(in. Facticity; fr. Facticité, al. Faktizität; it. Effettività).
Segundo Heidegger, o que caracteriza a existência como lançada no mundo, ou seja, à mercê dos fatos, ou no nível dos fatos e entregue ao determinismo dos fatos. O “fato”, que é simplesmente a presença das coisas utilizáveis, é objeto de “constatação intuitiva”. A facticidade da existência, ao contrário, só é acessível através da “compreensão emotiva” (Sein und Zeit, § 29). Nesse sentido, a facticidade é um modo de ser próprio do homem e diferente da factualidade , que é o modo de ser das coisas. De modo análogo, Sartre deu o nome de facticidade ao fato da liberdade, ou seja, ao fato de que a liberdade não pode não ser livre e não pode não existir: nesse caso, liberdade identifica-se com necessidade do fracasso (L’être et le néant, p. 567). [Abbagnano]
O caráter daquilo que existe como fato contingente, isto é, que poderia não ser. — O termo foi criado por Fichte para designar, de maneira geral, tudo o que é determinado sem razão. (A realidade do mundo é um “dado factício”, por exemplo, na medida em que não a deduzimos através de um raciocínio; a facticidade contrapõe-se à “gênese”, ou dedução racional; a liberdade humana é a fonte de toda facticidade) o termo foi retomado pela filosofia existencialista (Heidegger, Sartre) a facticidade da existência exprime o fato de que nossa existência é injustificável, incompreensível em si própria. A facticidade da existência reduz-se a dois caracteres fundamentais: 1.° Somos dados a nós mesmos, isto é, nascemos antes de tomarmos consciência de nós próprios, descobrindo nossa consciência como um fato que se pode apenas constar e não explicar (o que Heidegger denomina Geworfenheit); 2.° Somos livres de orientar nossa existência nesse ou naquele sentido; não há lei nem destino que nos fosse determinados de antemão, que regulassem o curso de nossa vida de maneira necessária. Tudo o que fazemos é “factício”. (V. absurdo.) [Larousse]
Observações de Gadamer
Não obstante, com essas delimitações explicadas ainda não está decidido se a fundamentação da hermenêutica de Dilthey na “vida”, conseguiu também subtrair-se, de verdade, às consequências implícitas da metafísica idealista. Para ele, a questão se coloca como segue: “Como se vincula a força do indivíduo com aquilo que está para além dele e que lhe é anterior [231], o espírito objetivo? Como se deve pensar a relação de força e significado, de poderios e ideias, de facticidade e de idealidade da vida? Com esta questão se decidirá, em última análise, também como é possível o conhecimento da história. Pois o homem na história está determinado fundamentalmente também pela relação de individualidade e espírito objetivo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Só que essa relação não é unívoca. Em primeiro lugar, é através da experiência do limite, da pressão, da resistência, que o indivíduo se dá conta de sua própria força. Porém, o que experimenta não são somente as duras paredes da facticidade. Como ser histórico, experimenta, além do mais, realidades históricas, e essas são sempre, ao mesmo tempo, algo que sustenta o indivíduo, algo onde ele dá expressão a si mesmo e se reencontra. Nesse sentido, já não são “duras paredes”, mas objetivações da vida (Droysen havia falado de “poderes morais”). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Também Heidegger está determinado, inicialmente, por aquela tendência comum a Dilthey e a Yorck, que um e outro formularam como “conceber a partir da vida”, tendência que, em Husserl, encontrou expressão como retorno a uma posição anterior à objetividade da ciência. Entretanto, ele não ficou mais submetido às implicações epistemológicas, segundo as quais o retorno à vida (Dilthey), tal como a redução transcendental (o caminho de Husserl da auto-reflexão absolutamente [259] radical), encontram seu fundamento metódico no fato de as vivências darem-se por si mesmas. Antes, tudo isso torna-se o objeto de sua crítica. Sob o termo-chave de uma “hermenêutica da facticidade” Heidegger opõe à fenomenologia eidética de Husserl, e à distinção entre fato e essência, sobre que ela repousa, uma exigência paradoxal. A facticidade da pre-sença, a existência, que não é passível de fundamentação nem de dedução, deveria representar a base ontológica do questionamento fenomenológico, e não o puro “cogito”, como estruturação essencial de uma generalidade típica: uma ideia tanto audaz como difícil de ser cumprida. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
