VIDE tríade
Teogonia também é cosmogonia e antropogonia. Já o sabíamos. Mas se Hesíodo intitulou (ou se alguém, depois dele, intitulou) o seu poema de Teogonia, é porque supunha (e bem supunha) que deuses vêm antes do mundo e dos homens, que precedem homens e mundo. Deuses estão indiferenciadamente sustidos no Caos, antes da primeira diferenciação que foi a do deus–Céu e da deusa-Terra. Foi então que se desenhou o triângulo prototípico da complementaridade e do simbólico. Ele se reproduzirá, por mais acessível exemplo, no separarem-se, no homem, varão e mulher; da indiferença de sexos, o masculino e o feminino. A filosofia só fala do homem; o mito tem de contar com a existência da mulher; a filosofia fala do Universo; a mitologia não prescinde do Céu e da Terra. Mas — dizíamos — os deuses vêm antes, os deuses precedem, e não só porque Céu e Terra já são deuses. Deuses são projetos do Projeto [v. projeto] e, como tais, eles mesmos projetam homem e mundo, e do modo como eles mesmos foram projetados. São excessos incontidos da Excessividade que não se satisfaz de excedência. Incontidos, os deuses se veem no exceder-se a mal contida excedência que é mundo, e na incontinência do excesso, que é homem. Outro triângulo, semelhante ao primeiro: no vértice está um deus, na base se opõem homem e mundo. E é porque um deus está no vértice que a cosmogonia e a antropogonia mais propriamente se intitulam de «Teogonia». Cada ato teogônico divide-se em dois quadros que, ao mesmo tempo, se representam na mesma cena; num, decore a gênese do mundo deste homem, noutro, a do homem deste mundo; homem e mundo são co-projetados pelo projeto–imagem do Projeto. O mito primordial repete-se indefinidamente, com infinitas variantes, cada uma reproduzindo a seu modo o triângulo primordial da complementaridade e do simbólico. Complementarismo e [72] simbolismo pertencem à lógica triádica [v. tríade] do impulso mítico, criador de mitos. Não se confunda esta com o movimento ternário progressivo da dialética. Um triângulo de complementaridade e de simbólico é semelhante a qualquer outro; em qualquer deles, está o triângulo primordial do Originário de todas as origens. Todos os seus vértices superiores se alinham num reta que tem origem em algum ponto da circunferência do círculo da objetividade, atravessa todo o domínio do trans-objetivo [v. transobjetivo], perde-se de vista no fundo do Abismo sem fundo da Realidade, do Ser, de Deus ou do como quer que se denomine o inominável Absoluto ou Separado. [EudoroMito:72-73]
Neste papel, a meu lado, desenho um triângulo. O que tenho em mira é o triângulo cosmogônico ou a triangulação do cosmos, o triângulo que diacosmiza, o que faz mundo do que o não era. Num dos ângulos da base está o homem neste mundo, no ângulo oposto, o mundo em que o homem está. «Homem» é um particular entre os demais que no mundo existem. Geral é o mundo em que existem os particulares, em que se dispõem as partes que o compõem. Se há o que os identifique, como mundo deste homem e homem deste mundo, se homem e mundo, de qualquer modo, são intercambiáveis, se o particular e o geral estão em cada um dos ângulos da base, eles são, na verdade, indiferentes em relação ao vértice; o vértice os identifica, o vértice os afeiçoa um ao outro, a si mesmo os afeiçoando, na triangulação cosmogônica. E ainda se pode encarar o exemplo por outro lado. O triângulo que desenhei é um triângulo particular em relação à generalidade do triângulo. Esqueçamos aqui o platônico realismo das ideias: então, este triângulo, que eu o desenhe no papel ou o [77] recorte em madeira ou ferro, não é imitação do triângulo modelo de todos os triângulos. É, na sua particularidade, síntese do geral e do particular, no particular. Isto não é assim tão estranho quanto parece: lembremo-nos do drama ritual. Esta árvore particular, que intervém em certo culto, não representa a espécie, é, ela própria, a árvore que, por sua vez, é uma ou a epifania de certa divindade. Em suma, o simbólico não representa, é o que representa. Aquele triângulo, por conseguinte, não aponta para o Triângulo, é, ele próprio, o Triângulo. Deus triangula mundos, colocando um de seus «acenantes mensageiros» no vértice de cada triângulo, em cuja base, para um lado está a mensagem, e para outro, o intérprete. Sem mensageiro não haveria mensagem, sem mensagem não careceríamos de intérprete. Mas que é do mensageiro? Sabemos só que mensagem não haveria sem mensageiro. Imaginemos a catástrofe: dois lados do triângulo se abatem sobre a base. O mensageiro (que estava no vértice) ficou algures, na linha da base, conforme a espécie de que for o triângulo: no meio, entre a mensagem e o intérprete, mais perto do intérprete do que da mensagem, ou mais chegado à mensagem do que ao intérprete, ou, ainda, mais além da mensagem ou mais aquém do intérprete. Supondo que o triângulo cosmogônico seja equilátero, o mensageiro está no intérprete e na mensagem, na mensagem-lida pelo homem e no homem-leitor da mensagem. Em qualquer caso, o mensageiro não deixou de ser, e, com ele, o triângulo. Uma das mais elementares figuras da geometria elementar bem nos afigura como a cosmofania pode ser teocriptia.
