sentimento

(in. Sentiment; fr. Sentiment; al. Gefühl; it. Sentimento).

Esse termo pode significar: 1) o mesmo que emoção, no significado mais geral, ou algum tipo ou forma superior de emoção. Para este significado, v. emoção; 2) pressentimento, no sentido em que se usam frases como “sinto que algo não vai bem” para dizer que se tem uma opinião que não é possível justificar naquele momento; quanto a esse sentido, v. opinião; 3) fonte de emoções, como princípio, faculdade ou órgão que preside às emoções, e do qual elas dependem, ou como categoria na qual elas se enquadram.

É com este último sentido que essa palavra é comumente empregada hoje, p. ex. quando se opõe o “sentimento” à “razão” (considerada como órgão ou faculdade de conhecimentos objetivos), em frases como “não se faz política com sentimentos”. Este emprego é justificado por uma tradição filosófica relativamente recente, só encontrada na Idade Moderna. Isto porque a filosofia antiga e a medieval não conheceram o sentimento como fonte ou princípio das afeições, afetos ou emoções e portanto não usam essa noção como categoria para organizar e classificar as afeições da alma. Nem a psicologia platônica, que distingue uma alma racional, uma concupiscível e uma irascível (República, TV, 12-15), nem a psicologia aristotélica, que distingue um princípio vegetativo, um sensitivo e um intelectivo (De an., II, 2), reconhecem uma fonte e um princípio autônomos das emoções: estas são repartidas entre as várias divisões ou princípios admitidos, sem exclusão do princípio racional ou intelectivo. O mesmo acontece com a filosofia medieval, que segue as pegadas da psicologia aristotélica. Na realidade, o reconhecimento de uma fonte ou princípio autônomo das emoções relaciona-se com o reconhecimento da subjetividade humana como algo irredutível a um conjunto de elementos objetivos ou objetiváveis ou a modificações passivas produzidas por tais elementos. Este reconhecimento caracteriza os primórdios da filosofia moderna e é, como todos sabem, uma contribuição do cartesianismo.

Os pressupostos desse reconhecimento devem ser buscados na linha de pensamento que vai de Pascal aos moralistas franceses e ingleses (La Rochefoucauld, Vauvenargues, Shaftesbury e Hume) e chega até Rousseau e Kant, culminando neste último: essa é a linha que levou à elaboração do conceito moderno de paixão como emoção dominante e à noção de gosto que está intimamente relacionada com a de sentimento. “sentimento”, “coração”, “espírito de fineza” foram expressões usadas por Pascal para indicar o princípio ou o órgão das emoções, que é diferente do órgão ou do princípio dos raciocínios e irredutível a este. Pascal diz: “Os que estão acostumados a julgar com o sentimento nada entendem das coisas do raciocínio porque logo querem penetrar a questão com um lance de olhos, desacostumados que estão a buscar princípios. Os outros, ao contrário, que estão acostumados a raciocinar por princípios, nada entendem das coisas do sentimento, porque buscam princípios, e não podem apreendê-los apenas com um lance de olhos” (Pensées, 3). Ao sentimento ou ao coração deve-se a mesma certeza que têm os primeiros princípios do raciocínio (“Os princípios são sentidos, as proposições são deduzidas, e em cada uma dessas duas formas há certeza, embora obtida por caminhos diferentes”); ao sentimento e ao coração é atribuída a verdadeira religiosidade, da qual o raciocínio pode somente aproximar-se e da qual só pode dar expectativas (Ibid., 282). Assim, os moralistas ingleses e franceses acima citados contribuíram para a elaboração e o reconhecimento da categoria do sentimento, por terem acentuado o papel dominante das emoções na vida do homem. Finalmente, é preciso lembrar que a “volta à natureza”, proclamada por Rousseau como meio capaz de libertar o homem dos males produzidos pelos artificialismos sociais e de reconduzi-lo à bondade original, é entendida por ele como volta ao primitivo sentimento natural. O sentimento natural é um instinto, uma tendência originária que o conduz para o bem; quando não é alterada, afetada ou bloqueada, conserva o homem no bem e no bem permite-lhe