(gr. pistis; lat. fides; in. Faith; fr. Foi; al. Glaube; it. Fede).
Crença religiosa, como confiança na palavra revelada. Enquanto a crença, em geral, é o compromisso com uma noção qualquer, a fé é o compromisso com uma noção que se considera revelada ou testemunhada pela divindade. Nesse sentido, essa palavra já era utilizada por Sexto Empírico, ao falar dos raciocínios que parecem provir “da fé e da memória”, tais como o seguinte: “Se um Deus te disse que esse homem ficará rico, ele ficará rico. Mas este Deus aqui (e indico, suponhamos, Zeus) te disse que esse homem ficará rico. Logo, ficará rico.” Nesses casos, nota Sexto, damos assentimento à conclusão não pela necessidade das premissas, mas porquanto temos fé na declaração da divindade (Pirr. hyp., II, 141). S. Paulo resumiu as características fundamentais da fé religiosa nas célebres palavras: “fé é a garantia das coisas esperadas e a prova das que não se veem” (Hebr, II, I). Tomás de Aquino esclareceu da seguinte forma as palavras de S. Paulo: “Quando se fala de prova, distingue-se a fé da opinião, da suspeita e da dúvida, coisas em que falta a firme adesão do intelecto ao seu objeto. Quando se fala de coisas que não se veem, distingue-se a fé da ciência e do intelecto, nos quais alguma coisa se faz aparente. E quando se diz garantia das coisas esperadas faz-se a distinção entre a virtude da fé e a fé no significado comum [isto é, crença em geral], que visa à bem-aventurança esperada” (S. Th, II, 2, q. 4, a. 1). Os escolásticos ativeram-se, com poucas variantes, a essa descrição da fé. Com o misticismo alemão do séc. XIV, começou a tomar corpo a doutrina do caráter privilegiado da fé como via de acesso original, direta e imediata às realidades supremas, especialmente a Deus. Mestre Eckhart vê na fé o meio pelo qual o homem atinge a realidade última de si e de Deus: a fé, diz ele, é o nascimento de Deus no homem. Esse tema retornou na chamada “filosofia da fé” do séc. XVIII: Hamann e Jacobi atribuem à fé o mesmo status privilegiado, a mesma capacidade de colocar o homem diretamente em contato com as realidades últimas e especialmente com Deus, transpondo os limites e as incertezas da razão. Embora Jacobi inclua na fé religiosa também a parte que mais propriamente diz respeito à crença (“Nós cremos que temos corpo; cremos na existência das coisas sensíveis”, Werke, IV, 211; III, 411), para ele é no caráter religioso que se funda a certeza da fé: toda fé é necessariamente fé da revelação e esta é necessariamente fé em Deus, religião (Ibid., II, 274, 284, ss.). Os românticos reafirmaram amiúde esse status privilegiado da fé. Foi o que fez Fichte, que exaltou a fé nas obras populares do segundo período, como p. ex. em Missão do homem (1800), em que afirma que “a fé, dando realidade às coisas, impede-as de ser vãs ilusões: é a sanção da ciência”, repetindo as palavras de Jacobi: “Todos nascemos na fé” (Werke, II, pp. 254-55). Nos textos de Schelling muitas vezes o tom é análogo (Werke, I, 10, 183), enquanto Novalis diz que a ciência é somente uma das metades e que a fé é a outra metade (Fragmente, 391).