O aspecto crítico dessa ideia não era, certamente, totalmente novo. Sob a forma de uma crítica ao idealismo, esse aspecto já havia sido pensado pelos neo-hegelianos, e, nesse sentido, não é por acaso que tanto os demais críticos do idealismo neokantiano como o próprio Heidegger acolham nesse momento um Kierkegaard procedente da crise espiritual do hegelianismo. Porém, de outra parte, essa crítica ao idealismo, tanto naquele tempo como agora, vê-se confrontada com a ampla pretensão do questionamento transcendental. Na medida em que a reflexão transcendental não queria deixar impensado nenhum dos possíveis motivos do pensamento no desenvolvimento do conteúdo do espírito — e desde Hegel, essa foi a pretensão da filosofia transcendental — esta já inclui sempre toda objeção possível na reflexão total do espírito. E isso vale igualmente para o questionamento transcendental, sob o qual Husserl colocou a tarefa universal da fenomenologia: a constituição de toda validez ôntica. É evidente que essa tarefa tem de incluir em si também a facticidade a que Heidegger deu validade. Husserl pode, assim, reconhecer o ser-no-mundo como um problema da intencionalidade de horizonte da consciência transcendental, e a historicidade absoluta da subjetividade transcendental teria de poder mostrar também o sentido da facticidade. Por isso Husserl pôde, em seguida, objetar contra Heidegger, mantendo-se consequente na sua ideia central do eu-originário, que o próprio sentido da facticidade é um eidos e pertence, portanto, essencialmente à esfera eidética das generalidades essenciais. Se examinarmos nesse rumo os esboços contidos nos últimos trabalhos de Husserl, sobretudo os trabalhos a respeito da “Crise”, no VII tomo, neles encontraremos realmente numerosas análises da “historicidade absoluta”, continuando a desenvolver de modo consequente a problemática das “Ideias”, as quais correspondem ao novo, revolucionário e polêmico ponto de partida de Heidegger. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Todavia, justamente nesse apelo de Husserl aos seus precursores torna-se patente sua diferença com respeito a Heidegger. A crítica de Husserl ao objetivismo da filosofia precedente representava uma continuação metódica das tendências modernas e se entendia como tal. A reivindicação de Heidegger, [261] pelo contrário, era, desde o princípio, a de uma teologia de signo inverso. Em sua própria iniciativa ele vê menos o cumprimento de uma tendência, preparada e já pronta há muito tempo, do que uma retomada do primeiro começo da filosofia ocidental, um reacender da velha e esquecida polêmica grega em torno do “ser”. Quando apareceu Ser e tempo já se admitia de modo natural, que essa retomada do mais antigo era, ao mesmo tempo, um progresso com respeito à oposição da filosofia contemporânea, e, sem dúvida, o fato de que Heidegger assuma as investigações de Dilthey e as ideias do conde Yorck na continuação da filosofia fenomenológica não representou um engate arbitrário. O problema da facticidade era, de fato, também o problema central do historicismo, pelo menos sob a forma da crítica hegeliana às pressuposições dialéticas da “razão na história”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
O que Heidegger, finalmente, chama de “conversão” não é uma nova guinada no movimento da reflexão transcendental, mas justamente a liberação e a realização dessa tarefa. Embora Ser e tempo ponha criticamente a descoberto a deficiente determinação ontológica do conceito husserliano da subjetividade transcendental, a sua própria exposição da questão do ser encontra-se formulada segundo os meios da filosofia transcendental. Na verdade, a renovação da questão do ser, que Heidegger tomou como tarefa, significa, no entanto, que, em meio ao “positivismo” da fenomenologia, ele reconheceu o problema fundamental da metafísica, ainda não resolvido, problema que, na sua culminação extrema, ocultou-se no conceito do espírito tal como foi pensado pelo idealismo especulativo. Por isso, a tendência de Heidegger é orientar a sua crítica ontológica contra o idealismo especulativo, passando pela crítica a Husserl. Em sua fundamentação da hermenêutica da “facticidade”, sobrepassa tanto o conceito do espírito, desenvolvido pelo idealismo clássico, como o campo temático da consciência transcendental, purificado pela redução fenomenológica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Nesse sentido, também nós nos reportamos ao sentido transcendental do questionamento heideggeriano. Através da interpretação transcendental da compreensão de Heidegger o problema da hermenêutica ganha uma