Justino

Justino, Mártir, São (séc. II)

Flávio Justino nasceu no primeiro decênio do séc. II em Flávia Neápolis, a antiga Siquém, atual Nablus, na Palestina. Filho de pais pagãos, frequentou as diversas escolas filosóficas de estoicos, peripatéticos e pitagóricos. Depois de ter professado durante longo tempo as doutrinas dos platônicos, converteu-se ao cristianismo. Viveu muito tempo em Roma, onde fundou uma escola e onde sofreu também o martírio entre os anos 163-167.

De São Justino conservam-se três obras autênticas: O Diálogo com o judeu Trifão ele II Apologia. A primeira e mais importante delas é dirigida ao imperador Antonino Pio e deve ter sido escrita entre os anos 150-155. A segunda, que vem a ser um apêndice da primeira, foi motivada pela morte de três cristãos, réus por se professarem tais. O Diálogo com o judeu Trifão apresenta uma discussão ocorrida em Éfeso entre Justino e Trifão, e quer demonstrar que a pregação de Cristo realiza e completa os ensinamentos do AT.

A doutrina fundamental de São Justino pode ser resumida nos seguintes pontos:

— O cristianismo é a “única filosofia segura e útil” (Dial, 8), resultado último e definitivo ao qual a razão deve chegar em sua investigação. E a razão nada mais é do que o Verbo de Deus, isto é, Cristo, do qual participa todo gênero humano (Apol, I, 46).

— Os que viveram conforme a razão são cristãos, embora tenham sido considerados ateus… “De modo que aqueles que nasceram e viveram irracionalmente foram malvados e inimigos de Cristo e assassinos dos que vivem segundo a razão; mas aqueles que viveram e vivem segundo a razão, são cristãos impávidos e tranquilos.”

— Porém, esses cristãos anteriores não conheceram toda a verdade. Havia neles sementes de verdade que não puderam entender perfeitamente (Apol, 1,44).

— Tudo o que de verdade se tenha dito pertence a nós, cristãos; já que, além de Deus, nós adoramos e amamos o logos do Deus ingênito e inefável, o que se fez homem por nós, para nos curar de nossas doenças, participando delas” {Apol, II, 13).

BIBLIOGRAFIA: Obras: PG 6; Corpus Apologetarum Christianorum saeculi II. Ed. Otto, Jena 1847-1872,9 vols.; H. Yaben, San Justino. Apologias, Madrid 1943; Padres apologetas griegos. Edição bilíngue (BAC). (Santidrián)


A obra de são Justino, mártir, é contemporânea do Pastor de Hermas. Nascido em Flávia Neápolis (Naplusa) de pais pagãos, Justino converteu-se ao cristianismo antes de 132 e foi martirizado em Roma, sob o prefeito Junius Rusticus (163-167). Entre seus escritos que foram conservados, os mais importantes são a Primeira Apologia (150), dirigida ao imperador Adriano, logo seguida de seu complemento, a Segunda Apologia, dirigida ao imperador Marco Aurélio, e o Diálogo com Trífon, composto por volta de 160. Ele mesmo nos contou sua evolução religiosa e, ainda que o relato desta que o Diálogo com Trífon nos dá seja estilizado, nem por isso deixa de exprimir com fidelidade os motivos principais que um pagão de cultura grega podia ter para se converter ao cristianismo por volta do ano 130. As preocupações religiosas ocupavam então uma posição importante na própria especulação filosófica grega. Converter-se ao cristianismo era, com frequência, passar de uma filosofia animada por um espírito religioso a uma religião capaz de vistas filosóficas. Para o jovem Justino, a filosofia era “o que nos conduz a Deus e a ele nos une”. Frequentou a princípio os estoicos, mas esses homens ignoravam Deus e chegaram a lhe dizer que não era necessário conhecê-lo. Tendo se dirigido em seguida aos peripatéticos, deu com um mestre que lhe pediu para combinar primeiro um salário, “a fim de que suas relações não permanecessem inúteis”: não era, pois, um filósofo. Justino quis se instruir, então, com um pitagórico, mas esse mestre exigia que se soubesse primeiro música, astronomia e geometria, e Justino não podia decidir-se a consagrar a essas ciências o tempo necessário. Um melhor êxito esperava-o junto aos discípulos de Platão. Aí ele se instruiu verdadeiramente sobre o que desejava aprender: “A inteligência das coisas corpóreas”, diz Justino, “me cativava ao mais alto grau; a contemplação das Ideias dava asas a meu espírito, de modo que, após pouco tempo, acreditei ter-me tornado um sábio; fui mesmo tolo o bastante para esperar que ia imediatamente ver Deus, pois é esse o objetivo da filosofia de Platão.”

