quando se contrapõe a natureza ao espírito, ou então o divino; mas a teologia católica distingue conceptualmente entre Deus como Criador (na ordem natural) e Deus como Autor da graça (na ordem sobrenatural). vide mistério. — Brugger.


Distinguem-se duas espécies de sobrenatural:

1. O sobrenatural absoluto ou por essência (quoad substantiam) é um dom divino feito à criatura inteligente, o qual transcende absolutamente as exigências de toda a criatura, ainda mesmo possível, neste sentido que não só não pode ser produzido, mas nem sequer postulado, exigido, merecido por ela; excede, pois, não somente todas as suas capacidades ativas, mas ainda todos os seus direitos e exigências. É algo de finito, pois que é um dom concedido a uma criatura; mas ao mesmo tempo é algo de divino, visto que só o divino pode sobrepujar as exigências de toda a criatura. Mas é divino comunicado, participado dum modo finito, e assim evitamos o panteísmo. Não há em realidade senão duas formas de sobrenatural por essência: a Encarnação e a graça santificante.

A) No primeiro caso, une-se Deus à humanidade na Pessoa do Verbo, de tal sorte que a natureza humana de Jesus tem por sujeito pessoal a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, sem ser alterada como natureza humana; assim pois, Jesus, homem por sua natureza, é verdadeiramente Deus, quanto à sua personalidade. É esta uma união substancial, que não funde duas naturezas em uma só, senão que as une, conservando-lhes a integridade, em uma só e mesma Pessoa, a Pessoa do Verbo; é, pois, uma união pessoal ou hipostática. É o mais alto grau de sobrenatural quoad substantiam.

B) A graça santificante é um grau menor deste mesmo sobrenatural. Por ela, conserva o homem, sem dúvida, a sua personalidade própria, mas é modificado divina, posto que acidentalmente, na sua natureza e capacidades de ação; torna-se não certamente Deus, mas deiforme, isto é, semelhante a Deus, divitiae consors naturae, capaz de atingir a Deus diretamente pela visão beatífica, quando a graça for transformada em glória, e de o ver face a face, como Ele se vê a si mesmo: privilégio que, evidentemente, sobrepuja as exigências das mais perfeitas criaturas, pois que nos faz participar da vida intelectual de Deus, da sua natureza.

60. 2. O sobrenatural relativo ou quanto ao modo (quoad modum) é em si uma coisa que não transcende as capacidades ou exigências de toda a criatura, mas somente as de alguma natureza particular. Assim, por exemplo, a ciência infusa, que sobrepuja as capacidades do homem, não porém as do anjo, é sobrenatural deste gênero.

Deus comunicou ao homem estas duas formas de sobrenatural: com efeito, conferiu aos nossos primeiros pais o dom de integridade (sobrenatural quoad modum) que, completando-lhes a natureza, a dispunha à recepção da graça, e ao mesmo tempo outorgou-lhes a própria graça, dom sobrenatural quoad substantiam: o complexo destes dois dons constitui o que se chama a justiça original. (CTAM)


Talvez seja útil observar que esse ponto de vista, de acordo com o qual a natureza é considerada como um símbolo do sobrenatural, não é de modo algum novo, e que, ao contrário, foi de uso corrente na Idade Média, principalmente pela escola franciscana e, em particular, por São Boaventura. (Guénon)