feição universal, e até, o surgimento de uma dimensão nova. A pertença do intérprete ao seu objeto, que não conseguia encontrar uma legitimação correta na reflexão da escola histórica, obtém agora, por fim, um sentido concretamente demonstrável e é tarefa da hermenêutica demonstrar este sentido. Também para a realização da compreensão que se dá nas ciências do espírito, vale a ideia de que a estrutura da pre-sença é um projeto lançado, e de que a pre-sença é, segundo a realização de seu próprio ser, compreender. A estrutura geral da compreensão atinge a sua concreção na compreensão histórica, na medida em que na própria compreensão tornam-se operantes as vinculações concretas de costume e tradição e as correspondentes possibilidades de seu próprio futuro. A pre-sença, que se projeta para seu poder-ser, é já sempre “sido”. Este é o sentido do existencial do estar-lançado. O fato de que todo comportar-se livremente com respeito ao ser careça da possibilidade de retroceder para trás da facticidade deste ser, constitui a finesse da hermenêutica da facticidade e de sua oposição à investigação transcendental da constituição na fenomenologia de Husserl. A pre-sença já encontra [269] como uma premissa insuperável, o que torna possível e limita todo seu projetar. Essa estrutura existencial da pre-sença tem de encontrar sua cunhagem também na compreensão da tradição histórica, e por isso seguiremos em primeiro lugar a Heidegger. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.
Entretanto, havíamos partido do conhecimento de que também a compreensão que se exerce nas ciências do espírito é essencialmente histórica, isto é, que também nelas um texto só é compreendido, se for compreendido em cada caso de uma maneira diferente. Este era precisamente o caráter que revestia a missão da hermenêutica histórica, o refletir sobre a relação entre a identidade do assunto comum e a situação mutável, na qual se trata de entendê-lo. Tínhamos partido do fato de que a mobilidade histórica da compreensão, relegada a segundo plano pela hermenêutica romântica, representa o verdadeiro centro de um questionamento hermenêutico adequado à consciência histórica. Nossas considerações sobre o significado da tradição na consciência histórica engatam na análise heideggeriana da hermenêutica da facticidade, e procuram torná-la fecunda para uma hermenêutica espritual-científica. Mostramos que a compreensão é menos um método através do qual a consciência histórica se aproximaria do objeto eleito para alcançar seu conhecimento objetivo do que um processo que tem como pressuposição o estar dentro de um acontecer tradicional. A própria compreensão se mostrou como um acontecer, e filosoficamente a tarefa da hermenêutica consiste em indagar que classe de compreensão, e para que classe de ciência, é esta que é movida, por sua vez, pela própria mudança histórica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
A polêmica contra o pensador absoluto carece, ela própria, de posição. O ponto arquimédio capaz de mover a filosofia hegeliana nunca poderá ser encontrado na reflexão. O que perfaz a qualidade formal da filosofia da reflexão é o fato de que não pode haver nenhuma posição que não esteja já implicada no movimento reflexivo da consciência que vem a ser ela mesma. Os apelos à imediatez — seja os da natureza corporal, os do tu e suas pretensões, os da facticidade impenetrável do acaso histórico ou os da realidade das relações de produção — já sempre refutam-se sozinhos, na medida em que não são um comportamento imediato, mas um fazer reflexivo. A crítica da esquerda hegeliana contra uma simples reconciliação somente na ideia, a qual ficaria devendo a transformação real do mundo, ou toda a teoria da conversão da filosofia em política, acaba [350] equivalendo, sobre a base da filosofia, a um cancelamento de si mesma. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Por outro lado, é quase impossível subtrair-se ao fechamento interno do idealismo da consciência e ao empuxo do movimento reflexivo que tudo suga para dentro da imanência. Será que Heidegger não tinha razão quando abandonou a analítica transcendental da pre-sença (Dasein) e o ponto de partida da hermenêutica da facticidade? Nesse sentido, qual foi o caminho que busquei tomar? VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