progredir. Nestas famosas teses de Rousseau talvez se encontre a primeira aparição da categoria do sentimento como princípio autônomo da vida espiritual. Mas o primeiro a falar em termos filosóficos sobre essa categoria e a incluí-la numa nova subdivisão dos poderes ou das faculdades espirituais foi provavelmente Kant. Enquanto Wolff (e depois dele os wolffianos) admitia somente duas atividades fundamentais do espírito humano, conhecimento e volição, objetos dos dois ramos fundamentais da filosofia, o teórico e o prático, Kant reconheceu um terceiro poder ou faculdade, o sentimento. “Todos os poderes ou faculdades da alma — diz Kant (Crít. do Juízo, Intr., § III) — podem ser reduzidos a três, que não são redutíveis a um princípio comum: o poder cognitivo, o sentimento do prazer e da dor e o poder de desejar.” O sentimento de prazer ou dor deve ser inserido entre o poder cognitivo e o poder de desejar; a ele cabe um princípio autônomo, que Kant chama às. faculdade de juízo. Assim, o sentimento é o campo de crítica da faculdade de juízo, assim como a faculdade de desejar é o campo de crítica da razão prática. Kant caracteriza o sentimento como o aspecto irredutivelmente subjetivo da representação. Diz (Ibid., § VII): “Aquilo que há de subjetivo numa representação e que não pode de modo algum tornar-se artigo de conhecimento é o prazer ou a dor que estão ligados à representação; isso porque através deles nada conheço do objeto da representação, ainda que eles possam ser efeito de algum conhecimento.” Em conformidade com esta reivindicação de autonomia do sentimento como categoria espiritual, em sua Antropologia pragmática, Kant divide a primeira parte, dedicada ao “modo de conhecer interior e exterior do homem”, em três livros, dedicados respectivamente ao poder cognitivo, ao sentimento de prazer e dor e ao poder apetitivo. Por sua vez, o segundo livro é dividido em duas partes principais, a primeira das quais dedicada ao “sentimento de deleite e prazer sensível na sensação do objeto”; a segunda, dedicada ao “sentimento do belo, que é em parte sensível e em parte intelectual, sendo próprio da intuição reflexa ou do gosto”. Esta segunda parte resume de forma mais acessível os resultados da Crítica do Juízo, a primeira contém uma série de observações sobre o sentimento de prazer e dor em relação com os dados dos sentidos (cf. também Met. der Sitten, Intr. 1, nota) (v. emoção).

Com isso, o sentimento ingressara oficialmente na filosofia como categoria independente. O próprio Hegel aceita-o como determinação do espírito subjetivo e define-o como “uma afeição determinada”, mas determinada de modo simples, isto é, de tal modo que, mesmo quando seu conteúdo é sólido e verdadeiro (o que nem sempre acontece), ele assume a forma de “particularidade acidental”. Hegel acrescenta: “Quando, ao discutir sobre uma coisa, alguém não recorre à natureza e ao conceito da coisa, ou pelo menos à razão e à universalidade do intelecto, mas a seu sentimento, nada se pode fazer; porque desse modo essa pessoa está se recusando a aceitar a comunhão da razão e fecha-se em sua subjetividade, em sua particularidade” (Enc., § 447). Nesse aspecto, Hegel opõe-se à tendência literária do Romantismo, cuja bandeira foi a descoberta e a exaltação do sentimento, considerando-o a forma mais íntima e ao mesmo tempo mais livre de vida espiritual. Para os românticos só pode ser artista quem — como diz Friedrich Schlegel (Ideen, § 13), — “tem uma religião própria, uma intuição original do infinito”. Essa intuição original do infinito é aquilo que os românticos chamam de sentimento. Em outras palavras, sentimento é a manifestação do Infinito, de Deus, à intimidade da consciência. Portanto, as características que definem o sentimento na concepção romântica são dois: 1) seu caráter de extrema subjetividade, constituindo o que há de mais subjetivo no sujeito; 2) sua capacidade de revelar o Princípio infinito da realidade. Em virtude deste segundo aspecto, o sentimento é entendido pelos românticos, alternada ou concomitantemente, como órgão da arte, da filosofia e da religião. Schleiermacher considerou-o órgão