Observações de Gadamer
Permaneceremos conscientes de que com isso se exige algo incomum à autocompreensão da ciência moderna. Procuramos, ao largo de nossas reflexões, tornar essa exigência mais plausível, ao ir mostrando-a como o resultado da convergência de toda uma série de problemas. De fato, a teoria da hermenêutica que chega até os nossos dias se desagregou em diferenciações que ela mesma não é capaz de sustentar. Isso se torna tanto mais patente aí, onde se procura formular uma teoria geral da interpretação. Se distinguirmos, por exemplo, entre interpretação cognitiva, normativa e re-produtiva, tal como o faz E. Betti em sua Allgemeine Theorie der Interpretation, montada sobre um admirável conhecimento e domínio do tema, as dificuldades aparecem no momento de inscrever os fenômenos no momento dessa divisão. Isso vale imediatamente para a interpretação científica. Se juntarmos a interpretação teológica e a jurídica e se dermos a ambas a função normativa, então teremos de lembrar que Schleiermacher relaciona inversamente, e de forma mais estreita, a interpretação teológica com a interpretação geral, que para ele é a histórico-filológica. De fato, a cisão entre as funções cognitiva e normativa atravessa, por inteiro, a hermenêutica teológica, e não chega a ser compensada distinguindo-se o conhecimento científico de uma ulterior aplicação edificante. É a mesma cisão que atravessa a interpretação jurídica, na medida em que o conhecimento do sentido de um texto jurídico e sua aplicação a um caso jurídico concreto não são atos separados, mas um processo unitário. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Sendo assim, é razoável que nos interessemos agora em particular pela divergência entre hermenêutica jurídica e hermenêutica histórica, estudando os casos em que uma e outra se ocupam do mesmo objeto, isto é, os casos em que textos jurídicos devem ser interpretados juridicamente e compreendidos historicamente. Trata-se de investigar o comportamento do historiador jurídico e do jurista, comportamento que assumem com respeito a um mesmo texto jurídico, dado e vigente. Para isso podemos tomar como base os excelentes trabalhos de E. Betti, acrescentando nossas considerações às suas. Nossa pergunta vai no sentido de saber se a diferença entre o [331] interesse dogmático e o interesse histórico é uma diferença unívoca. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Não me pareceria suficiente limitar a tarefa do historiador do direito à “reconstrução do sentido original do conteúdo da fórmula legal”, e ao contrário, dizer do jurista, que “ele deve, além disso, pôr em concordância aquele conteúdo, com a atualidade presente da vida”. Uma delimitação desse tipo implicaria que o labor do jurista é o mais amplo, e incluiria em si também o do historiador. Quem quiser adaptar adequadamente o sentido de uma lei tem de conhecer também o seu conteúdo de sentido originário. Ele tem de pensar também em termos histórico-jurídicos. Só que a compreensão histórica não seria, aqui, mais do que um meio para um fim. Na direção oposta, a tarefa jurídico-dogmática não interessa ao historiador como tal. Como historiador ele se movimenta numa contínua confrontação com a objetividade histórica para compreendê-la em seu valor posicionai na história, enquanto que o jurista, além disso, procura reconduzir essa compreensão para a sua adaptação ao presente jurídico. A descrição de Betti trilha mais ou menos esse caminho. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Neste ponto parece necessário deter-nos um pouco na diferenciação entre ler e reproduzir. Talvez não possa ir tão longe como Emilio Betti, que em sua teoria da interpretação separa completamente um do outro, o compreender e o reproduzir. Devo insistir que é a leitura e não a reprodução que representa o verdadeiro modo de experiência da própria obra de arte, e que a define como tal. Ali, trata-se de uma “leitura” no sentido “eminente” da palavra, assim como o texto de poesia é um texto em sentido “eminente” da palavra. Na verdade, a leitura é a forma efetiva de todo encontro com a arte. Não está presente apenas nos textos, mas também nas artes plásticas e na arquitetura. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.