Era uma religião natural que Justino buscava na filosofia; portanto, não é de espantar que mais tarde tenha trocado o platonismo por outra religião. Numa solidão em que se retirara para meditar, Justino encontrou um ancião que o questionou sobre Deus e sobre a alma, e como houvesse respondido expondo as ideias de Platão sobre Deus e a transmigração das almas, esse ancião fez-lhe ver a incoerência de tais ideias: se as almas que veem Deus devem esque-cê-lo em seguida, sua felicidade não é mais que miséria, e se as que são indignas de vê-lo permanecem ligadas a corpos em punição por sua indignidade, como não se sabem punidas, essa punição é inútil. Nisso Justino esboçou uma justificação do Timeu, mas o ancião respondeu-lhe que não se preocupava nem com o Timeu, nem com a doutrina platônica da imortalidade da alma. Se a alma é imortalmente viva, não é porque ela é vida, como Platão ensina, mas porque a recebe, como ensinam os cristãos: a alma vive porque Deus quer e tanto tempo quanto ele quiser. Essa resposta nos parece, hoje, de uma simplicidade que confina com a banalidade, mas assinalava com nitidez a linha de demarcação que separa o cristianismo do platonismo. Justino perguntou, então, onde se podia ler essa doutrina, e como lhe foi respondido que não era nos escritos de nenhum filósofo, mas nos do Antigo e do Novo Testamento, Justino logo ardeu do desejo de lê-los: “Um fogo acendeu-se subitamente em minha alma, fui tomado de amor pelos profetas e por aqueles homens amigos de Cristo; e, refletindo eu mesmo sobre todas aquelas palavras, descobri que essa filosofia era a única segura e proveitosa.”

Esse texto do Diálogo com Trífon é de uma importância capital, por nos mostrar, num caso concreto e historicamente observável, como a religião cristã pôde assimilar imediatamente um dominio reivindicado até então pelos filósofos. É que o cristianismo oferecia uma nova solução para problemas que os próprio filósofos tinham levantado. Uma religião baseada na numa revelação divina mostrava-se capaz de resolver os problemas filosóficos melhor que a própria filosofia; seus discípulos tinham, portanto, o direito de reivindicar o título de filósofos e, como se tratava da religião cristã, de declarar-se filósofos pelo simples fato de serem cristãos.

No entanto, essa pretensão não estava ao abrigo de qualquer objeção. Antes de mais nada, se admitirmos que Deus revelou a verdade aos homens apenas através de Cristo, parece que os que viveram antes de Cristo não foram culpados de tê-la ignorado. Havendo ele mesmo colocado esse problema na Primeira Apologia, Justino empenhava-se em definir a natureza da revelação cristã e seu lugar na história da humanidade. O princípio da solução que ele propõe é emprestado do evangelho de são João. “Aprendemos”, ele declara, com efeito, que o Verbo ilumina todo homem que vem a este mundo e que, por conseguinte, “todo o gênero humano participa do Verbo”. Há, pois, uma revelação universal do Verbo divino, anterior à que se produziu quando o mesmo Verbo fez-se carne. Essa tese será reex-posta por Justino em termos emprestados do estoicismo, quando dirá, em sua Segunda Apologia, que a verdade do Verbo é como uma “razão seminal”, isto é, um germe, de que cada homem recebeu uma parcela. Como quer que um se exprima, o fato permanece o mesmo e, como Cristo é o Verbo feito carne, todos os homens que viveram segundo o Verbo, fossem judeus ou pagãos, viveram segundo Cristo, ao passo que aqueles que, por seus vícios, viveram contra o Verbo, também viveram contra Cristo. Houve, pois, cristãos e anticristãos antes de Cristo; logo, também, méritos e deméritos. Acrescentemos a isso que os filósofos gregos tomaram amiúde suas ideias emprestadas dos livros do Antigo Testamento, e teremos o direito de concluir que a revelação cristã é o ponto culminante de uma revelação divina tão antiga quanto o gênero humano.

