(do gr. hermeneuein, interpretar), teoria da interpretação dos sinais. Reflexão filosófica sobre os símbolos religiosos, os mitos e sobre toda forma de expressão humana em geral (no sentido da emoção, de uma obra de arte etc). A hermenêutica dos fenômenos humanos, que requerem uma “interpretação” e uma compreensão, contrapõe-se à “análise” objetiva dos fenômenos da natureza; é uma noção fundamental da filosofia moderna, notadamente da fenomenologia existencial (Heidegger em O ser e o tempo, Jaspers, Sartre, P. Ricoeur): a existência humana é um sinal cujo sentido o filósofo deve procurar. (Larousse)
Primariamente, hermenêutica significa expressão de um pensamento, mas já em Platão se ampliou o seu significado à explicação ou interpretação do pensamento. Além de designar a arte ou ciência de interpretar as Sagradas Escrituras, o termo tem sido importante na filosofia contemporânea, especialmente por obra de Dilthey. Segundo este autor, a hermenêutica não é só uma mera técnica auxiliar para o estudo da história da literatura e em geral das ciências do espírito: é um método igualmente afastado da arbitrariedade interpretativa romântica e da redução naturalista, que permite fundamentar a validez universal da interpretação histórica. É uma interpretação baseada num prévio conhecimento dos dados (históricos, filosóficos, etc) da realidade que se trata de compreender, mas que simultaneamente dá sentido aos citados dados por intermédio de um processo inevitavelmente circular, muito típico da compreensão enquanto método peculiar das ciências do espírito. A hermenêutica permite compreender um autor melhor do que ele se compreendia a si mesmo, e uma época histórica melhor do que puderam compreendê-la os que nela viveram. A hermenêutica baseia-se, além disso, na consciência histórica, a única que pode chegar ao fundo da vida. Passa pois dos sinais às vivências originárias que lhe deram nascimento; é o método geral de interpretação do espírito em todas as suas formas e pontos constitui uma ciência de maior alcance que a psicologia e, para Dilthey, é apenas uma forma particular da hermenêutica. Reconhecendo a sua dívida para com Dilthey, Heidegger intentou uma nova fundamentação da hermenêutica. Em sua opinião, esta é um modo de pensar “originariamente” tudo o dito num dizer. Portanto a hermenêutica não é uma direcção dentro da fenomenologia nem tão pouco um modo de pensar sobreposto a ela. (Ferrater)
VIDE: hermenêutica dual; interpretação; exegese; exegese alegórica; pardes; sentidos da escritura; sete sentidos do Corão; teologia simbólica
Segundo Georges Gusdorf [GGOH], a idade de ouro da hermenêutica teria sido aquela do apogeu de Alexandria, Egito, desde de pouco antes da era cristã. A palavra grega hermeneia remitiria ao deus Hermes, mensageiro entre os deuses imortais e os seres humanos, santo padroeiro da comunicação, símbolo da circulação do sentido. Segundo Jean Pépin, “sua tradução latina por “interpretatio” foi prejudicial para a “hermeneia” grega. Pois o substantivo interpretatio, passando como tal para as línguas europeias modernas, tem um prefixo muito visível que lhe confere antes de toda especificação o sentido de base de “mediação”, e esta acepção prenhe de sentido se relacionou à hermeneia grega cuja etimologia desconhecida não oferecia qualquer proteção. Por contaminação, hermenêutica se tornou sinônimo de interpretação, ou de exegese. “Ora o sentido original de hermeneuein e das palavras aparentadas, em todo caso seu sentido principal, não é este; não está longe de ser o contrário, se se acorda que a exegese é um movimento de entrada na intenção de um texto ou de uma mensagem. Hermeneia designa frequentemente o ato de exprimir, cujo caráter de extraversão (…) é fortemente sublinhado”. O sentido antigo e primeiro de hermeneuein seria portanto “significar em falando”, manifestar por meio da linguagem o logos interior, no vocabulário de Aristóteles e de Philon de Alexandria. Mas, muito cedo também, a mesma palavra se aplica à manifestação do sentido de uma palavra, tradução do obscuro em claro; encontra-se empregada nesta acepção pelos Padres da Igreja.
