A substância extensa, divisível, ponderável e suscetível de todas as espécies de formas. Nesse sentido é que Aristóteles definiu a matéria como uma realidade “potencial”. — O problema da natureza da matéria é o problema da ciência (em particular da física); o problema fundamental da filosofia é o da natureza do espírito (Bergson, O pensamento e o movente: metafísica e ciência): os domínios respectivos da ciência e da filosofia permanecem assim perfeitamente distintos e determinados, e por isso mesmo impossível de confundirem-se. [Larousse]
O termo grego hyle foi usado, primeiramente, com os significados de bosque, terra florestal, madeira. Foi usado depois também com o significado de metal e de matéria prima de qualquer espécie, isto é, substância com a qual se faz, ou se pode fazer, algo. Significados análogos teve o vocábulo latino matéria, usado para designar a madeira e também qualquer material de construção.
Alguns filósofos pré-socráticos entendiam a realidade primeira como uma entidade de certo modo material. Em todo o caso, esta realidade era concebida em cada caso como uma espécie de massa mais ou menos indiferenciada da qual se supunha que surgissem os diversos elementos e com a qual se pensava que se formavam todos os corpos. Tratava-se de uma espécie de matéria animada ou vivificada.. Pode dizer-se que empregaram um conceito ao mesmo tempo físico e metafísico de matéria. À medida que se procurou um princípio que explicasse realmente o movimento e a formação dos corpos, tornou-se insuficiente esse conceito de matéria. A matéria foi então concebida como uma realidade puramente sensível, ou então como uma realidade essencialmente mutável.. A consideração da matéria como o elemento no qual radicam o movimento e a diversidade dos corpos levou à ideia de matéria como massa informe dos elementos (especialmente dos quatro elementos: fogo, terra, água e ar), massa de que se supunha que surgiam depois, por diferenciação, os próprios elementos. Pode ser esse o caso de Empédocles, e também, em certo sentido, o de Platão.
Com efeito, a distinção estabelecida por Platão entre o ser que é sempre e que nunca muda, e o ser que não é nunca e que muda sempre, leva-o a perguntar-se pelo tipo de realidade deste último ser. Não pode ser uma realidade determinada, pois se assim fosse teria forma, e então não seria perpetuamente mutável. Não pode ser, pois, nenhum dos elementos, de modo que parece concluir-se que tem de ser algo como a massa indiferenciada dos elementos prévia a qualquer formação, isto é, “o comum” em todos os elementos. Mas, nesse caso, é como um receptáculo vazio capaz de acolher qualquer forma. Daí a identificação de receptáculo e matéria. Mas, ao mesmo tempo, temos em Platão outras ideias acerca da matéria – ou daquilo que depois se irá chamar assim. Para já, se equiparar a forma ao ser propriamente dito, a matéria é aquilo que ficará mais perto do não–ser, de modo quem em algumas interpretações do platonismo, se identificarão simplesmente não– ser e matéria. Finalmente, Platão parece inclinar-se por vezes a conceber a matéria informe e primeira como uma realidade que tem determinadas qualidades, e antes demais o movimento, ou a possibilidade de movimento. A matéria é, neste caso, “o visível”, em contraposição a “o inteligível”; é o puramente sensível e o puramente múltiplo em contraposição com o que tem essencialmente ordem, inteligibilidade e unidade. O primeiro filósofo do ocidente em quem a noção de matéria adquire um caráter filosófico e técnico é Aristóteles.
O caráter comum a qualquer noção de matéria, em Aristóteles, é a receptividade; seja qual for a matéria de que se trate, não é propriamente matéria se não estiver, por assim dizer, “disposta a receber alguma determinação”. Isso faz que não haja apenas uma só espécie de matéria, que seria o puramente indeterminado,, mas várias espécies de matéria, de acordo com o seu modo de receptividade.