O novo impulso filosófico de Heidegger não fez sentir seus efeitos positivos apenas na teologia, mas rompeu sobretudo com a rigidez relativista e tipológica reinantes na escola de Dilthey. Deve-se a G. Misch ter liberado novamente os impulsos filosóficos de Dilthey confrontando-o com Husserl e Heidegger. Não obstante a sua construção do princípio filosófico que rege a filosofia da vida de Dilthey estabeleça uma oposição com relação a Heidegger, o retorno de Dilthey à perspectiva da “vida”, ultrapassando a “consciência transcendental”, representou um importante apoio para a elaboração filosófica de Heidegger. A publicação de diversos tratados dispersos de Dilthey, realizada por G. Misch e outros, nos volumes V-VIII, [103] assim como as instrutivas introduções de Misch, trouxeram a público pela primeira vez, nos anos 20, a obra filosófica de Dilthey, que havia sido encoberta por seus trabalhos históricos. O problema hermenêutico alcançou sua radicalização filosófica quando as ideias de Dilthey (e Kierkegaard) passaram a fundamentar a filosofia existencial. Foi quanto Heidegger formulou o conceito de uma “hermenêutica da facticidade”, impondo — em contraposição à ontologia fenomenológica da essência, de Husserl — a tarefa paradoxal de interpretar a dimensão “imemorial” (Schelling) da “existência” e inclusive a própria existência como “compreensão” e “interpretação”, ou seja, como um projetar-se para possibilidades de si próprio. Nesse momento, alcançou-se um ponto no qual o caráter instrumentalista do método, presente no fenômeno hermenêutico, teve de reverter-se à dimensão ontológica. “Compreender” não significa mais um comportamento do pensamento humano dentre outros que se pode disciplinar metodologicamente, conformando assim a um procedimento científico, mas perfaz a mobilidade de fundo da existência humana. A caracterização e ênfase que Heidegger atribui à compreensão como a mobilidade de fundo da existência culmina no conceito de interpretação, desenvolvido em sua significação teórica sobretudo por Nietzsche. Esse desenvolvimento está fundamentado na dúvida frente aos enunciados da autoconsciência, dos quais se deve duvidar melhor do que o fez Descartes, como diz expressamente Nietzsche. Em Nietzsche, o resultado dessa dúvida é uma modificação do sentido de verdade em geral. Com isso, o processo de interpretação transforma-se numa forma de vontade de poder, adquirindo assim uma significação ontológica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Pois bem, essa filosofia neokantiana dos valores constituía uma base muito frágil. Muito mais influente seria o legado romântico do espírito alemão, o legado de Hegel e de Schleiermacher, administrado especialmente pelo trabalho de Dilthey em torno a uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito. O pensamento de Dilthey teve um horizonte mais amplo do que o da teoria do conhecimento do neokantismo, uma vez que assumiu toda a herança de Hegel: a teoria do espírito objetivo. Segundo essa teoria, o espírito não ganha corpo apenas na subjetividade de sua realização atual, mas também na objetivação de instituições, sistemas de ação e sistemas de vida como a economia, o direito e a sociedade, e assim, enquanto “cultura”, convertem-se em objeto de possível compreensão. A tentativa diltheyana de renovar a hermenêutica de Schleiermacher, demonstrando, por assim dizer, como fundamento das humaniora o ponto de identidade entre o que compreende e o compreensível, foi condenada ao fracasso porque a história apresenta um estranhamento e uma heterogeneidade demasiado profundos para que possam ser considerados tão confiadamente a partir da perspectiva de sua compreensibilidade. Um sintoma característico de ausência da “facticidade” do acontecer no pensamento de Dilthey é este ter considerado a autobiografia, portanto, o caso em que alguém expõe uma trajetória de vida, vivenciando-a retrospectivamente, como modelo de compreensão histórica. Na verdade, uma autobiografia é mais uma história das ilusões privadas do que a compreensão do acontecimento histórico real. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