No último período da escolástica começou a acentuar-se outro aspecto da fé: seu caráter prático, que não consiste na sua dependência da vontade, mas na sua capacidade de dirigir a ação. Duns Scot foi o primeiro a insistir nesse caráter: “A fé não é um hábito especulativo, assim como crer não é um ato especulativo e a visão que segue a crença não é uma visão especulativa, mas prática” (Op. Ox., prol., q. 3). Por “prático” Duns Scot entende o que serve para dirigir a conduta; portanto para ele a teologia é prática, pois as verdades que ela ensina não são teóricas, ou seja, necessárias e demonstráveis, mas servem unicamente para dirigir o homem para a bem-aventurança (Ibid., prol., q. 4, n. 42). A mesma antítese entre o habitusáà fé e o habitusáà ciência era admitida por Ockham, que reputava os dois hábitos incompatíveis entre si, observando que não se pode dizer que quem crê em alguma coisa cuja demonstração esqueceu realmente tem “fé”, porque o objeto de sua crença continua sendo a demonstração (In Sent., III, q. 8 R). No mundo moderno, o caráter prático da fé foi defendido por Spinoza: “A fé consiste em ter, em relação a Deus, os sentimentos que são eliminados quando se elimina a obediência a Deus, e que estão presentes necessariamente quando está presente tal obediência” (Tract. theol.-pol, 14). Portanto, a fé é o conjunto de crenças que condicionam a obediência à divindade, segundo Spinoza. Esse conceito seria retomado por Kant, para quem a crença teoricamente insuficiente pode, sobretudo em seu aspecto prático, ser chamada de fé Kant generaliza o conceito prático da fé, reconhecendo nela a atitude compromissada que pode dirigir tanto a habilidade, ou seja, a atividade que tem em vista fins arbitrários e acidentais, quanto a moralidade, que visa a fins absolutamente necessários. A fé que dirige a habilidade é a fé pragmática, cujo interesse raramente enfrenta desafios. Ao contrário, a fé doutrinal é mais compromissada, mas tampouco chega à certeza da fé moral. Esta última espécie de fé dá uma certeza que não pode ser comunicada; não é, pois, de natureza lógica, mas constitui uma “certeza moral” que se baseia em fundamentos subjetivos. “Assim, nunca devo dizer: é moralmente certo que Deus existe, etc, mas: estou moralmente certo, etc. Ou seja, a fé em Deus e em outro mundo está tão profundamente entrelaçada com meu sentimento moral que, assim como não corro o risco de perder este, tampouco temo que aquela me seja retirada” (Crít. R. Pura, Cânone da Razão Pura, seç. 3). Segundo Kant, a fé religiosa pode ser “fé religiosa pura”, que é a própria fé moral, ou “fé histórica”, que é fé nas leis estatutárias, que são as que indicam o modo como Deus quer ser honrado e obedecido. (Religion, III, I, § 6).
Aquilo que os escolásticos chamavam de caráter prático da fé, para Kant (e para os modernos) tornou-se o caráter compromissivo da fé, ou seja, o caráter graças ao qual a fé é antes de mais nada um ato existencial, uma orientação dada à vida do indivíduo, capaz de transformá-la e não isenta de riscos. Estes traços aparecem claros na última grande teoria da fé que a filosofia elaborou: a de Kierkegaard. Para ele, o cristianismo inverteu a relação entre fé e ciência. Na Antiguidade clássica, a fé é algo inferior à ciência porque se refere ao verossímil; no cristianismo, a fé é superior à ciência porque indica a certeza mais elevada, certeza que se refere ao paradoxo, portanto ao inverossímil: ela é “a consciência da eternidade, a certeza mais apaixonada que impele o homem a sacrificar tudo, mesmo a vida” (Diário, X4, A 635). O caráter compromissivo da fé consiste em seus laços com a existência: ter fé significa existir de certo modo: “Para ter fé, é preciso que haja uma situação que deve ser produzida com um passo existencial do indivíduo” (Ibid., X4, A 114). “Esse passo marca a ruptura com o mundo e com seu ideal de inteligibilidade. O que é crer? É querer (o que se deve e por que se deve), em obediência reverente e absoluta, de fender-se do vão pensamento de querer compreender e da vã imaginação de poder compreender” (Ibid., X’, A 368). Sob este ponto de vista, a fé não é feita de certezas, mas de decisão e risco. A fé, diz Kierkegaard em Temor e tremor, é a certeza angustiante, a angústia que se torna segura de si e de uma relação oculta com Deus. O homem pode rogar a Deus que lhe conceda a fé, mas a possibilidade de rogar não é em si mesma um dom divino? Assim, há na fé uma inegável contradição, que a torna paradoxal. O homem é colocado num dilema: crer ou não crer. Por um lado, a ele cabe escolher, e por outro qualquer iniciativa