da religião, afirmando que “só o sentimento revela o Infinito” (Reden, II; trad. it., p. 43), tese reexposta e defendida frequentemente depois disso. Em tempos mais recentes foi considerado órgão da arte por Gentile (Filosofia da arte, 1931), porquanto a arte é “a subjetividade pura, íntima e inexprimível do sujeito pensante”, e o sentimento é precisamente isso. Na concepção de arte de Gentile, o sentimento conserva todas as conotações românticas: é o infinito espiritual na própria forma de sua infinidade, livre de determinações conceptuais necessitantes, constituindo “a subjetividade pura do sujeito” (Ibid., pp. 176 ss.); como tal, a infinidade do sentimento é a infinidade do homem em sua universalidade, estando portanto acima e além da diversidade empírica dos homens, considerados individualmente” (Ibid., p. 205). Mas a outra corrente do Romantismo oitocentista, o positivismo, também não ficou alheia à exaltação do sentimento. Ao delinear as características do futuro regime sociocrático (dominado e dirigido por uma corporação de filósofos positivistas), Comte afirmou que esse regime será dominado mais pelo sentimento que pela razão e que, portanto, atribuirá papel importante às mulheres, que representam o elemento afetivo do gênero humano (Politique positive, I, pp. 204 ss.). Isto porque a moral dessa sociedade futura será o altruísmo, mas um altruísmo tão desenvolvido que criará inclinações e instintos benévolos que, tanto quanto o sentimento, agem sem necessidade de reflexão. As preocupações religiosas e morais de Comte levaram-no a insistir no valor do sentimento e a exaltá-lo à maneira romântica.

Mas fora do Romantismo, e contra ele, o sentimento foi aceito como categoria fundamental da vida espiritual, como uma das “faculdades” ou “poderes” do espírito. É curioso notar que, enquanto Kant admitia a tripartição conhecimentos-vontade-sentimento com base apenas num modesto mas válido motivo metodológico (porque os três grupos de fenômenos não são redutíveis a um princípio único), logo depois dele essa tripartição começa a ser dogmatizada: para Fries ela já é resultado imediato da auto-observação (Anthropologie, I, 1837, § 4). Herbart, conquanto negasse a doutrina das faculdades da alma, considerando-as “conceitos de classe” segundo os quais os fenômenos estudados se organizam, nem por isso deixou de incluir entre tais conceitos de classe o conceito de sentimento. Para Benecke, o sentimento era a base da moral e da religião; esta última originar-se-ia do sentimento de dependência em relação a Deus, justificado pelo caráter fragmentário da vida humana e pela exigência de completitude, que só pode vir de Deus (System der Metaphysik und Religionsphilosophie, 1840). Para Rosmini o sentimento era a consciência que cada um tem de si, ponto de partida e base para o conhecimento da alma (Psicologia, § 69).

A tripartição das faculdades do espírito em conhecimento, sentimento e vontade manteve-se como esquema praticamente constante na filosofia do séc. XIX. Para sua difusão muito contribuiu a obra de Cousin, que estabeleceu a correspondência entre essa tripartição e três valores absolutos: o Verdadeiro, o Belo e o Bem (Du vrai, du beau et du bien foi título da obra mais conhecida de Cousin, 1853). Se deixarmos de lado as críticas de caráter metodológico sobre a oportunidade de semelhantes esquemas rígidos de subdivisão no estudo dos fenômenos espirituais, podemos dizer que essa tripartição ainda hoje é a mais difundida, tendo-se incorporado ao modo de pensar comum. Exceção é Croce, que reconduziu as formas do espírito às duas formas admitidas por Wolff: a teórica e a prática, criticando o sentimento como categoria espúria e ambígua. Para Croce, sentimento era uma palavra “usada para denominar uma classe de fatos psíquicos constituída segundo o método naturalista e psicológico”: noção que várias vezes exerceu função negativa e crítica em estética, historiografia, lógica e ética, pois contrapunha às interpretações demasiado limitadas e estreitas tudo o que havia de “indeterminado” ou “semideterminado” fora dessas interpretações. O testemunho a que recorria para rejeitar