Diante disso, a guinada que se deu no século XX e à qual contribuíram decisivamente, a meu ver, Husserl e Heidegger, significou o descobrimento dos limites dessa identidade idealista ou histórico-espiritual entre espírito e história. Nos trabalhos tardios de Husserl aparece a palavra mágica Lebenswelt (mundo da vida), um desses neologismos raros e surpreendentes (a palavra alemã não existia antes de Husserl) que entram na consciência geral sobre a linguagem e trazem à fala alguma verdade ignorada ou esquecida. Assim, a palavra Lebenswelt restabeleceu os laços com certos pressupostos latentes e anteriores a todo conhecimento científico. O programa de uma “hermenêutica da facticidade” de Heidegger, isto é, a confrontação com a incompreensibilidade da própria existência factual, significou sem dúvida uma ruptura com o conceito idealista de hermenêutica. A compreensão e a vontade de compreender são reconhecidas em sua tensão com relação à realidade factual. Tanto a teoria de Husserl sobre o mundo da vida quanto o conceito heideggeriano de hermenêutica da facticidade afirmam a temporalidade e a finitude do ser humano frente à tarefa infinita da compreensão e da verdade. Minha tese propõe que, a partir dessa ótica, o saber não se coloca somente como uma questão de domínio do outro e do estranho. Esse domínio constitui o pathos fundamental da investigação científica da realidade, presente em nossas ciências da natureza (embora quem sabe à base de uma fé na racionalidade da constituição do cosmos). O que afirmo é que o essencial das “ciências do espírito” não é a objetividade, mas a relação prévia com o objeto. E, para essa esfera do saber, eu complementaria o ideal de conhecimento objetivo, implantado pelo ethos da cientificidade, com o ideal de “participação”. Participação nas manifestações essenciais da experiência humana tal como se configuraram na arte e na história. Nas ciências do espírito, esse é o verdadeiro critério para conhecer o conteúdo ou a falta de conteúdo de suas teorias. Procurei demonstrar em meus trabalhos que o modelo do diálogo é decisivo para esclarecer a estrutura dessa forma de participação. Isso porque o diálogo se caracteriza também por não ser o sujeito individual, separado que percebe e afirma, o único a dominar o assunto, mas por alcançarmos participar da verdade e do outro pela partilha. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
[325] A “filosofia prática” de Aristóteles está baseada nessa verdade, personificada por Sócrates. Deve haver uma explicação sobre o postulado dessa racionalidade e responsabilidade que é própria do filósofo, e isso significa que exige o esforço do conceito. Ao lado da teoria e além da paixão do saber que domina tudo e que tem sua base antropológica no fato primordial da curiosidade, devemos compreender que existe e por que existe outro tipo de uso onicompreensivo da razão. Esse uso não consiste numa capacidade que pode ser objeto de aprendizagem ou num conformismo cego, mas numa auto-responsabilidade racional. Pois bem, o pensamento decisivo, válido tanto para as chamadas ciências do espírito como para a “filosofia prática”, é que em ambas a natureza finita do ser humano adquire uma posição decisiva ante a tarefa infinita do saber. Essa é a característica essencial do que chamamos de racionalidade ou do que indicamos ao dizer que alguém é uma pessoa racional, quando este supera a tentação dogmática apegada a todo suposto saber. Por isso, é nas condições de nossa existência finita que devemos buscar o fundamento do que é possível querer, desejar e realizar com nossa própria ação. A fórmula aristotélica para expressá-lo é: o princípio que rege os assuntos práticos é o “que” (dass = o fato de que), o hoti. Não se trata de nenhuma sabedoria secreta. A afirmação de que o princípio é a facticidade só requer a explicação de seu significado no âmbito de uma teoria da ciência. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.Como pode a facticidade adquirir o caráter de princípio, adquirir o caráter de “ponto de partida” primeiro e determinante? O que significa “fato”, nesse contexto, não é a facticidade dos fatos estranhos, dos quais pensamos ter dado conta à medida que aprendemos a explicá-los. Trata-se da factualidade das crenças, valorações, usos partilhados por todos nós; é o paradigma de tudo que constitui nosso sistema de vida. A palavra grega que designa o paradigma dessas factualidades é o conhecido termo ethos, o ser que se consegue com o exercício e o hábito. Aristóteles é o fundador da ética porque deu realce a esse caráter da factualidade como sendo decisivo. No caso de a possuirmos, a phronesis, essa racionalidade responsável, é a garantia de que esse ethos não é um mero adestramento ou adaptação e nada tem a ver com o conformismo de uma consciência duvidosa. Não é um dom natural. O partilhar uma crença e decisões comuns em intercâmbio com os semelhantes e em convivência na sociedade e no estado não é, pois, conformismo. Constitui a dignidade do [326] ser–próprio e da autocompreensão humanos. A pessoa que não é associai acolhe sempre o outro e aceita o intercâmbio com ele e a construção de um mundo comum de convenções. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 23.