A orientação “epistemológica” já havia mudado, especialmente sob a influência da “lógica indutiva” de J.St. Mill. Quando Dilthey defendeu a ideia de uma psicologia “compreensiva”, contra a psicologia experimental sustentada por Herbart e Fechner, já partilhava do ponto de partida geral da “experiência”, sustentado [100] pelo “princípio da consciência” e do conceito de vivência. Também lhe serviram de constante advertência tanto o pano de fundo histórico-filosófico e histórico-teológico que alicerçava a lúcida historiografia do historiador J.G. Droysen, como a crítica acirrada que fazia seu amigo, o luterano especulativo Yorck von Wartenburg, ao historicismo ingênuo de sua época. Ambos contribuíram para que a evolução tardia de Dilthey tomasse um novo rumo. O conceito de vivência, que representou para ele a base psicológica para sua hermenêutica, foi complementado pela distinção entre a expressão e significado. Essa complementação ocorreu em parte pela influência da crítica ao psicologismo desenvolvida por Husserl nos “prolegomena” às suas Investigações lógicas e de sua teoria platonizante do significado, e em parte pelo realinhamento com a teoria hegeliana do espírito objetivo, que Dilthey procede, sobretudo em virtude de seus estudos sobre a época da juventude de Hegel. Tudo isso produziu frutos no século XX. Os trabalhos de Dilthey foram prosseguidos por G. Misch, B. Groethuysen, E. Spranger, Th. Litt, J. Wach, H. Freyer, E. Rothacker, O. Bollnow, entre outros. O historiador jurídico E. Betti fez uma síntese da tradição idealista da hermenêutica desde Schleiermacher, chegando a Dilthey e seguindo mais adiante. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Mesmo a brilhante dialética com que E. Betti procurou justificar o legado da hermenêutica romântica conjugando o subjetivo e o objetivo mostrou-se insuficiente depois que Ser e tempo demonstrou o caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e sobretudo quando o Heidegger tardio fez ruir o âmbito da reflexão filosófico-transcendental com a ideia da “virada” (Kehre). O “acontecimento” da verdade que forma o espaço de jogo do desocultar e ocultar conferiu um novo caráter ontológico a todo desocultar, mesmo àquele das ciências da compreensão. Isso possibilitou a formulação de uma série de novas perguntas à hermenêutica tradicional. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
E o que dizer do sentido querigmático da Sagrada Escritura? Aqui o conceito da congenialidade chega ao absurdo completo, à medida que suscita a péssima imagem da teoria da inspiração. A exegese histórica da Bíblia também encontra aqui seus limites, sobretudo no que diz respeito ao conceito central de “autocompreen-são” do escritor da Sagrada Escritura. O significado salvífico da Escritura não será necessariamente diferente do que o resultado da mera soma das intuições teológicas dos escritores do Novo Testamento? Dessa forma, a hermenêutica pietista (A. Francke, Rambach) foi se destacando pelo fato de, em sua teoria da interpretação, acrescentar a aplicação à compreensão e à explicação, destacando com isso a relação da “Escritura” com a atualidade. Nisso reside a razão central de uma hermenêutica que leva realmente a sério a historicidade do homem. É claro que também a hermenêutica idealista leva isto em conta, especialmente a de E. Betti com seu “cânon da correspondência do sentido”. Parece, no entanto, que foi só com o reconhecimento decisivo do conceito da compreensão prévia e do princípio da história dos efeitos ou o desenvolvimento da consciência da mesma, que se conquistou uma base metodológica suficiente. O conceito de cânon da teologia neotestamentária encontra ali sua legitimação, como um caso especial. O grande e positivo trabalho de G. von Rad demonstrou, ademais, que o significado teológico do Antigo Testamento torna-se difícil de justificar ao se adotar a mens auctoris como cânon. Com esse trabalho pode-se superar a estreiteza dessa perspectiva. Os debates mais recentes sobre a hermenêutica contagiaram também a teologia católica (Stachel, Biser, Corth). VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