essa categoria é o da observação interior: “Quem quiser, investigue seu espírito e tente indicar um ato sequer que, ao contrário dos indicados acima [atos teóricos e práticos], constitua algo novo e original, e mereça a denominação especial de sentimento” (Fil. da prática, I, I, c. 2). Mas esse tipo de testemunho é extremamente variável e infenso a qualquer verificação; para Fries, p. ex., e para muitos outros, a distinção entre sentimento e outras atividades espirituais era tão claramente provada pelo testemunho interior quanto desmentida para Croce. Na realidade, o uso de tais categorias, como sentimento, atividade teórica, atividade prática, só pode ser discutido, portanto submetido a limites e regras, com base na análise precisa de um grupo delimitável de fenômenos: análise que Croce nem sequer tentou. Contudo, na filosofia contemporânea não faltam análises desse tipo, que figuram entre suas contribuições menos discutíveis para o conhecimento do homem em seu mundo. Uma dessas contribuições — das mais importantes — é a de Max Scheler, que se referiu às palavras de Pascal, “o coração tem razões que a razão desconhece”, mas sem interpretá-las no sentido frequentemente encontrado na filosofia moderna e contemporânea (v. coração), de que a razão deveria ter certa condescendência para com o sentimento e tentar corresponder às suas exigências, porém no sentido de que o sentimento tem suas próprias leis, seus próprios objetos e constitui, portanto, um mundo diferente do racional. Scheler começa fazendo a distinção entre os estados emotivos simples, que não têm caráter intencional, ou seja, que não se referem imediatamente a um objeto próprio (v. emoção), e o sentimento originário e intencional, que, ao contrário, é uma reação particular ao estado emotivo e consiste nas atitudes extremamente variáveis e mutáveis assumidas diante do estado emotivo: enfrentar, tolerar, fruir, suportar, etc. Estado emotivo, p. ex., é o prazer sensível correspondente ao caráter agradável de uma refeição, um perfume, um leve toque. O sentimento puro, ao contrário, consiste nas reações do eu a tal estado emotivo: p. ex., fruir em maior ou menor grau, tolerar, etc. Assim, enquanto um estado emotivo faz parte do conteúdo fenomenal, o sentimento puro está entre as funções destinadas a apreender tal conteúdo. Desse ponto de vista,. a tendência a suportar ou a fruir nada tem a ver com a sensibilidade em relação ao prazer e à dor. O grau de prazer ou de dor pode ser o mesmo, mas o sofrimento e o gozo por eles provocados em dois indivíduos ou no mesmo indivíduo em momentos diferentes podem ser completamente diferentes. Ora, enquanto os estados emotivos podem ser relacionados apenas de modo indireto com os objetos ou os fatos de que são efeito ou sinal, os sentimentos puros referem-se imediatamente a um objeto específico, que é o valor. Portanto, a relação entre sentimento e valor é a mesma observada entre a representação e seu objeto: a relação intencional (v. intencionalidade). Enquanto é necessário um ato de reflexão para relacionar um estado emotivo com o objeto de que é sinal ou que julgamos ter provocado, o sentimento relaciona-se com seu objeto específico, o valor, de modo imediato, como acontece, p. ex., quando sentimos a beleza dos montes cobertos de neve ao pôr-do-sol. A conexão intencional entre sentimento e valor não tem, pois, nada a ver com um vínculo causal entre sentimento e objeto, e independe também da causalidade psíquica individual, ou seja, das leis que regem a vida psíquica do indivíduo. De fato, quando as exigências dos valores não são satisfeitas, sofremos, p. ex., por não nos sentirmos tão alegres quanto o valor de um acontecimento mereceria, ou por não nos sentirmos tão tristes pela morte de um ente querido quanto esse fato exigiria (Formalismus, pp. 260 ss.). Assim, segundo Scheler, o sentimento dá acesso a um mundo de objetos tão reais quanto as coisas ou os fatos que constituem o objeto da representação, mas que nada têm a ver com eles, porque não são coisas nem fatos, mas valores. Scheler, portanto, está de acordo com Kant ao julgar que o sentimento não é “artigo de