Ananda Coomaraswamy: ARTIGOS SELETOS DE METAFÍSICA — NIRUKTA = HERMENEIA [AKCMeta]
Jean Borella: A CRISE DO SIMBOLISMO RELIGIOSO [BCSR]
Em que consiste portanto esta tomada de consciência? Dito de outro modo, posto que a hermenêutica é um ato cognitivo ordinário de nossa inteligência? Certamente, não é o ato como tal que pode, por ele mesmo, diferir dos outros atos especulativos; como toda operação cognitiva, ele consiste na apreensão intelectual de um objeto. Portanto é somente o objeto ele mesmo que pode especificar o ato hermenêutico. Em outros termos: que diferença há entre uma realidade “ordinária” e um símbolo, uma entidade simbólica? Dissemos muitas vezes: o conhecimento de um ser determinado importa com ele uma ontologia de referência imediata. O que é dado com a percepção de uma realidade, é o mundo no qual ele é compreendido e ao qual remete.É precisamente a ausência de uma tal ontologia de referência implícita, a ausência de uma referência ao mundo da experiência comum, que caracteriza a apreensão do objeto simbólico; ou, ao invés de uma ausência, seria melhor falar a seu respeito de uma impossibilidade de se referir ao mundo ordinário. A entidade simbólica se apresenta bem neste mundo, ela não remete a ele.
Roberto Pla: Evangelho de Tomé [RPET]
A aplicação do método oculto à exegese da Bíblia não pretende apresentar-se, nem poderia fazê-lo, como um descobrimento, pois ao menos sua hermenêutica para relatar os fatos é necessariamente tão antiga como a própria Bíblia.
O evangelho proclamado e ensinado por Jesus foi narrado, depois da “subida” do Salvador ao Pai, por alguns que uma vez transformados em puros “servidores da Palavra” (Lc 1,2) e “contempladores de sua Glória” (Jo 1,14; Lc 9, 2931), quiseram que os ensinamentos de Cristo completo fossem conhecidos por muitos.
Com o fim de explicar o Cristo “completo”, em sua dupla vertente (manifesta e oculta), os hagiógrafos neotestamentários praticaram um método hermenêutico no qual cabiam por igual os dois sentidos, o da esfera cristológica manifesta e o da oculta, sem que nenhum dos dois sentidos perdesse sua condição própria, genuína.
Os dois modos de exegese que foram praticados por esses primeiros cristão para chagar a suas interpretações do AT, serviram para que se configurara neles a mentalidade necessária par a hermenêutica própria que os hagiógrafos neotestamentários pretendiam desenvolver, e com as quais os cristianismo primitivo atualizava sua interpretação do texto bíblico em harmonia com as revelações proporcionadas por Jesus.
É verdade que na arte de conseguir que um texto expressasse pluralidade de sentidos sem menosprezo da autenticidade de nenhum dos dois, e sem risco de que se entrechocassem entre si, os “escribas” paleo-cristãos se tornaram tão hábeis como seguramente o haviam sido os soferim judeus, os sábios antecessores testamentários de quem tecnicamente dependem os hagiógrafos cristãos.
Como se sabe, os autores sagrados bíblicos foram mestres em conferir um sentido plural a muitas passagens da Escritura, segundo explicava um velho rabino: “Como um martelo faz soltar infinidade de chispas, assim cada Escritura se expressa em multitude de sentidos” (A. del Agua Pérez, El Método midrásico)
O resultado desta mentalidade foi a aplicação aos textos de uma hermenêutica dual, graças a qual as perícopes de duplo sentido, manifesto e oculto, conformam a significação total dos textos neotestamentários, e só quando se pratica em seu conjunto esta leitura dupla se revela Cristo completo, quer dizer, o Cristo oculto que Roberto Pla quer “re-velar” em sua exegese do Evangelho de Tomé.