Nem sempre é fácil nem legítimo distinguir, em Aristóteles, entre o que corresponde à metafísica. Na física, a matéria aparece por vezes como substrato. Este é “aquilo que está sujeito à mudança”, e aquilo donde se inferem as qualidades. Parece, pois, que a matéria é a substância. Contudo, a matéria não é simplesmente a substância, uma vez que é algo comum a todas as substâncias, de modo que aparece como uma espécie de matriz da realidade física e não a própria realidade física.
Enquanto substrato de, a matéria é aquela “realidade sensível” da qual podem abstrair-se uma ou mais determinações. A matéria em geral é uma matéria primeira, algo sensível comum; quando se fala da realidade física em geral, deve ter-se em conta a composição material primeira. A matéria pode ser matéria de alguma realidade determinada – como a que é comum a todos os homens. Entre a matéria primeira e a matéria de não há outra diferença além da completa generalidade da primeira e a maior especificidade da segunda. Em ambos os casos trata-se de uma matéria sensível comum. Enquanto sujeito de mudança, a matéria em questão – especialmente a matéria primeira – é uma matéria genética. Podemos, assim, estabelecer uma série de níveis em que aparece a matéria: matéria primeira em geral; matéria enquanto elementos materiais (os quatro elementos); matéria como matéria de uma realidade determinada (homem, árvore, etc).
O modo metafísico de considerar a matéria é sensivelmente análogo ao físico, mas nele adquire maior importância a relação entre a matéria e a forma. Em rigor, quase sempre que se trata da concepção aristotélica do conceito de matéria, costuma-se estudá-la metafisicamente como um dos termos no famoso binômio matéria e forma. Deste ponto de vista, a matéria define-se como aquilo com o qual se faz algo. Este fazer pode ter dois sentidos: o sentido de um processo natural, e o de uma produção humana. Assim, o animal é feito, ou composto, de carne, ossos, tendões, etc; a estátua é feita de mármore ou bronze. Desse modo, o conceito de matéria adquire um sentido relativo: a matéria é sempre relativa à forma. Por isso a realidade não é a matéria nem forma, mas sempre um composto. É certo que, em certas ocasiões, Aristóteles parece referir-se à matéria como u pura e simplesmente indeterminado. Mas o próprio conceito de indeterminação carece de sentido a não ser que se refira a algo determinado ou a uma possibilidade de determinação. Embora se defina a matéria como possibilidade, dever-se-á admitir que é uma possibilidade para algo. Daí a distinção aristotélica entre a matéria – que é um não ser por acidente – e a privação que é o não ser em si mesmo. A matéria está intimamente ligada à substância, o que não acontece com a privação. A noção de matéria serve, assim, a Aristóteles, para explicar a mudança e o devir.. Como substrato distinto dos contrários, a matéria permite a mudança, uma vez que os próprios contrários não podem mudar. A matéria pode ser, assim, entendida como substância enquanto substrato, isto é, não como aquilo que muda, mas aquilo no qual se produz a mudança.
Deve ter-se presente que a matéria de que fala Aristóteles não é, ou não é fundamentalmente uma realidade material, uma vez que esta realidade também precisa, para existir, de uma matéria e de uma série de determinações. A matéria no sentido aristotélico não j é, pois, um ser que se baste a si mesmo; é simplesmente aquilo com o qual e do qual é composta qualquer substância concreta. Todas as concepções antigas acerca da matéria foram objeto de discussão por parte dos autores cristãos dos períodos patrístico e escolástico.. A tendência para identificar a matéria com o não ser e com o mal foi muito forte naqueles que tiveram de lutar contra as tendências gnósticas e maniqueistas, nas quais a matéria é amiúde apresentada como o mal, mas como um mal real, como um “ser mau”, constantemente em luta com o bem. Algumas das concepções da matéria desenvolvidas na patrística influíram depois na ideia de que a matéria pode ser algo assim como um objeto autônomo de uma ciência – além do mais, secundária.