conhecimento”, mas discorda dele quanto a julgar que ele não tem nenhum objeto e é, por isso, destituído de caráter intencional. Apenas as emoções sensíveis são destituídas de objeto e por isso constituem estados emotivos puros, ao passo que os sentimentos vitais e os psíquicos sempre podem revelar caráter intencional (referir-se a um objetovalor); os sentimento espirituais revelam-no necessariamente (para a distinção entre os graus emocionais, V. emoção). A análise de Scheler é muito importante porque lança novas luzes sobre a vida emocional do homem. Contudo, o próprio Scheler usou sua análise como fundamento de uma verdadeira metafísica dos valores, em que estes não são considerados somente objetos, no sentido próprio e restrito do termo (v. objeto), mas verdadeiras realidades, no sentido em que são chamadas de reais as coisas, as entidades e os fatos, com a diferença de que, diante de qualquer outra coisa, entidade ou fato, os valores seriam realidades últimas ou “absolutas”. Essa integração metafísica de uma análise meritória pelo modo como foi conduzida e pelas suas conclusões pode levantar dúvidas quanto à sua legitimidade. Com efeito, pode-se considerar que um dos resultados dessa análise é estender o significado de “objeto” como termo ou fim de um ato intencional, de tal modo que não sejam chamados de objetos apenas os que possam ser considerados reais no sentido de terem características de fatos ou entidades subsistentes. Por realidade entende-se, pois, de modo estrito e rigoroso, o termo de um processo cognitivo passível de verificação (v. realidade), e nãorazão para identificar a intencionalidade emotiva com a intencionalidade cognitiva; o próprio Scheler dá boas razões para fazer o contrário. Se as coisas são assim, ou seja, se a intencionalidade do sentimento é diferente da intencionalidade do conhecimento, sendo também diferentes seus respectivos objetos, deixa de ter fundamento a crítica de Scheler à tendência da psicologia contemporânea, de negar a “função cognitiva” dos sentimento Isto porque a psicologia contemporânea admite a função dos sentimento no comportamento vital do organismo, e considera-os anúncio de situações presentes ou futuras, o que permite enfrentar tais situações da mesma maneira como um dispositivo de alarme põe em movimento os meios de enfrentar um perigo. Assim como Scheler, Heidegger reconheceu a importância fundamental do sentimento, que ele considera arraigado na substância humana, vale dizer, na estrutura ontológica de sua existência. Heidegger chama de situação afetiva (Befindlichkeit) o tom emocional da ocupação cotidiana do homem, e vê nesse tom uma manifestação essencial do ser do homem no mundo: “O estado da situação afetiva constitui, essencialmente, a abertura do ser-aí no mundo” (Sein und Zeit, § 29). Segundo Heidegger, a situação fundamental de um ente que, como o homem, vive num ambiente que lhe fornece as coisas a serem utilizadas e que, por isso, pode ameaçá-lo com a não-instrumentalidade, com a resistência das coisas, é a possibilidade de ser ameaçado pelas coisas e pelos acontecimentos do mundo e de reagir a essa ameaça com medo ou com coragem. Também neste caso, se deixarmos de lado a linguagem específica da ontologia de Heidegger, podemos dizer que sua análise concorda fundamentalmente com a da psicologia contemporânea e que confirma a noção de sentimento como capacidade de apreender o valor que um fato ou uma situação apresenta para o ser (animal ou homem) que deve enfrentá-la. Finalmente, é preciso lembrar que para Hartmann o sentimento — que serviu de base para a sua ética — é a “principal sede em que os valores se dão” (Ethik, 1926). [Abbagnano]