é impossível, porque Deus é tudo, e dele deriva inclusive a fé. Esse conceito foi substancialmente retomado por Karl Barth, que interpretou a fé como inserção da Eternidade no tempo, da Transcendência na existência (Comentário à Epístola aos romanos, 1919). Rudolf Bultmann também atribui a fé à iniciativa divina, apesar de afirmar a exigência de libertar a fé, sobretudo cristã, dos mitos cosmológicos com que ela tradicionalmente aparece unida, procedendo à sua desmitificação. Indo mais longe, Dietrich Bonhoeffer contrapôs a fé à religião , considerada como expressão mítica e contingente da fé, inaceitável nesta época dominada pelo racionalismo, pela ciência e pela tecnologia. Desse ponto de vista, acentua-se o caráter prático da fé, que se transforma em moral natural e humana, fundada na unidade entre mundo e Deus, entre humanidade e Cristo (Ética, 1949; Resistência e rendição, 1951). É nesse conceito de fé, entendida como ação renovadora do mundo humano, que se inspira o panteísmo humanista dos chamados “novos teólogos” (v. Deus e Deus, Morte de). Karl Jaspers insistiu na identidade entre existência e fé sob o aspecto filosófico, mas, na esteira de Kierkegaard, continuou reconhecendo na fé uma relação direta com a Transcendência (Der philosophische Glaube, 1948). [Abbagnano]
A crença numa religião, num ideal, numa pessoa. — O problema filosófico é o proveniente das relações entre o saber e a fé: a reflexão filosófica poderá resolver todos os problemas que o homem se coloca (como pensam Descartes, Spinoza, Fichte, Hegel), ou ela será, ao contrário, necessariamente limitada e inapta a resolver os problemas fundamentais da imortalidade da alma, da origem do mundo e da existência de Deus (como pensam Kant e Augusto Comte)? As doutrinas que concebem o saber como limitado e dão lugar à fé são provenientes do fideísmo ou do agnosticismo. Foi Feuerbach quem, antes de Marx, fêz a crítica da fé (na Essência do cristianismo, 1841), mostrando que a fé não pode se relacionar senão com o que não existe, pois, “o que existe” é o objeto de um “saber real”; contudo, há uma coisa que existe, mas cujo caráter infinito escapa a todo o saber — é o homem: a fé no homem pode se definir como uma esperança nos progressos da civilização, na elevação do nível de vida e na vocação pacífica dos homens. [Larousse]
As palavras “fé” e “crer”, derivados dos vocábulos latinos fides e credere, têm sido empregados desde a antiguidade para traduzir os conceitos bíblicos expressos por ditos vocábulos, os quais, por seu turno, são a versão latina dos termos gregos pistis e pisteuein. Assim, a fé (1), particularmente em S. Paulo, designa frequentemente o novo caminho de salvação aberto pela graça de Cristo, em oposição à “lei” do Antigo Testamento. Em especial, entende-se por fé (2) o ato que expressa a primeira resposta do homem ao apelo divino da graça, ou seja, o livre “sim” à auto-manifestação (revelação) de Deus: fé na revelação. Este ato para ser conforme com a razão, supõe como fundamento lógico, uma certa evidência, na medida em que devem ser conhecidos o fato da revelação e a autoridade (ou seja, a verdade e a veracidade) de Deus revelante; mas não deve ser equiparado à conclusão que num raciocínio resulta do conhecimento da fundamentação; é, antes, o assentimento firme (isto é, que exclui toda dúvida) do entendimento à verdade revelada, em atenção à autoridade de Deus. Éste assentimento, como certeza livre, depende da vontade e, por conseguinte, do valor que, como motivo, a determina. Mas o motivo do assentimento não é, na fé (como p., ex., ocorre na ciência teológica) o valor cognitivo da proposição de fé, valor puramente teorético, garantido pela fundamentação lógica e, enquanto tal, finito, mas únicamente a autoridade de Deus, na qual o homem confia, contra todas as aparências, e à qual se submete com incondicional entrega de si mesmo. A expressão “crer em Cristo” acentua, para além da submissão da própria inteligência, a entrega confiante e a adesão do homem todo que de Cristo espera sua salvação total. Lidero entendeu de maneira unilateral esta entrega, quando para a justificação exigia só a fé (3), ou seja, a confiança de que os pecados me são perdoados, em atenção aos méritos de Cristo (fé fiducial). — O termo “fé” transfere-se do ato e da virtude por ela designados para o objeto ou conteúdo da mesma virtude; assim sucede, quando dizemos: conhecer sua fé. Quando a Igreja, por meio de decisão definitiva, declara (“define”) como revelada por Deus uma verdade de fé, essa doutrina recebe o nome de dogma. Sobre a relação entre fé e saber teologia.