Precisamos nos perguntar, porém, se a teologia e a teoria do direito não contribuem essencialmente para uma hermenêutica geral. Para o desenvolvimento dessa questão não é suficiente o imanente problema metodológico da teologia, da ciência jurídica e das ciências histórico-filológicas. Importa demonstrar os limites da autoconcepção do conhecimento histórico e devolver uma legitimidade limitada à interpretação dogmática . A isso se opõe certamente o conceito de neutralidade da ciência. Por essas razões, a [108] investigação que realizei em Verdade e método I partia de um âmbito experimental que, em certo sentido, pode ser chamado de dogmático, à medida que seu postulado exige reconhecimento absoluto e não pode ficar em suspenso: esta é a experiência da arte. Via de regra, aqui, compreender é reconhecer e fazer valer: “Conceber aquilo que nos toca” (E. Staiger). A objetividade de uma ciência da arte ou de uma ciência da literatura, que resguarda sua seriedade como esforço científico, permanece todavia sujeita à experiência da arte ou da poesia. Ora, na autêntica experiência da arte, a applicatio não pode vir separada da intellectio e da explicatio. Isso não deixa de ter consequências para a ciência da arte. Esse problema foi discutido primeiramente por H. Sedlmayr quando distingue entre uma primeira e uma segunda ciência da arte. Os complexos métodos de investigação da ciência da arte e da ciência da literatura, que se têm desenvolvido, precisam confirmar sempre de novo sua fecundidade ajudando a intensificar a clareza e a adequação da experiência da obra de arte. Nesse sentido, precisam intrinsecamente de integração hermenêutica. Assim, a estrutura de aplicação, com seu direito de cidadania herdado da hermenêutica jurídica, precisa adquirir um valor paradigmático. É certo que quando a compreensão histórico-jurídica segue à imposição de se reaproximar da compreensão dogmático-jurídica, suas diferenças não podem ser anuladas. Isso foi bem frisado por Betti e Wieacker. O sentido de applicatio, porém, que representa um elemento constitutivo de todo compreender, não é o de uma “aplicação” posterior e externa de algo que originalmente já seria para si. A aplicação de meios para objetivos predeterminados ou a aplicação de regras em nosso comportamento não significa, via de regra, a submissão de uma situação dada (Gegebenheit) autônoma, em si, como por exemplo uma coisa conhecida “de maneira puramente teórica”, a um objetivo prático. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.
K.O. Apel, em todo caso, faz essa crítica porque não compreendeu direito o que tem em mente a hermenêutica filosófica quando fala de aplicação. A análise que faço da experiência hermenêutica tem como objeto a praxis exitosa das ciências hermenêuticas, na qual certamente não está atuando nenhuma “aplicação consciente” que pudesse favorecer uma corrupção ideológica do conhecimento. Essa análise deveria ser levada realmente a sério. Esse mal-entendido já fora objeto de preocupação de Betti. Aqui está em jogo sem dúvida uma obscuridade no conceito de consciência de aplicação. É absolutamente verdadeiro, como constata Apel, que frente à auto–evidência objetivista das ciências compreensivas e face à práxis vital da compreensão, a consciência de aplicação [261] apresenta-se como uma exigência hermenêutica. Assim, uma hermenêutica filosófica, no estilo que procurei desenvolver, torna-se “normativa”, no sentido de que busca substituir uma má filosofia por outra melhor. Mas não propaga uma nova práxis e não há indícios que afirmem que a práxis hermenêutica se guie concretamente por uma consciência e tendência de aplicação, e isso inclusive no sentido de uma legitimação consciente de uma tradição vigente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
Temos que reconhecer também que o que Jaeger chama de “hermenêutica recente” é muitas vezes um produto muito ambíguo. Sua tese e suas tendências são mal compreendidas ao ponto de tornar-se caricaturas. Mas o que entende o próprio Jaeger por hermenêutica recente combatida por ele? Poderia se dizer que é para ele uma arma milagrosa do século irracionalista. O que significa para ele “interpretar”? Se se referisse à psicologização da interpretação de Schleiermacher e posteriormente de Dilthey, eu poderia concordar com ele. Mas a partir da grande distância que ele observa como membro da Respublica litteraria universalis, como ele se considera, a síntese da tradição hermenêutico-idealista que fazem Dilthey e E. Betti coincide para ele com Heidegger e com minha própria contribuição (35). Uma metodologia das ciências do espírito e uma reflexão filosófica que descobre os limites de todo método são valem para ele a mesma coisa. Como compreender isso? Que todas são obras do diabo? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.