Henry Corbin
Aunque al filólogo puro, reducido a la condición del zahir (lo exotérico) pueda parecerle arbitrario, el ta’wil (hermenéutica espiritual) revela al fenomenólogo atento a las estructuras las leyes rigurosas de su objetividad. Y es la filosofía de la Luz, representada tanto por Sohravardí como por Ibn Arabi, la que asegura los fundamentos de la objetividad del ta’wil y regula la «Ciencia de la balanza», el «simbolismo de los mundos», que desarrolla la teosofía shiíta. En efecto, la multiplicación de los sentidos esotéricos no hace más que verificar, mediante la experiencia espiritual, las leyes geométricas de la ciencia de la perspectiva, tal como nuestros filósofos la entendían.1
El ta’wil, la hermenéutica shiíta, no niega que la Revelación profética haya quedado cerrada con el profeta Mohammad, el «Sello de la profecía». Pero mantiene que la hermenéutica profética no ha concluido y que no deja de promover la aparición de significados ocultos, hasta el «retorno», la parusía, del Imam esperado que será el «Sello del Imamato» y la señal de la Resurrección de las Resurrecciones. Todo esto sembró la alarma en el Islam oficial sunnita, que reaccionó en la medida en que sentía que la ley se tambaleaba en sus cimientos, y de todo ello da fe la dramática historia del shiísmo. (HCIbnArabi)
A hermenêutica é a busca do sentido, da significação ou das significações que tal ideia, ou tal fenômeno religioso tiveram através da história. É possível fazer a história das diversas expressões religiosas. Mas, a hermenêutica é o descobrimento do sentido cada vez mais profundo dessas expressões religiosas. E digo que tem que ser criadora por duas razões. Em primeiro lugar, é criadora para o mesmo hermeneuta. O esforço por decifrar a revelação presente em uma criação religiosa —rito, símbolo, mito, figura divina…— e por compreender sua função, sua significação, seu fim é um esforço que enriquece de maneira singular a consciência e a vida do investigador. É uma experiência que não conhece o historiador das literaturas, por exemplo. Captar o sentido da poesia sânscrita, ler Kalidasa é um grande descobrimento para um investigador de formação ocidental, ao qual se revela um horizonte distinto de valores estéticos. Mas tudo isto não é tão profundo, tão existencialmente profundo como a tarefa de decifrar e compreender um comportamento religioso oriental ou arcaico.
A hermenêutica é criadora em um segundo sentido, pois revela certos valores que não eram evidentes no plano da experiência imediata. Suponhamos o exemplo da árvore cósmica em Indonésia, Sibéria, na Mesopotâmia; há traços comuns aos três simbolismos, mas, evidentemente, este parentesco não era conhecido do homem mesopotâmico, indonésio ou siberiano. O trabalho hermenêutico revela as significações latentes e o suceder dos símbolos. Veja os valores que os teólogos cristãos acumularam aos valores pré-cristãos da árvore cósmica, ou do axis mundi, ou da cruz, ou também o simbolismo do batismo. A água teve sempre e em todas partes um significado de «purificação», batismal. Com o cristianismo se acrescenta a este simbolismo um novo valor, sem destruir a estrutura anterior, que, pelo contrário, completa e enriquece. Com efeito, o batismo é para o cristão um sacramento pelo fato de ser instituído por Cristo.
A hermenêutica é criadora até em outro sentido. O leitor que compreende, por exemplo, o simbolismo da árvore cósmica —e acredito que tal é o caso inclusive entre quem não se interessa de ordinário pela história das religiões— experimenta algo mais que um prazer intelectual. Faz um descobrimento importante para sua vida. Adiante, quando contemplar determinadas árvores, verá neles a expressão do mistério do ritmo cósmico. Verá o mistério da vida que se recupera e continua: o inverno, com a queda das folhas; a primavera… Isto possui uma importância muito distinta da decifração de uma inscrição grega ou romana. Um descobrimento de ordem histórica nunca é desdenhável, certamente. Mas, neste caso descobre uma certa posição do espírito no mundo, e embora não se trate de uma postura própria, nunca deixará de nos afetar. O espírito é criador graças a estes encontros. Recorde o encontro do século XIX com a pintura japonesa, ou o do século XX com a escultura e as máscaras africanas. Não se trata já de simples descobrimentos culturais, mas sim de encontros criadores.