Em sentido lato, fé (4) significa fé ou crença em Deus, toda convicção religiosa, embora esta não se apoie na revelação divina; também neste sentido a fé continua sendo uma decisão livre e, portanto, moralmente importante, do homem todo. Aqui entra também a chamada fé filosófica (Jaspers filosofia da existência). Quanto mais, por obra do agnosticismo, foi subtraído à fé o fundamento racional, tanto mais a crença racional foi substituída por uma fé (5) irracional. Assim, Kant pretendia “suprimir o saber para encontrar lugar para a fé”. Fé (fé moral) é, segundo êle, a aceitação dos postulados da razão prática, em especial da existência de Deus, não por motivos racionais objetivamente suficientes, mas porque são subjetivamente necessários como pressuposição para a observação razoável da lei moral. Em lugar desta base voluntarista, aparece na filosofia irracionalista da religião, principalmente desde Schopenhauer, o sentimento (fideísmo). Fé designa então uma convicção que repousa no sentimento religioso, ou é mesmo este sentimento (fé sentimental).
Incredulidade, em sentido teológico, é a falta de fé na revelação, e também a carência de toda fé em Deus (4 e 5) sendo, mais ou menos, o equivalente de ateísmo. A incredulidade implica culpa, quando alguém recusa a fé, embora conheça com certeza suficiente o fato da revelação ou as razões que militam em favor da existência de Deus, ou quando alguém se aparta premeditadamente de antemão do reto conhecimento. A superstição é uma falsa fé, principalmente a fé na eficácia infalível de certas fórmulas ou práticas que, naturalmente, não são adequadas ao efeito desejado e que — de modo mais ou menos consciente se destinam a obrigar forças extranaturais e misteriosas ao serviço do homem.
No domínio não religioso, fé (6) designa, antes de mais nada, a crença no sentido de certeza prática (belief) ou a aceitação do testemunho de outrem, sob sua palavra. Esta fé inclui, do mesmo modo que a fé (2), uma confiança na veracidade alheia. Por isso mesmo, se distingue de uma aquisição de conhecimento que só até certo ponto tem em conta o testemunho alheio, p. ex., porque circunstâncias especiais não permitem conhecer nenhum motivo racional para mentir; neste caso, podemos talvez falar de um “saber testemunhal”. — Devido a ulterior evolução semântica, “crer” (não a “fé”), na linguagem cotidiana, passou a significar, muito frequentemente, “ter por certo”, “opinar”, e, por último, também “supor”.
Do significado religioso de “crer em Deus, em Cristo”, derivou recentemente uma acepção mundana, segundo a qual, fé (7) designa uma atitude crente, uma convicção e confiança inabalável pela dúvida, sólida e intensamente penetrada de sentimento, com que alguém adere com fervor quase religioso à pessoa ou coisa que crê. — De Vries. [Brugger]
A vigência da Fé, em que mora e vive o cristão, é um espaço de verdade originária, isto é, irredutível, indeclinável e incompreensível para a atitude interrogativa do filósofo. O modo próprio de se estar na Fé não é apenas uma forma e um modo de ser da existência, ao lado de outros modos e de muitas outras formas. O testemunho, que de si mesma dá a Fé, pertence à própria Fé. Neste testemunho, a maneira de se estar na crença não provém de uma simples escolha nem resulta do esforço de uma conquista. É um dom da própria Fé. A Fé do cristão é graça e não preferência. A Fé na “loucura da cruz” inclui em si tanto um conteúdo, como um processo todo próprio. O consentimento já é em si mesmo Fé e dádiva de misericórdia. O cristão é o homem em quem Cristo vive e a quem é dado ser testemunho vivo do próprio Cristo. Fé não é ideologia. É transformação do modo de pensar, de sentir, de agir, uma verdadeira metanoia. Por isso, para o cristão, todo não cristão nunca é o inimigo, o adversário ou mesmo o estranho. É o irmão, um cristão virtual que o Sangue Redentor de Cristo já salvou na cruz.