Tudo o que sentimos, e particularmente as emoções de fraca intensidade e as paixões, assim como as inclinações gerais do homem (sentimento moral, admiração). — Uma “moral do sentimento” baseada na piedade (Schopenhauer), na inspiração do coração (Rousseau), na simpatia (Scheler), e no amor (Bergson), contrapõe-se a uma moral racional ou “formal” (como a de Kant), que preconiza a ação por “princípios”, qualquer que seja o nosso sentimento (prestar-se-á assistência ao outro por dever e não por piedade; a decisão será mais firme e nunca humilhará a pessoa humana). Uma moral do sentimento não pode ser verdadeiramente universal. O problema filosófico do sentimento é saber se o sentimento pode ser um meio real de conhecimento: distinguir-se-á, desse ponto de vista, as realidades naturais, que não apelam para o sentimento e sim para o conhecimento objetivo, que se originam de um trabalho de “mensura”, e as realidades humanas, onde o sentimento pode ser um instrumento válido para um conhecimento universal; somente partindo de si mesmo e de seu sentimento pode o etnólogo compreender realmente (o que é diferente de conhecer teoricamente) os costumes dos índios da América do Sul (Levi-Strauss). [Larousse]


Enquanto a alma, no ato de conhecer, torna presentes a si mediante representações intencionais os objetos e na tendência visa alcançar bens sensíveis ou espirituais com uma afirmação ativa, o sentimento como tal não é propriamente intencional, mas constitui um estado subjetivo, um ser-movida-a-alma em si mesma. Na agitação sentimental aguda e intensa, temos a emoção; quando o estado afetivo persiste de maneira uniforme recebe o nome de estado de ânimo. A escolástica medieval subordinava o sentimento à faculdade apetitiva, mas desde Tetens (1736-1807) a psicologia moderna prefere, com razão, a divisão trimembre das formas vivenciais: conhecimento, tendência, sentimento. Certas teorias do sentimento demasiado simplistas, surgidas no século XIX, pretendiam ver nele uma espécie de impressões sensoriais, ou uma propriedade das mesmas, ou um obscuro conhecimento da utilidade ou da nocividade dos objetos do conhecimento, chegando até a equiparar o sentimento com a forma de expressá lo (“não choramos porque estamos tristes, mas estamos tristes porque choramos ou enquanto choramos”) (teorias sensistas, intelectualistas e fisiológicas do sentimento). Semelhante atitude não dá conta da peculiaridade vivencial dos fenômenos afetivos. Contudo, por outro lado, o sentimento funde-se intimamente com o conjunto da vida consciente, envolve-a e sustém-na, como se fosse uma atmosfera, e aparece como um reflexo do funcionamento psíquico (e, por vezes, fisiológico) total F. Krueger interpretava-o como a “qualidade de totalidade” da vida psíquica, com o que se salienta a íntima união do sentimento com a vida psíquica globalmente considerada, mas, em contrapartida, fica por aclarar a natureza peculiar da vivência emocional. Os sentimentos são, em parte, produzidos pela peculiaridade dos objetos de conhecimento, e daí lhes vem seu caráter de inteligibilidade; e, em parte, são sentimentos elementares simplesmente agrupados em paralelo com determinados processos fisiológicos (p. ex., a sensação de bem estar motivada por uma temperatura agradável). Certos sentimentos organicamente condicionados e “privados de objeto” parece, por assim dizer, “buscarem” para si um objeto de conhecimento (a angústia depressiva busca aquilo, “ante o que” deve inquietar se, desempenhando assim um papel funesto nas ideias religiosas acerca do pecado).

Discute-se, se os sentimentos valorativos espirituais diferem dos sentimentos sensitivos, estreitamente vinculados à vida apetitivo-sensitiva, só pela diversa direção do objeto (Lindworsky), ou se também se diferenciam deles ontologicamente, por um modo espiritual de ser, idêntico ao modo como o conhecer e o querer de ordem espiritual se distinguem da percepção e do apetite sensoriais (Fröbes). Além da particular vinculação que, do ponto de vista do sentido, têm os sentimentos valorativos com a volição e com o conhecimento intelectual, falam em abono da existência de sentimentos valorativos espirituais a índole subjetiva peculiar e o curso de muitos sentimentos de valor, relativamente aos quais dificilmente se pode mostrar um estreito paralelismo psicofísico; por outro lado, os sentimentos de natureza intelectual e sensitiva fundem-se de maneira tão íntima que será difícil demarcá-los mediante a análise reflexiva (o modo de sentir o valor é também amplamente condicionado pelo temperamento e, conseguintemente, por bases orgânicas).