Se assim é, o cristianismo pode assumir a responsabilidade por toda a história, mas ele também requer os benefícios desta. Tudo o que se fez de mal fez-se contra o Verbo, tudo o que se fez de bem fez-se pelo Verbo. Ora, o Verbo é Cristo; logo, conclui Justino em nome dos cristãos: “Tudo o que foi dito de verdadeiro é nosso.” Essa afirmação justamente famosa da Segunda Apologia (cap. XIII) justificava de antemão o uso que os pensadores cristãos dos séculos vindouros deviam fazer da filosofia grega. Vê-se, pelo menos, porque o próprio Justino não se teria surpreendido. Para ele, Heráclito e os estoicos não são estranhos ao pensamento cristão; Sócrates conheceu “parcialmente” Cristo: de fato, ele descobriu certas verdades pelo esforço da razão, que ela própria é uma participação no Verbo, e o Verbo é Cristo; Sócrates pertence, pois, aos discípulos de Cristo. Em resumo, pode-se dizer a mesma coisa de todos os filósofos pagãos que, tendo pensado o verdadeiro, tiveram os germes dessa verdade plena que a revelação cristã nos oferece no estado perfeito.

Os princípios diretores de Justino são mais importantes do que as aplicações que deles fez. A própria natureza de seus escritos não se prestava, aliás, a exposições gerais nem a discussões aprofundadas. O Diálogo com Trífon e as duas Apologias não se propõem expor a doutrina cristã em seu conjunto, menos ainda desenvolver as concepções filosóficas a que ele aderia. Justino não faz mais que tocar de passagem os pontos sobre os quais julga útil justificar a fé cristã, e não podemos senão recolher essas indicações fragmentárias, agrupando-as sob títulos que sequer são dele.

Deus é um ser único e inominável; Justino diz “anônimo”. Chamá-lo de Pai, Criador, Senhor ou Mestre é menos designar o que ele é em si do que o que ele é ou faz por nós. Esse Deus oculto é Deus Pai. Criador do mundo, ninguém nunca lhe falou, nunca o viu, mas ele fez-se conhecer pelo homem enviando-lhe “um Deus outro que aquele que tudo fez; digo outro quanto ao número, mas não quanto à noção”. Esse outro Deus é o Verbo, que se fez ver por Moisés, assim como por outros patriarcas e de quem dissemos que ilumina todo homem que vem a este mundo. O Verbo é o “primogênito” de Deus, que o estabeleceu ou “constituiu” antes de qualquer criatura. Quando tenta exprimir a relação entre o Verbo e o Pai, Justino emprega comparações necessariamente deficientes, como a de um fogo que acende outro sem se diminuir, ou a bem estoica do pensamento (verbo interior) que se exprime em palavras (verbo proferido) sem, contudo, separar-se de si mesma. Essa geração do Verbo pelo Pai produziu-se antes da criação do mundo. Um texto obscuro, traduzido diversamente por diversos intérpretes, autoriza uns a dizerem que, segundo Justino, o Verbo foi engendrado antes da criação mas visando-a, e outros a não lhe atribuírem essa doutrina da geração temporal do Verbo. Como quer que seja, Justino subordinou expressamente o Verbo ao Pai e criador de todas as coisas. O Deus demiurgo, para falar com ele a linguagem do Timeu, ocupa o primeiro lugar; o Verbo, que ele engendrou segundo a sua vontade, é Deus também, mas em segundo lugar. Quanto ao Espírito Santo, terceira pessoa da Trindade cristã, ele é Deus em “terceiro lugar”. Aliás, a maneira como Justino fala dele convida a pensar que nunca lhe definiu claramente a natureza, o lugar e o papel.