Um cristão nunca sabe se crê realmente. Pois a Fé não é uma questão de saber. Não basta voltar-se sobre si mesmo e conferir as disposições da própria consciência com as prescrições de uma doutrina e os padrões de uma moral. O cristão crê simplesmente, aceitando com simplicidade a graça da Fé. Mas este não saber não se deve tomá-lo por cegueira. Cegueira é ainda uma forma, embora privativa, de saber. Por isso este não saber não significa que a Fé vive entre dúvidas e hesitações. Significa que a Fé não pertence nem passa pelo reino do conhecimento e, por isso mesmo, se esquiva a todo questionamento e a qualquer interrogação. A Fé só pode ser mesmo objeto e processo de Fé. Contra a interpretação de Hegel, o cristão não sabe em que crê, sobretudo quando crê da maneira requerida pela Fé. Em S. Agostinho, o seio da famosa frase: seio cui credidi (2Tm 1,12) (sei em que acreditei!), não tem o sentido de um saber sem crer, diz pelo contrário que a convicção da Fé é dom da graça do próprio crer.
E, não obstante, estar na Fé não exclui e, sim, inclui estar na verdade, e numa verdade originária. O mundo brilha numa outra luz. Tudo se transforma. É que o fiel mora num país em que a paisagem é da graça e toda a economia é da salvação. Por toda parte o cristão descobre a irrupção e o advento de Deus na história dos homens. Mas o Deus da Fé não é o Absoluto da Filosofia, uma mediação sem mediador. Embora condicionada pela verdade do ser, que instala o lugar de origem da existência e proporciona o princípio da historicidade, a. Fé dá ao cristão um outro alento. O fundamento ontológico da historicidade não basta para constituí-la nem fundá-la como Fé salvífica da história dos homens. É-lhe, apenas, condição necessária de possibilidade e nunca princípio de vida e mobilização. Muito ao contrário. Modo de existir diferenciado pela participação no acontecimento salvífico da Redenção, a Fé permanece em sua essência sempre “eventual” e indiferente à verdade originária do ser que inaugura a historicidade, realidade ontológica de toda realização humana, mas nunca evento histórico de salvação. Saber o que se desvela na crença da Fé só com os recursos do questionamento é igualmente impossível tanto para o crente como para o descrente. Pois o que se revela imediatamente na Fé cristã é a crença no Deus crucificado, “escândalo para os judeus, loucura para os gentios”. Não é a onipotência da Causa Primeira, mas a misericórdia do Pai Celeste que entregou o próprio Filho para a salvação do mundo. Quaisquer que sejam os arcanos e o vigor do horizonte aberto pela Fé, uma experiência o cristão sempre faz: a obscuridade da Fé nunca é cega. É sempre perspicaz. Pois vê todas as coisas, o mundo inteiro, na luz de uma verdade invisível, mas revelada, que a própria Fé acende. No mundo cristão não se dá uma luz do conhecimento ao lado de uma luz da crença, uma luz do sol junto a uma luz do homem, uma luz natural com uma luz sobrenatural. É o sentido contemplativo da frase de C. Péguy: le surnaturel est charnel “o sobrenatural é carnal”. Para o cristão, tudo irradia a luz da Fé. Como disse Ângelo Silésio numa experiência de contemplação: “para ver Deus, basta meu coração virar-se para a luz, como faz a rosa”!