Isso não significa que se menospreze ou se limite o rigor metodológico da ciência moderna. As denominadas “ciências hermenêuticas” ou “ciências do espírito” estão sujeitas aos mesmos critérios [318] de racionalidade crítica que caracteriza o método de todas as ciências, embora seus interesses e procedimentos sejam substancialmente diversos dos que animam as ciências naturais. Mas podem apelar com razão sobretudo para o paradigma da filosofia prática, que em Aristóteles poderia ser chamada também de “política”. Aristóteles classificou essa ciência como “a ciência mais arquitetônica”, uma vez que reunia em si todas as ciências e artes do saber antigo. A própria retórica pertencia a ela. A pretensão universal da hermenêutica consiste assim em ordenar todas as ciências, em captar as chances de êxito cognitivo de todos os métodos científicos, sempre que possam ser aplicados a objetos, e em utilizá-los em todas as suas possibilidades. Mas se a “política”, enquanto filosofia prática, é algo mais que uma técnica suprema, o mesmo podemos dizer da hermenêutica. Tudo que as ciências podem conhecer, a hermenêutica deve levá-lo à relação de consenso, onde todos nós estamos. Uma vez que inclui a contribuição das ciências nessa relação de consenso que nos liga com a tradição legada a nós numa unidade vital, a própria a hermenêutica não é um simples método nem uma série de métodos, como ocorreu no século XIX desde Schleiermacher e Boeckh até Dilthey e Emilio Betti. Nesse período, a hermenêutica se converteu em teoria metodológica das ciências filológicas. A hermenêutica é antes filosofia. Não se limita a prestar conta dos procedimentos que a ciência aplica. Trata igualmente das questões prévias à aplicação de qualquer ciência — como a retórica, tematizada por Platão. Trata-se das questões que determinam todo o saber e o fazer humanos, essas questões “máximas” que são decisivas para o ser humano enquanto tal e para sua escolha do “bem”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.
A ligação e o apoio que Dilthey encontra na hermenêutica romântica, que nesse século XX se apoia no renascimento da filosofia especulativa de Hegel, suscitou uma ampla crítica ao objetivismo histórico (Conde Yorck, Heidegger, Rothacker, Betti etc). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Um ponto positivo dessa situação é o fato de o problema hermenêutico ter sido sistematicamente dimensionado e ordenado em toda sua amplitude pelo importante trabalho de um pesquisador italiano. O historiador de direito Emilio Betti, na sua grande obra Teoria genérale delia interpretazione — cujas ideias foram transpostas também para a língua alemã em um hermeneutisches Manifest (manifesto hermenêutico), sob o título Zur Grundlegung einer allgemeinen Auslegungslehre — , apresentou uma panorâmica do estado da questão, que seduz tanto pela amplitude de seu horizonte, pelo imponente conhecimento de detalhes, quanto por seu desenvolvimento sistemático. Encontra-se muito bem suprido e invulnerável contra os perigos de um objetivismo histórico ingênuo, sendo ao mesmo tempo historiador de direito, professor de direito e concidadão de Croce e Gentile e até muito familiarizado com a grande filosofia alemã, de tal modo que fala e escreve um alemão perfeito. Ele sabe colher e recolher os frutos da reflexão hermenêutica [393] que vêm amadurecendo num esforço incessante desde Wilhelm von Humboldt e Schleiermacher. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Numa recusa expressa à posição extremista de Benedetto Croce, Betti procura o meio–termo entre o elemento objetivo e o subjetivo da compreensão. Formula um cânon completo dos princípios hermenêuticos, e seu ponto culminante é a autonomia de sentido do texto. Em conformidade com essa autonomia, há que se apreender o sentido, ou seja, a opinião do autor, a partir do próprio texto. Mas com a mesma decisão, ele acentua o princípio da atualidade da compreensão, da adequação do mesmo ao objeto, ou seja, percebe que a vinculação do intérprete com sua própria posição representa um momento integrante da verdade hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Enquanto jurista, Betti está longe de supervalorizar a opinião subjetiva, por exemplo, as casualidades históricas que levaram à formulação de um conteúdo jurídico, equiparando assim a opinião subjetiva ao sentido jurídico. Mas, por outro lado, mantém-se tão fiel à “interpretação psicológica” formulada por Schleiermacher que sua própria posição hermenêutica está constantemente ameaçada de afundar e desaparecer. Por mais que se esforce para superar o reducionismo psicológico e conceber sua tarefa como a reconstrução do nexo espiritual de valores e conteúdos de sentido, só consegue fundamentar a proposição dessa autêntica tarefa hermenêutica através de uma espécie de analogia com a interpretação psicológica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Com isso, Betti encontra-se na esteira de Schleiermacher, Boeckh, Croce entre outros. Estranhamente ele pensa poder garantir a “objetividade” da compreensão com esse estrito psicologismo [394] de cunho romântico. Ele acredita que essa objetividade estaria ameaçada por todos aqueles que, apoiados em Heidegger, consideram errôneo esse retorno à subjetividade da intenção. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Na discussão que travou comigo, reproduzida várias vezes na Alemanha, Betti não consegue ver em mim outra coisa que equívocos e confusões. Algo assim comprova, via de regra, que o crítico julga o autor referindo-se a um questionamento que este não tinha em mente. Parece-me que também aqui é esse o caso. Que a sua preocupação pela cientificidade da interpretação, gerada pelo meu livro, é desnecessária, já lhe garanti em uma carta pessoal. Dessa carta, ele reproduziu com extrema fidelidade, em seu tratado, o seguinte: VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Mas o que diz Betti a respeito disso? Afirma que estou restringindo o problema hermenêutico à quaestio facti (“fenomenologicamente”, “descritivamente”), e que não coloco a quaestio iuris. Como se a tematização kantiana da quaestio iuris quisesse prescrever como deveria ser realmente a ciência pura da natureza, e não procurasse, antes, justificar a possibilidade transcendental da mesma, como ela era. No sentido dessa diferenciação kantiana, o pensamento que ultrapassa o conceito de método das ciências do espírito, como procuro apresentar em meu livro, coloca a questão pela “possibilidade” das ciências do espírito (o que não significa dizer como elas propriamente deveriam ser!). Nesse caso, o que confunde o louvável investigador é um estranho ressentimento contra a fenomenologia. Mostra-se no fato de ele só conseguir pensar o problema da hermenêutica como um problema de método, e isto profundamente emaranhado no subjetivismo que se trata de superar. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
É evidente que não consegui convencer a Betti sobre o fato de que uma teoria filosófica da hermenêutica não é uma doutrina do método — correta ou falsa (“perigosa”). Quando Bollnow chama a compreensão de uma “produção essencialmente criadora”, isso pode ser um equívoco. Apesar de que o próprio Betti não vacila em qualificar dessa forma a atividade complementar ao direito na interpretação da lei. O certo, porém, é que não basta fundamentar-se na estética do gênio, como faz o próprio Betti. Uma teoria da inversão não permite superar a redução psicológica, que no mais ele mesmo reconhece como correta em si (na linha de Droysen). Desse modo, não supera de todo a ambiguidade que manteve a Dilthey entre psicologia e hermenêutica. Quando para explicitar a possibilidade da compreensão das ciências do espírito se vê obrigado a pressupor que somente um espírito de mesmo nível é capaz de compreender um outro, fica claro que uma tal ambiguidade psicológico–hermenêutica é insatisfatória. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