Desde a introdução plena do aristotelismo na filosofia medieval, houve cada vez mais tendência para conceber a matéria como sujeito de transformação substancial. Foi o que aconteceu com S. Tomás. Este define a matéria à maneira aristotélica, como aquilo do qual se faz, ou pode fazer, algo. A noção de matéria contrapõe-se à de forma; exceptuando a forma, a matéria não tem ser próprio. Pode, a este respeito, falar-se de uma matéria-prima, que a matéria fundamenta e comum. Mas pode, e deve, falar-se de várias espécies de matéria. Na idade média discutiu- se muito a questão de relação da matéria com a forma, bem como o problema de se podem ou não conceber seres sem matéria.
Ao contrário de S. Tomás, Duns Escoto considerava que a matéria tem um ser próprio, uma vez que a sua ideia reside em Deus. A matéria não é pura e simples privação de forma. À algo real ou, melhor dizendo, tem uma certa entidade. A matéria é potência máxima e atualidade mínima, mas de modo algum um nada. Por outro lado, Duns Escoto considerava que o ser da matéria é distinto do da forma, pois de contrário haveria que concluir que a matéria é uma realidade que pode formar-se por si mesma e cair-se-ia no tipo de materialismo defendido por alguns intérpretes de Aristóteles. A matéria é potência, mas potência real: é “aquilo que” contém algo; portanto, é puro sujeito. Daí a possibilidade de Deus criar uma matéria sem forma.
As ideias de matéria até agora apresentadas não desapareceram totalmente na idade moderna, especialmente enquanto se tratou metafisicamente o conceito de matéria. Mas é caraterística da idade moderna o ter-se ocupado principalmente da noção de matéria enquanto constitutiva da realidade material ou natural. É o que se chamou “a concepção científica-natural da matéria”. Nos começos da época moderna, admitiram-se diversas espécies de matéria natural para explicar a composição e o movimento dos corpos. Em alguns casos, pensou-se que pode haver pelo menos duas espécies de matéria: a ativa (por exemplo, o frio e o quente) e a passiva (ou suporte da mudança do frio para o quente e vice-versa). Mas houve uma tendência cada vez maior para estudar a matéria como realidade una e única. Precedentes desta concepção encontram-se já nas doutrinas atomistas antigas e medievais. Para estas concepções a matéria é simplesmente o pleno, ao contrário do espaço, que é o vazio. Há na época moderna algumas teorias que diferem em vários aspectos importantes da ideia mencionada de matéria como espaço pleno. Assim, por exemplo, Descartes equiparou a matéria à extensão, de acordo com a sua caraterística redução, ou tentativa de redução, da realidade material a propriedades geométricas do espaço. Mas o mais caraterístico da citada concepção científica-natural da matéria na idade moderna a ideia de matéria como aquilo que enche o espaço. A esta ideia sobrepõem-se outras: a matéria é uma realidade impenetrável, já que, na medida em que o não for, há espaço para encher; é uma realidade constituída atomicamente, pois os átomos são os espaços cheios; é uma realidade única, já que toda a matéria é fundamentalmente a mesma em todos os corpos naturais. Estas propriedades da matéria são concebidas de acordo com uma lei: a lei de conservação da matéria. A matéria é, pois, concebida como realidade fundamental compacta; a possibilidade da sua divisão afeta apenas os interstícios espaciais, mas não a própria matéria. A matéria é, segundo esta concepção, constante , permanente e indestrutível. Os corpos podem mudar de massa, de volume e de forma, mas as partículas materiais últimas são inalteráveis. das ideias mencionadas sobre a natureza da matéria – como matéria natural ou matéria física – na época contemporânea, uma delas foi mais distinguida do que as outras: a constituição atômica. Com efeito, que a matéria seja espaço pleno não significa que a matéria tenha de ser constituída por partículas elementares indestrutíveis. Poderia muito bem admitir-se que a matéria é contínua. A passagem da física clássica à física contemporânea representa uma nova concepção da matéria. Num mundo macrofísico, continua a conceber-se a matéria de acordo com propriedades mecânicas. Mas alguns dos resultados da nova física obrigaram a abandonar a clássica concepção newtoniana, ou então a alojá-la dentro de uma teoria de alcance mais amplo. [Ferrater]