A estrutura da vida sentimental não pode ser concebida de maneira “atomística”, como se os sentimentos e estados de ânimo fossem compostos de poucos “elementos”, a modo de mosaico. Sem dúvida, o prazer e o desprazer encontram-se, como “matiz” último em todos os sentimentos, mas não são, por assim dizer, os elementos químicos das emoções e dos estados de ânimo. Tampouco dão suficiente conta da riqueza da vida afetiva as sistematizações dos sentimentos propostas em épocas anteriores, sistematizações essas predominantemente lógicas e baseadas na relação destes com o objeto. Contudo é inegável que tais sistematizações põem em destaque certas formas capitais da vida emocional (como a ira, a tristeza, a alegria, a melancolia, etc). Entre as vivências afetivas mais fundamentais contam-se a angústia (como reflexo emocional de um risco total ou parcial do ser e do operar) e o sentimento de alegria correspondente à segurança do ser e a seu livre funcionamento. Com frequência se conglomeram sentimentos e estados de ânimo de diversas espécies, até opostos, para formar complexos sentimentais. De modo idêntico, a peculiaridade e a intensidade de um sentimento pode (na mudança repentina e no contraste sentimental) co-determinar a natureza e a intensidade do sentimento subsequente.

E difícil salientar com suficiente vigor a importância do sentimento no conjunto da vida psíquica tanto normal quanto patológica (p. ex., na psicose maníaco-depressiva). Influi, como força de primeira grandeza, tanto no conhecimento e no juízo quanto na orientação teleológica, a peculiaridade formal, a energia e a fraqueza do querer. Surgem aqui dois problemas: o problema do chamado sentimento intencional, como de um estado emocional certamente subjetivo, mas que é, a um tempo, vivência dirigida para um objeto, e o problema da chamada certeza sentimental. Os sentimentos de segurança ( Evidência) que podem unir-se a uma intelecção profunda e lúcida, são capazes de se adiantarem a um conhecimento (real ou suposto) que não faz senão iniciar se e todavia destituído de fundamento claro. Fala-se então, inexatamente, de pressentimentos sentimentais, de intelecção afetiva, de certeza sentimental, etc. Em tal caso, o sentimento é como que o garante da exatidão da hipótese ou suposição, contudo, em rigor de expressão, o sentimento “não pressente, nem supõe, nem suspeita”, mas sim o entendimento. Enquanto a pobreza sentimental constitui uma lastimável falha de riqueza psíquica, uma vida sentimental exagerada e desmedida pode inundar a alma inteira de maneira muito perniciosa (arrebatamentos passionais, degeneração histérica do caráter, etc). Pelo que, uma das importantes tarefas educativas é a formação endereçada a conseguir o domínio indireto de uma vida afetiva autêntica e orientada para os valores.

Dentro do âmbito da afetividade, merece salientar-se aquilo que a língua alemã designa pelo vocábulo “Gemüt”. Este vocábulo, sem equivalente em português, mas que de algum modo se pode traduzir por “contextura afetiva”, denota a íntima e perfeita unidade, na vida afetiva, do espiritual “e” de sensitivo. Neste sentido, é costume contrapor o homem dotado de tal “contextura” ao “homem de inteligência e de vontade”, tomado unilateralmente. A “contextura afetiva” penetra inteiramente a vivência do valor nas esferas individual e social, religiosa e ética. Enquanto uma “contextura afetiva” (excessivamente artificial, que, devido à preponderância do sentimento, degenera em sentimentalismo) carece de todo valor na vida psíquica, e, por outro lado, uma “contextura afetiva” anormalmente pobre costuma vir associada a uma deformação e até a uma mutilação da mesma vida psíquica (podendo, inclusive, favorecer de muitas maneiras certas inclinações criminais), um viver dotado de autêntica e vigorosa “contextura afetiva” é uma poderosa força na vida da alma e constitui um nobre objetivo da formação do caráter. — Willwoll. [Brugger]