Supomos que o triângulo é equilátero. Mas de que nos serve a «catástrofe» (o abatimento dos lados sobre a base), o que não está previsto no que antecedia, nem era previsível pela coerência da imagem geométrica? É simples antecipação do que virá a dar-se, uma vez que homens e mundos se convertam em Homem e Mundo. Com uma reserva evidente: depois desta conversão diabólica, Deus ou o deus perde-se dos dois lados, Homem e Mundo perderam-se da Divindade que existia em cada um deles, ao passo que na catástrofe a que me referi, o deus ainda está no homem e no mundo, embora tão invisível como ponto que se sobrepõe a ponto. Por outras palavras, no primeiro caso, temos só um segmento de reta, do qual ninguém pensa que seja a base de um triângulo; é só figura da separação ou da união do Homem com o Mundo ou do Mundo com o Homem; no segundo caso, vemos no mesmo segmento a base de um triângulo, e, sobre ela, [78] seus lados abatidos, e o deus que estava no vértice cai, ao mesmo tempo, para o extremo da base, que disséramos ser mundo, e para o oposto, que disséramos ser homem; e porque um ponto não se divide, ele está todo (hão há metade de um ponto) no mundo deste homem e no homem deste mundo. Mas agora vemos que o homem e mundo co-pertinentes, co-pertinentes também são deste deus, pois também vemos agora que o mesmo deus (o vértice), sobrepondo-se a homem e mundo, num e noutro se oculta (não se distingue ponto que a ponto se sobreponha). Mais uma vez, cosmofania (com sua componente antrópica) é teocriptia. O deus está invisível no mundo–mensagem; o mesmo está invisível no homem–intérprete. Através do homem, o mensageiro lê-se na mensagem que é mundo dele, como dele é a outra parte da mensagem, de que se fez intérprete, intérprete de si e do mundo, e do projeto do mundo e de si.
O particular que seja qualquer dos triângulos, qualquer das triangulações cosmogônicas é a síntese dele mesmo e do geral que é o Triângulo Primeiro, em cujo vértice está o Absoluto de além–horizonte e em cuja base se opõem Céu e Terra, no aquém-horizonte. Cada triângulo é símbolo, não porque imite um modelo e, como imitação, aponte para o imitado, mas porque o repete na semelhança, porque em cada um deles se vê a imagem dos outros, porque um é tanto e tal quanto e qual os outros são, incluindo, entre estes outros, o Primeiro. É símbolo, visto do vértice para a base, é complementaridade, visto da base para o vértice. O simbólico e o complementar figuram-se ou configuram-se na figura do triângulo. Na catástrofe cifra-se a teocriptia cosmogônica (e antropogônica): o deus–projeto de homem e mundo oculta-se, todo ele, em mundo e homem; por isso, o mito ou o mítico não é biografia dos deuses. Mesmo quando pareça sê-lo, o que na realidade e na verdade é, por mais mítico que seja, só pode ser «Kosmomythia» ou «anthropomythia», mito do mundo e mito do homem deste mundo; só que o deus oculto num e noutro, a um e outro potência de divindade, penetra-os de divindade, impregna-os de divindade. Um e outro são divinos, por mundanos e humanos que pareçam. O que, em última análise, significa que, vistos da linha que figura a catástrofe final, de qualquer ponto daquele segmento de reta que une e aparta Homem e Mundo, daquele segmento em que tão poucos veem a base do triângulo cosmogônico, homem e mundo nos aparecem como sendo mais do que parecem, e o mais do que parecem vem-lhes da divindade [79], do «oculto reinar», do deus–projeto de homem e mundo [v. projeto], do triângulo cosmogônico em cujos vértices estão o incontido excesso do deus, a humana incontinência do excesso e a momentaneamente contida excedência que é o mundo. O que é divino, em homem e mundo, é a Excessividade. A potência oculta no mundo e no homem, em tudo o que está em homem e mundo, é a do excessivo em que submergem todos os limites. [EudoroMito:77-80]