MATÉRIA (em grego: hyle) é, em quase todas as suas acepções, um oposto relativo a forma. Matéria significa (1) originariamente o estofo, de que o homem molda as obras de sua habilidade artística (p. ex., madeira, pedra), em oposição à forma ou figura que a matéria recebe por sua elaboração. A oposição de matéria e forma transferiu-se, em seguida, para os corpos naturais. Nestes, matéria (2) é aquilo “de que” um corpo consta; enquanto o conceito de “corpo” designa uma coisa individual de determinada grandeza e forma (p. ex., este bloco de granito), o conceito de “matéria” (p. ex., do granito) prescinde destas propriedades determinadas. Por conseguinte, a matéria é aquilo que primeiramente aparece como substância do corpo, em oposição à sua forma acidental, etc. A química, que se aplica a investigar a matéria, reduziu a multiplicidade imensa desta a noventa e duas matérias primitivas (elementos) cada uma das quais consta, por sua vez, de átomos, ou seja, de pequeníssimas partículas dotadas de massa e peso radioativos e outras leis insinuaram a ideia de que os átomos mais pesados eram construídos com outros de menor peso, e de que, talvez, em derradeira instância, todos os átomos se compunham de certo número de átomos mais leves, isto é, de átomos de hidrogênio. Durante muito tempo os átomos foram concebidos como “corpúsculos” diminutos e extensos sem solução de continuidade; mas o recente desenvolvimento da física obrigou a admitir também no átomo uma fina estrutura composta de diversos elementos primitivos (protões, neutrões, eletrões). A questão que a ciência natural se põe acerca da essência da matéria refere-se principalmente a estes elementos primitivos. A questão é hoje intensamente debatida, tendo-se convertido num problema extremamente difícil, porque a mesma matéria aparece, em suas manifestações, já como corpúsculo, já como onda. — A matéria (2), objeto de pesquisa da atividade investigadora da ciência natural, é denominada pela filosofia escolástica mar téria segunda {matéria secunda), em oposição à matéria prima (3), a qual, ao contrário da matéria segunda, não é uma substância corpórea determinada, nem pode, por conseguinte, ser atingida com os meios da física, mas é uma parte essencial só mentalmente apreensível e que, juntamente com a forma essencial, constitui a substância corpórea (hilemorfismo).
Na linguagem filosófica usual, o termo matéria (4) ultrapassa o domínio do mundo corpóreo e designa, em sentido muito lato, o determinável (formável), em contraposição à forma determinante. Assim, os conceitos do sujeito e do predicado denominam-se matéria do juízo, em oposição ao “é” da cópula considerada como forma do mesmo juízo; de igual modo, as proposições, com que se constrói o silogismo, são a matéria deste, em oposição à conexão fundamental de consequência, existente entre elas, tida como forma. Nestes casos e noutros semelhantes, a matéria (4) é, ao mesmo tempo, o “conteúdo” variável, em oposição à forma mais ou menos invariável. — Sobre o emprego particular dos conceitos de matéria e forma na doutrina kantiana do conhecimento, criticismo.
Material chama-se, um primeiro lugar, o que é composto de matéria (2) ou é propriedade de uma coisa de natureza material, ou seja, de um corpo; portanto, é sinônimo de corpóreo. Na terminologia escolástica, o vocábulo “material” designa também muitas vezes “ligado à matéria”, ou seja, o que, não sendo corpo nem propriedade de um corpo, depende, não obstante, intrinsecamente da matéria, ou seja, não pode existir nem operar sem ela, p. ex., a alma dos animais, em oposição à alma imaterial (espiritual) do homem. — De Vries. [Brugger]