Do homem, Justino só considerou a alma. A passagem do Diálogo com Trífon em que fala da sua natureza é bastante obscura: “Da mesma maneira que o homem não existe perpetuamente e que o corpo nem sempre subsiste unido à alma, mas que, quando essa harmonia deve ser destruída, a alma abandona o corpo e o homem não existe mais, assim também, quando a alma deve cessar de existir, o espírito da vida foge dela; a alma não existe mais e volta para o lugar de onde fora tirada.” Essa concepção tripartite da natureza humana (corpo, alma e espírito ou pneumà) é de origem paulina ou estoica. Vê-se, aliás, que Justino não considera a morte da alma impossível. De fato, como lhe ensinara o ancião a quem devia sua conversão, a alma não évida, ela a recebe de Deus; logo, ela não é imortal de pleno direito, mas dura tanto tempo quanto a Deus apraz conservá-la. Um curioso texto do Diálogo com Trífon (V, 3) diz que as almas dos justos vão para um mundo mais feliz, onde não morrem mais, ao passo que as dos maus são castigadas tanto tempo quanto Deus quiser que elas existam; mas, como Justino fala alhures de castigos eternos, não se poderia afirmar que ela tenha tomado nitidamente posição sobre esse ponto. Como quer que seja, Justino não duvida que a alma deva ser recompensada ou punida na outra vida de acordo com seus méritos ou seus deméritos. Aliás, nada é mais justo: já que sua vontade é livre e não submetida ao destino, como pretendem os estoicos, o homem é responsável por seus atos. Justino insistiu tão fortemente sobre o livre-arbítrio como fundamento necessário e suficiente do mérito e do demérito e falou tão pouco e tão vagamente do pecado original, que não vemos direito como pôde conceber o papel da graça. Entretanto falou a esse respeito, e se nos lembrarmos que vários escritos de Justino se perderam, acharemos sem dúvida prudente não reconstruir arbitrariamente sua posição sobre esse ponto. Justino não pensou claramente nem que suas obras o salvariam sem Cristo, nem que Cristo o salvaria sem suas obras, mas não vemos que ele tenha sentido a necessidade de fundamentar essa dupla certeza em nenhuma especulação.

Justino se apresenta como o primeiro daqueles para quem a revelação cristã é o ponto culminante de uma revelação mais ampla e, não obstante, cristã a seu modo, pois que toda revelação vem do Verbo e que Cristo é o Verbo encarnado. Podemos, pois, considerá-lo o ancestral dessa família espiritual cristã, da qual o cristianismo largamente aberto reivindica como seus todo o verdadeiro e todo o bem, que ele se dedica a descobrir para assimilar. Serão numerosos os membros dessa família, e nem todos serão santos, mas Justino Mártir foi um; o sangue que ele derramou por Cristo garante plenamente a autenticidade de um cristianismo desse tipo e repercute sobre testemunhos menos puros que o seu. Entre as testemunhas de Cristo que haviam-no confessado até o martírio, Justino gostava de alinhar Sócrates, condenado e morto por instigação do demônio devido a seu amor inflexível pela verdade. Talvez devamos nos lembrar disso, para interpretar corretamente certa afirmação de Erasmo, pois Justino justificara de antemão o que há de verdadeiro na invocação tantas vezes citada e tão diversamente interpretada do humanista: “Santo Sócrates, rogai por nós.” (Etienne Gilson)