Enquanto cristão, o cristão não sabe nem precisa saber que mora na verdade e pertence à história do ser. Mergulhado na luz da Fé, ignora os pressupostos ontológicos e as condições de possibilidade de sua Fé. Por isso é que para o fiel a Filosofia é uma loucura. Não o seduz a avalanche do questionamento nem o toca a vertigem interrogativa do Pensamento nas peripécias da Filosofia. Mas, por outro lado, a proteção dada pela Fé não é isenta de perigos. Uma inquietude essencial é constitutiva da crença. Sob pena de banalizar-se numa atitude de tibieza, o crente permanece sempre exposto à possibilidade da descrença. É o “espinho na carne” que o atormenta continuamente. Todavia não se trata de dúvida e hesitação, insegurança ou ambivalência. A inquietação do crente é tão irredutível à dúvida, como a verdade da Fé o é à verdade do conhecimento. Os existenciais da Fé não são os mesmos do Pensamento. Enquanto crente, o crente não se interroga nem se examina acerca de sua crença. Para fazê-lo teria de sair do horizonte da Fé. O aguilhão da crença não pode ser a interrogação do pensamento. Estranha às flutuações da dúvida, a crença não necessita ter certeza. Ela é a sua própria verdade. Por isso também não pode ser ameaçada pela dúvida. O aguilhão da Fé é a infidelidade. É esta que gera a dúvida e não vice-versa. O tormento da infidelidade acompanha sempre a vida do cristão. Ser cristão inclui sempre a vigilância, o dever de vigiar com o Cristo da Fé, em agonia no Getsêmani, até à consumação dos séculos: “vigiai e orai para não cairdes em tentação. O espírito está pronto mas a carne é fraca” (Mt 26,41). Não é para se entender esta presença da infidelidade na Fé, da descrença na crença, como uma dialética de constituição. A vigência da Fé está fora de qualquer dialética. Não é a infidelidade que, entrando em tensão com a fidelidade, constitui a Fé. Não! É a própria Fé que se expõe sempre, e por si mesma, à possibilidade da infidelidade, a fim de poder manter viva e atuante a fidelidade do crente. É o testemunho de São Paulo na Segunda Carta aos Coríntios 12,7-10:
E para que a grandeza das revelações não me levasse ao orgulho, foi-me dado um espinho na carne, um anjo de Satanás, que me esbofeteia e me livra do perigo da vaidade. Três vezes roguei ao Senhor que o afastasse de mim. Mas três vezes ele me respondeu: “basta minha graça porque é na fraqueza que a força chega à perfeição”. Portanto, prefiro gloriar-me das minhas fraquezas, para que habite em mim a força de Cristo. Eis por que sinto alegria nas fraquezas, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições, no profundo desgosto sofrido por amor de Cristo. Pois quando me sinto fraco, então é que sou forte.
Assim o cristão não pode desprezar o filósofo, cuja ousadia o mantém em contínua procura por dentro dos vestígios da passagem histórica do ser. Pois o cristão não é aquele que já encontrou o que o filósofo sempre procura. O mundo da Fé e o mundo do Pensamento não são homogêneos. A “resposta” da Fé não responde à pergunta do Pensamento, por não se corresponderem pergunta e resposta. A Fé nunca pode ser uma solução para a angústia ontológica do Nada, como “a resposta” do Pensamento nunca pode ser uma solução para a inquietude da Fé. O que ambas podem vir a ser uma para a outra, é apenas a dissolução uma pela outra. Vãs, portanto, e de uma vaidade radical, são as tentativas de se afrontarem Fé e Pensamento, disputando as pretensões da serenidade e da inquietude: pois cada qual possui sua verdade e cada qual tem seu aguilhão. Nem a Fé, nem o Pensamento podem aliviar a angústia radical da existência, sem desfigurar a própria essência. Conservando-se o que são, só podem mesmo conferir à história dos homens mais gravidade, e de uma maneira exclusiva e peculiar a cada uma.
Em suas oposições irredutíveis, as duas modalidades de existir, a Fé e o Pensamento, não têm por fundo um mesmo domínio, o mundo da existência humana, divergindo apenas no modo de abordá-lo, a saber, pelo questionamento, uma, e pela crença, a outra. Trata-se de dois mundos diferentes e irreconciliáveis. Esta foi a reação da primeira comunidade cristã, desde os tempos apostólicos até aos chamados Padres Apologetas, ao contato e encontro com a sabedoria grega. Era a época do “primeiro fervor”, antes da constituição da Teologia. [Carneiro Leão]