Antes de determinar-se em sua configuração tangível e orgânico-representativa, isto é, como corpo, a vida existe em forma fluida e sub-liminal, como pré-corpo, como Sangue. A forma apolínea do corpo emerge da Noite dionisíaca do Sangue, do Sangue passional que é o nosso verdadeiro ser. A força plasmática e criadora do Sangue, do Sangue como emblema real da Vontade, é que produz a partir de si os órgãos e formações somáticas do corpo humano. Não se trata evidentemente do sangue enquanto objeto de hematologia, do conceito citológico do sangue, pois como já dissemos, essa categoria é apreendida ao transcender-se toda a esfera representativa do nosso conhecimento. Somos esse sangue na pulsação inconsciente e pré-representativa do nosso viver; e é na fluidez noturna dessa vida subliminal que nos captamos como vontade, como querer puro. Os corpos e suas particularidades e idiomatismos próprios obedecem às inflexões desse momento pulsional básico, às modulações do Sangue, desde que devemos rebater e reduzir a representação corpóreo-exterior à caudal produtiva dessa proto-forma do impulso e do apetite. [VFSTM:153]
Em certas representações do simbolismo da Lenda do Graal, as gotas de sangue caem da lança, que perfurou Jesus, sobre o cálice; nesse caso, as gotas de sangue nada mais são, em sua principal significação, que a imagem das influências emanadas de Purusha, o que evoca também o simbolismo védico do sacrifício de Purusha na origem da manifestação.
No mito de Adonis (cujo nome significa “o Senhor”), quando o herói é mortalmente ferido pelas presas de um javali, que desempenham aí o mesmo papel da lança, o seu sangue, ao se espalhar pela terra, dá nascimento a uma flor. Exemplos similares podem, sem dúvida, ser encontrados facilmente, mesmo no simbolismo cristão. É assim que o Sr. Charbonneau-Lassay assinalou: “Uma espada de cavaleiro, do século XII, em que se vê o sangue das chagas do Crucificado caírem em gotas que se transformam em rosas, e o vitral do século XIII da catedral de Angers, em que o sangue divino, correndo em filete, desabrocha também sob a forma de rosas”. (Guénon)
No mesmo artigo que acabamos de citar, o Sr. Char-bonneau-Lassay reproduz um desenho que ornamenta o cânon do altar da abadia de Fontevrault, que data da primeira metade do século XVI e que se conserva até hoje no museu de Nápoles, onde se vê a rosa colocada ao pé de uma lança erguida verticalmente e ao longo da qual escorrem gotas de sangue. A rosa aparece aí associada à lança, do mesmo modo que o cálice em outras situações, e mais parece recolher as gotas de sangue do que resultar da transformação de uma delas. É evidente que as duas significações não se-opõem de modo algum; ao contrário, completam-se, pois as gotas, ao caírem sobre a rosa, fazem com que ela se vivifique e desabroche. É evidente que o papel simbólico do sangue, em todos os casos, tem sua razão de ser na relação direta que mantém com o princípio vital, aqui transposto para a ordem cósmica. Essa chuva de sangue equivale também ao “rocio celeste”, que, segundo a doutrina cabalística, emana da “Arvore da Vida”, outra representação do “Eixo do Mundo”, cuja influência vivificante está relacionada às ideias de regeneração e de ressurreição, claramente vinculadas à ideia cristã da Redenção. (Guénon)