Meu ponto de partida foi a crítica ao idealismo e ao metodologismo da era da teoria do conhecimento. Foi de especial importância para mim o aprofundamento do conceito de compreensão, por Heidegger, que o converteu num existencial, quer dizer, numa determinação básica categorial da pre-sença (Dasein) humana. Foi o estímulo que me levou a uma superação crítica do debate metodológico e a uma ampliação da problemática hermenêutica, contemplando não somente todo tipo de ciência, mas também a experiência de arte e a experiência da história. Ora, para sua análise crítica e polêmica da compreensão, Heidegger apoiou-se no antigo discurso sobre o círculo hermenêutico, reivindicou-o como um círculo positivo e em sua analítica da pre-sença elevou-o a conceito. Não devemos esquecer, porém, que não se trata aqui da circularidade como metáfora metafísica, mas de um conceito lógico que encontra seu verdadeiro lugar na teoria da demonstração científica como doutrina do círculo vicioso. O conceito de círculo hermenêutico significa que no âmbito da compreensão não se pretende deduzir uma coisa de outra, de modo que o erro lógico da circularidade na demonstração não é aqui nenhum defeito do procedimento, mas representa a descrição adequada da estrutura do compreender. Dilthey, seguindo a Schleiermacher, introduziu a expressão “círculo hermenêutico” em contraste com o ideal de raciocínio lógico. Se considerarmos o verdadeiro alcance do conceito de compreensão no uso da linguagem, veremos que a expressão “círculo hermenêutico” sugere na realidade a estrutura do ser-no-mundo, quer dizer, a superação da divisão entre sujeito e objeto na analítica transcendental da pre-sença levada a cabo por Heidegger. Quem sabe usar uma ferramenta não a converte em objeto, mas trabalha com ela. Assim também o compreender, que permite à pre-sença conhecer-se em seu ser e em seu mundo, não é uma conduta relacionada com determinados objetos de conhecimento, mas seu próprio ser-no-mundo. Desse modo a metodologia hermenêutica de cunho diltheyano se transforma numa “hermenêutica da facticidade” que guia a pergunta de Heidegger pelo ser, incluindo a indagação fundamental do historicismo e de Dilthey. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser “se mostra”. A “hermenêutica da facticidade” [335] significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O “ser para o texto”, que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o “ser para a morte”, e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta “imanência” metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por “compreender” algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A [336] experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos, demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do “conhecimento de si mesmo na alteridade” como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche, com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de “vontade de poder” presente até na submissão e no sacrifício: “também no escravo há vontade de poder”. Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o “logocentrismo” da ontologia grega. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Para caracterizar a estrutura do processo hermenêutico lancei mão expressamente da análise aristotélica da phronesis. Com isso, estava avançando num caminho traçado por Heidegger já em seus primeiros anos de Freiburg, ao posicionar-se contra o neokantianismo e a filosofia dos valores (e em última instância também contra o próprio Husserl) e em favor de uma hermenêutica da facticidade. De certo, a base ontológica de Aristóteles tornou-se suspeita para ele já em seus primeiros ensaios. Essa base servira de suporte para o edifício de toda a filosofia moderna, especialmente para o conceito de subjetividade e de consciência e para as aporias do historicismo. Foi o que depois, em Ser e tempo, chamou-se de “ontologia do ser simplesmente dado” (“Ontologie des Vorhandenen “). Mas na filosofia de Aristóteles havia um ponto que na época representava para Heidegger muito mais que um mero contraste. Representava antes um aliado para suas próprias intenções filosóficas, a saber, a crítica aristotélica ao “eidos universal” de Platão e positivamente a demonstração da estrutura analógica do bem e de seu conhecimento, tarefa que se apresenta na situação da ação. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Isto, e não um puro irracionalismo, é a contribuição feita pela filosofia da existência, a saber, reconhecer a decisão, a escolha ou como se queira chamar esse momento de todo juízo, como uma modalidade de razão. Jaspers formulou o caráter racional desse saber com a ideia de uma elucidação da existência enxertada nas [428] situações-limite, nas quais a ciência como saber apodíctico deixa o homem sozinho. Para descrever esse fenômeno seguiu-se utilizando o conceito de saber próprio da ciência, e nesse sentido Heidegger foi mais radical quando tomou o conceito de situação–limite como ponto de partida de uma guinada ontológica. Heidegger contrapôs-se ao conceito ontológico do ente simplesmente dado (Vorhanden), que forma a base da ciência. Partindo do conceito do “estar à mão” (zuhanden) e do ser-compreendido-em-função-de (Sich-auf-etwas-Verstehens), próprios do domínio prático-técnico do mundo, ele definiu a estrutura ontológica da “pre-sença” humana como “compreensão do ser”, quer dizer, recorrendo à verdadeira ação clarificadora da razão. Desse modo, o conceito de hermenêutica adotado por Dilthey, ou seja, a arte de compreender estruturas de sentido, se converteu no paradoxo de uma “hermenêutica da facticidade”. Essa hermenêutica continha uma crítica ontológica aos conceitos tradicionais de norma, especialmente ao conceito de valor (Rickert, Scheler) e ao conceito “platônico” de significado unívoco e ideal (Husserl). O ser em si, liberto da interpretação psicológica para poder ser atribuído à esfera do normativo na lógica e na ética, do ponto de vista puramente ontológico não passava de “ser simplesmente dado”, carente de todo fundamento. Esse ser em si só não se encontrava carente de fundamento na medida em que o jovem Scheler pressupunha uma fundamentação baseada na teologia da criação que poderia servir de base ao conceito de valor, de bem e para o conceito de uma ordem de valores e de bens. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
Foi assim que Heidegger transferiu para o centro da própria filosofia a hermenêutica que antes se incluía na problemática dos fundamentos das chamadas ciências do espírito. Do ponto de vista ontológico, o paradoxo de uma hermenêutica da facticidade implicava a crítica aos conceitos de consciência, de objeto, de fato e de essência, de juízo e de valor. Foi a radicalidade desse enfoque que deu um impulso revolucionário à obra Ser e tempo. Mas a forma de reflexão transcendental adotada por Heidegger então, limitando-se a aprofundar os fundamentos transcendentais da filosofia, não se ajustava a sua verdadeira intenção nem pôde cumprir a tarefa de tomar a finitude e historicidade da “pre-sença” (em lugar da infinitude do que é perene) como fio condutor para elucidar a pergunta pelo sentido do ser. Nessa época e à luz dessa problemática pôde-se entrever pela primeira vez o lugar central que ocupa a questão da linguagem no pensamento de Heidegger. O que ocorre no fenômeno da linguagem ultrapassa a reflexão da filosofia transcendental e supera radicalmente o conceito de uma subjetividade transcendental como base de toda demonstração última (cf. Heidegger). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
Mas na verdade não apenas o legado do humanismo estético mas também o legado da antiga scientia practica vem reforçar a problemática da hermenêutica. Essa scientia se destacava como um modo de saber próprio (alio eidos gnoseos) frente ao conceito de ciência da antiga episteme (segundo o que se compreende por ciência hoje, só a matemática pode satisfazer a esse conceito) não só a partir de seu projeto originário na ética e política aristotélicas. Ela possui sua própria legitimidade — esquecida pela consciência geral — também frente ao conceito moderno de ciência e sua versão técnica. É tarefa da hermenêutica refletir inclusive sobre as condições especiais do saber que aqui são decisivas. No conceito de ethos (formado sob a força conformadora dos nomoi, isto é, das instituições