—A tarefa hermenêutica é um trabalho de conhecimento, mas, qual é o critério da verdade? Penso, ao escutar-lhe, que se vai preparado para um trabalho de ciência «objetiva», a hermenêutica pede por si, não uns critérios «objetivos», o que nos levaria a pensar que o sujeito está ausente do que considera, a não ser, em definitivo, uns critérios de «verdade poética». Quanto conhecemos através do ato de conhecimento, trocamo-lo, ao mesmo tempo, somos trocados nós mesmos por nosso conhecimento. Hermenêutica infinita, já que, ao ler ao Eliade, interpretamo-lo, do mesmo modo que ele interpreta este ou aquele símbolo iraniano…
—Sem dúvida… Mas quando se trata desses grandes símbolos que põem em relação a vida cósmica e a existência humana, em seu ciclo de morte e renascimento —a árvore cósmica, por exemplo— há algo fundamental, que reaparecerá nas distintas culturas: um segredo do universo que é ao mesmo tempo um segredo da condição humana. E não só se revelará a solidariedade entre a condição humana e a condição cósmica, mas também o fato de que se trata, em cada caso, de seu próprio destino. Esta revelação pode afetar a minha própria vida. Um sentido fundamental, por conseguinte, um sentido com o que se irão conectando outros. Quando a árvore cósmica recebe a significação da cruz, isso não resulta evidente para um indonésio, mas se alguém lhe explica que, para os cristãos, esse símbolo significa uma regeneração, uma vida nova, o indonésio não se sentirá surpreso, mas sim achará aí algo que lhe resulta familiar. Árvore ou cruz, trata-se do mesmo mistério da vida e da ressurreição. O símbolo está sempre aberto. E quanto a minha interpretação, nunca devo esquecer que é a de um investigador de hoje. A interpretação jamais está acabada.
—Convida-nos a captar a universalidade do símbolo além da diversidade do simbolismo. Mostra-nos a abertura indefinida do símbolo e da interpretação. Entretanto, rechaça a via que quiçá conduzisse a uma espécie de relativismo, de subjetivismo e, em seguida, de niilismo, essa via que consistiria em dizer: «Sim, as coisas têm sentido, mas esse sentido não se apoia em nada que não seja quanto de mais fortuito e fugitivo há em mim…». Minha pergunta agora é esta: enlaça a experiência religiosa —e em que modo— com uma verdade trans-histórica? Que classe de «transcendência» admite? Acredita que a verdade está do lado de um Claudel e de sua atitude exegética ou do lado dos existencialistas, de um Sartre, que dizem: «O homem não pode prescindir do sentido, mas esse sentido o inventa mesmo em um céu deserto»?
—Estou certamente contra essa última interpretação: «no céu deserto»! Parece-me que as mensagens emitidas pelos símbolos fundamentais revelam um mundo de significações que não se reduz unicamente a nossa experiência histórica e imanente. «O céu deserto…». É uma metáfora admirável para um homem moderno cujos antepassados acreditavam em um céu povoado de seres antropomórficos, os deuses. O céu, certamente, estava vazio de tais seres. Por minha parte, acredito que as religiões e as filosofias nelas inspiradas —penso nos Upanixades, em Dante, no taoísmo…— revelam-nos algo essencial que somos capazes de assimilar. Entenda-se bem que se trata de algo impossível de aprender de cor, como o último descobrimento científico ou arqueológico. O que quero dizer, e digo em meu próprio nome, não é que daí eu tire uma consequência filosófica a partir de meu trabalho como historiador das religiões. Enfim, a resposta de Sartre e dos existencialistas não me convence: um «céu vazio»… Mais me atrai a «gnosis de Princeton», por exemplo. Chama a atenção o fato de que os maiores matemáticos e astrônomos de nossos dias, que se formaram além em uma sociedade totalmente desacralizada, cheguem à umas conclusões científicas e até filosóficas muito próximas a certas filosofias religiosas. Chama a atenção ver como os físicos, os astrofísicos e sobretudo os especialistas da física teórica reconstroem um universo no qual Deus tem um lugar, assim como a ideia de uma cosmogonia de uma criação. Há nisso algo semelhante ao monoteísmo mosaico, mas sem antropomorfismo, algo que também nos leva para certas filosofias hindus, que esses sábios desconheciam. É um fato muito importante. A «gnosis de Princeton» parece-me muito além de significativa pelo grande êxito e o público que atraiu o livro de Ruyer. (Mircea Eliade)
Para más detalles véase nuestra obra En Islam iranien: aspects spirituels et philosophiques, Ed. Gallimard, París 1971-1973 reedición 1991, t. III, pp. 233 ss., 275 ss., los capítulos sobre la hermenéutica espiritual según Sa’inoddín ‘Alí Torkeh Ispahaní y ‘Alaoddawleh Semnaní. ↩