A afirmação de que a hermenêutica jurídica pertence ao nexo de problemas de uma hermenêutica geral não é evidente por si. De fato, nela não está em questão uma reflexão de caráter metodológico, como é o caso da filologia e da hermenêutica bíblica. Ela trata propriamente de um princípio jurídico subsidiário. Sua tarefa não é compreender enunciados jurídicos vigentes, mas encontrar o direito, isto é, interpretar as leis de tal modo que a ordem do direito impregne toda a realidade. Visto que a interpretação tem aqui uma função normativa, um autor como Betti pode separá-la totalmente da interpretação filológica, e mesmo daquela compreensão histórica, cujo objeto é de natureza jurídica (constituições, leis etc). Não se pode discutir o fato de a interpretação da lei, no sentido jurídico, acabar sendo uma atividade criadora de direito. Os diversos princípios que devem ser aplicados no fazer — como, por exemplo, o princípio da analogia, o princípio da complementação de lacunas da lei ou finalmente o princípio produtivo, implicado ele próprio na sentença jurídica, isto é, [400] dependente do caso jurídico concreto — não representam apenas problemas metodológicos, mas penetram profundamente e atingem a própria matéria do direito. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
Antes disso, na época do romantismo alemão, a hermenêutica se orientara pelas questões centrais da filosofia por obra de Schleiermacher. Seu pensamento, baseado na filosofia do diálogo, como a concebia sobretudo Friedrich Schlegel, parte do significado metafísico da individualidade e de sua subordinação e tendência ao infinito. Em seguida, com Wilhelm Dilthey a hermenêutica adquiriu seu caráter propriamente filosófico. Em 1966, publicou-se pela primeira vez, entre os materiais diltheyanos sobre a vida de Schleiermacher reunidos em um segundo volume, o grande estudo do jovem Dilthey sobre hermenêutica. Desse estudo só conhecíamos alguns fragmentos, graças ao tratado acadêmico de 1900. Entre outras coisas ele mostra como as bases da problemática filosófica da hermenêutica radicam-se no idealismo alemão, mas não somente na descrição dialética de Schleiermacher sobre a compreensão como ação recíproca de subjetividade e objetividade, de [426] individualidade e identidade, mas sobretudo na crítica de Fichte ao conceito dogmático de substância e nas possibilidades que ele abriu para se pensar o conceito de força histórica. Baseia-se também em Hegel, na medida em que eleva o espírito “subjetivo” ao caráter de espírito “objetivo”. Dilthey soube ver justamente a relevância pioneira da Historik (Historiografia) de Droysen para a metodologia das ciências do espírito, na medida em que Droysen aproveitou o legado idealista para uma autocompreensão adequada do método histórico. A herança dessa hermenêutica idealista continua viva até os nossos dias. Uma excelente apresentação sistemática e um desenvolvimento atual devemos ao historiador de direito Emilio Betti, cujo “manifesto” hermenêutico em língua alemã recolhe o resumo dessa tradição (cf. Betti). Ele fez sua exposição sistemática em uma obra muito abrangente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