sociais e da educação que se dá nessas instituições), Aristóteles resumiu as condições que facilitam o autêntico saber para a vita practica. Isso teve também sua importância no presente, uma vez que os melhores aliados de uma hermenêutica da facticidade foram justamente esses aspectos críticos da filosofia aristotélica contra a teoria platônica das ideias. Mas, além disso, são testemunhos inequívocos de que as condições sociais de nosso saber podem interferir no ideal da ciência sem pressupostos. Assim, também o exame desse ideal da ausência de pressupostos pertence às tarefas de uma reflexão hermenêutica radical. Não se deve esquecer aqui o impulso liberador que expressa o mote de [434] uma ciência sem pressupostos (expressão que tem sua origem na situação de luta cultural, após 1870). Esse impulso anima e sustenta também o movimento do Iluminismo e sua prolongação na ciência moderna. Mas a ingenuidade irresponsável que denota a aplicação desse termo no campo específico das ciências históricas e sociais fica patente não somente no utopismo das consequências das ciências sociais e das aplicações concretas derivadas da teoria da ciência do “círculo de Viena”, como também e sobretudo nas graves aporias em que se enredou a teoria neopositivista da ciência com sua doutrina sobre as proposições protocolares. O historicismo ingênuo inspirado na escola de Viena encontrou assim uma resposta adequada na crítica de Karl Popper à teoria da ciência. De modo semelhante, os trabalhos de Horkheimer e Habermas sobre crítica da ideologia puseram a descoberto as implicações ideológicas subjacentes na teoria positivista do conhecimento e sobretudo em seu pathos científico-social. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
Quando comecei a elaborar uma hermenêutica filosófica, sua própria pré-história exigia que se tomasse as ciências “da compreensão” como ponto de partida. Mas acrescia-se a elas um complemento que até o momento não foi levado em conta. Refiro-me à experiência da arte. Isso porque ambas, a arte e as ciências históricas, são modos de experiência que implicam diretamente nossa própria compreensão da existência. A ajuda conceitual para a problemática da “compreensão”, formulada em sua amplitude correta, foi tomada da elaboração heideggeriana da estrutura existencial da compreensão, que ele chamou primeiramente de “hermenêutica da facticidade”, a auto-interpretação do fáctico, quer dizer, da existência humana real. Meu ponto de partida foi, então, a crítica ao idealismo e a suas tradições românticas. Vi claramente que as formas de consciência que havíamos herdado e adquirido, a consciência estética e a consciência histórica, eram figuras alienadas de nosso verdadeiro ser histórico e que as experiências originárias transmitidas pela arte e pela história não podiam ser compreendidas partindo-se daí. A distância tranquila que a consciência burguesa gozava de sua cultura ignorava o fato de que todos estamos implicados na situação e nela estamos em jogo. Por isso, a partir do conceito de jogo, busquei superar as ilusões da autoconsciência e os preconceitos do idealismo da consciência. O jogo nunca é um mero objeto, mas existe para aquele que participa dele, mesmo que seja ao modo de espectador. A inadequação dos conceitos de sujeito e objeto, já assinalada por Heidegger na exposição da pergunta pelo ser, formulada em Ser e tempo, poderia ser mostrada aqui de maneira concreta. O que mais tarde levou à “guinada” do pensamento em Heidegger, eu próprio procurei descrever como uma experiência–limite de nossa autocompreensão, como a consciência da história dos efeitos, que é mais ser do que consciência. O que assim formulei não era uma tarefa para a práxis [496] metodológica da arte e da ciência histórica nem tampouco se referia em primeira mão à consciência de método dessas ciências. Referia-se exclusivamente e em primeiro lugar à ideia filosófica da prestação de contas, da explicação. Até que ponto o método é uma garantia de verdade? A filosofia deve exigir da ciência e do método que reconheçam sua parcialidade no conjunto da existência humana e de sua racionalidade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.