A palavra SENTIMENTO designa um conceito de conteúdo completamente NEGATIVO, noutros termos, designa algo presente na consciência que NÃO É CONCEITO NEM É CONHECIMENTO ABSTRATO DA RAZÃO: não importa o que isso seja, sempre cai sob a rubrica do conceito de SENTIMENTO, cuja esfera é extraordinariamente ampla e, por conseguinte, abrange as coisas mais heterogêneas que só entendemos como se agrupam quando reconhecemos que coincidem unicamente neste aspecto negativo: NÃO SEREM CONCEITOS ABSTRATOS. Pois os elementos mais diversos, sim, mais hostis, residem placidamente um ao lado do outro naquele conceito, como, por exemplo, o sentimento religioso, o sentimento de volúpia, o sentimento moral, o sentimento corporal enquanto tato e dor, o sentimento das cores, dos tons e de sua harmonia e desarmonia, o sentimento de ódio, repugnância, autossatisfação, honra, vergonha, justo e injusto, o sentimento da verdade, estético, de força e fraqueza, saúde, amizade, amor etc. etc. Entre eles não se encontra nenhum traço comum a não ser a qualidade negativa de não serem conhecimento abstrato da razão; porém, isso salta da maneira mais nítida aos olhos quando até mesmo o conhecimento abstrato a priori das relações espaciais, assim como o nosso conhecimento do puro entendimento, é subsumido naquele conceito ou em geral quando se diz de qualquer conhecimento, de qualquer verdade, da qual se está consciente apenas intuitivamente, porém ainda não formulada em conceitos abstratos, que se a SENTE. Para explicitar isso quero mencionar alguns exemplos extraídos de livros publicados recentemente, visto que são provas cabais da minha explanação. Lembro-me de ter lido no introito de uma tradução de Euclides que devemos permitir aos que se iniciam na geometria fazer primeiro o desenho das figuras antes de demonstrá-las, pois assim SENTEM a verdade geométrica antes de a demonstração lhes evidenciar o conhecimento completo. – Do mesmo modo, na Kritik der Sittenlehre de F. Schleiermacher fala-se de sentimento lógico e matemático, também do sentimento da igualdade ou diferença entre duas fórmulas; ainda, na Geschichte der Philosophie de Tennemanns, lê-se: SENTIMOS que os sofismas não eram raciocínios corretos, todavia não pudemos descobrir o erro. – Enquanto o conceito de SENTIMENTO não for considerado do seu correto ponto de vista e não se reconhecer a sua característica negativa como essencial, ele tem de dar azo a contínuas confusões e disputas, devido à extraordinária extensão da sua esfera e ao seu conteúdo meramente negativo, totalmente unilateral e limitado. Como a língua alemã ainda possui a palavra sinônima Empfindung, “sensação”, seria útil reservá-la, como subespécie, para os sentimentos corporais. A origem do conceito de sentimento sem dúvida alguma é a seguinte. Todos os conceitos, e apenas conceitos, são denotados por palavras; eles existem exclusivamente para a razão e dela procedem: com os conceitos, portanto, já se está num ponto de vista unilateral. Deste, porém, o que é próximo aparece de maneira distinta e é tomado positivamente; já as coisas distantes confluem umas nas outras e logo são levadas em conta só negativamente. Nesse sentido, cada nação chama todas as outras de estrangeiras; os gregos chamavam os outros povos de bárbaros; os ingleses chamam tudo o que não é da Inglaterra ou inglês de continente ou continental; os fiéis chamam todos os demais de heréticos ou pagãos; o nobre chama os que não o são de roturiers; para o estudante todos os outros são filisteus, e assim por diante. A mesma unilateralidade, até se pode dizer ignorância por orgulho, deve ser imputada, por mais estranho que soe, à razão mesma, na medida em que esta engloba sob o ÚNICO conceito de SENTIMENTO qualquer modificação da consciência que não pertence imediatamente ao SEU modo de representação, isto é, que NÃO É CONCEITO ABSTRATO. Ora, como até agora o seu próprio procedimento não lhe veio a ser claro mediante o profundo exame de si, ela teve de expiar a culpa mediante confusões e erros cometidos em seu próprio domínio; até mesmo uma faculdade especial para o sentimento foi forjada e teorias acerca dele foram construídas. [Schopenhauer, MVR1:99-102]