Nesse sentido, a dimensão da teoria da ciência foi radicalmente ultrapassada. Nessa teoria, desde Dilthey até Betti o pensamento idealista foi utilizado em função da hermenêutica. Schleiermacher já havia destacado a conexão interna existente entre falar, compreender e interpretar, dissolvendo a vinculação tradicional do tema hermenêutico a “manifestações vitais fixadas por escrito” (Dilthey). Com isso, restituiu o caráter hermenêutico ao diálogo vivo. Mas também no estreitamento epistemológico que hermenêutica voltou a sofrer no século XIX não se puderam esconder as dificuldades que se opunham a uma teoria geral da interpretação inspirada no idealismo. O fato de a hermenêutica jurídica, que reivindica uma função legislativa, dever conectar-se à área da metodologia hermenêutica das ciências do espírito tornava-se tão obscuro como o sentido reprodutivo da interpretação que desempenha papel tão importante no teatro e na música. Ambos indicam para além da problemática inerente à teoria da ciência. Isso vale também para a teologia. Pois, mesmo que a hermenêutica teológica não lance mão de nenhuma outra fonte de inspiração ou de revelação para o ato de compreensão da Sagrada Escritura, o acontecimento querigmático da interpretação da Bíblia, como se dá na pregação ou no cuidado pastoral individual, enquanto fenômeno hermenêutico, não pode ser simplesmente desqualificado nem reduzido à problemática científica da teologia. Desse modo, foi preciso interrogar qual a necessidade de se abordar a unidade do problema hermenêutico num âmbito que ultrapassa a teoria da ciência e apreender o fenômeno da compreensão e da interpretação em um sentido mais originário. Mas então deveríamos ultrapassar também a ampliação universal da hermenêutica feita por Schleiermacher e sua fundamentação na unidade do pensamento e da fala. Isso porque deveríamos englobar também a hermenêutica jurídica, que antes estava estreitamente ligada à hermenêutica teológica, porque ambas incluíam “interpretação” e aplicação, isto é, o emprego de algo normativo ao caso particular. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
O acirramento da tensão entre verdade e método guiava-se em meus trabalhos por um sentido polêmico. Como reconhece o próprio Descartes, isso acaba fazendo parte de um processo especial de endireitar uma coisa que estava torta, a qual deve ser dobrada na direção contrária. E a coisa estava realmente torta, não tanto a metodologia das ciências, mas sua autoconsciência reflexiva. Parece-me que a historiografia e a hermenêutica pós-hegelianas que tematizei demonstram isso suficientemente. Quando, segundo as pressuposições de E. Betti, se teme que a minha reflexão hermenêutica pudesse representar um desvio da objetividade científica, isso não passa de um mal-entendido ingênuo. Nessa questão tanto [454] Apel, quanto Habermas e os representantes da “racionalidade crítica” parecem acometidos da mesma cegueira. Todos eles desconhecem a intenção reflexiva de minhas análises e consequentemente o sentido da aplicação, que tentei apresentar como um momento estrutural de todo compreender. Eles estão tão obcecados e presos pelo metodologismo da teoria da ciência que só conseguem ver regras e sua aplicação. Não percebem que a reflexão sobre a práxis não é técnica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
Na teoria da literatura, no seguimento de Betti, há que se citar sobretudo o livro de Hirsch, Validity in Interpretation (1967), e uma série completa de outros ensaios que destacam de modo decisivo o aspecto metodológico da teoria da interpretação. Cf., por exemplo, S.W. Schmied-Kowarzik “Geschichtswissenschaft und Geschichtlichkeit” (Ciência da história e cientificidade), in: Wiener Zeitschrift für Philosophie, Psychologie, Pädagogik, 8 (1966), p. 133s; D. Benner “Zur Fragestellung einer Wissenschaftstheorie der Historie” (Para a colocação da pergunta por uma teoria científica da história), in: Wiener Jahrbuch für Philosophie, 2 (1969), p. 52s. Acabo de encontrar uma excelente análise do que significa método no procedimento da interpretação em Thomas Seebohm, Zur Kritik der hermeneutischen Vernunft (Sobre a crítica da razão hermenêutica, 1962); mas esse escrito não tem a pretensão de ser uma hermenêutica filosófica, substituindo-a por um conceito especulativo de uma totalidade dada. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.