transcendência

Do latim “transcendere”, etimologicamente significa a ação de “transcender, superar”. Este significado fundamental varia de muitas maneiras, consoante o domínio a que o termo se aplica. — Do ponto de vista epistemológico, transcendência (1) significa independência de consciência. O objeto transcende o ato cognitivo, contrapõe-se a ele como algo independente, não como algo só posto pelo ato. Isto dá-se já dentro da autoconsciência: um ato cognoscitivo orientado a compreender um ato volitivo encontra este como algo independente dele. Com dobrada razão o mundo exterior transcende toda nossa consciência, a qual se dirige a ele como a algo já existente. — “Em relação à nossa experiência, transcendente significa o supra sensível e o inexperimentável. O âmago essencial das coisas visíveis e toda a ordem espiritual transcendem nossa experiência sensóriointuitiva: são, portanto, supra-sensíveis = transcendentes (2), mas não absolutamente inexperimentáveis, porque mediante a reflexão experimentamos nosso pensar e querer em sua existência, embora não em sua espiritualidade. Também no que diz respeito às essências podemos falar de experiência, na medida em que primariamente refulgem enquadradas totalmente na intuição. Contudo, as essências, desligadas do sensível, bem como as leis e o espiritual como tal, transcendem toda experiência, porque só são acessíveis num novo ato apreensivo que se situa em frente dela (abstração explícita, intelecção da essência, consequência de um raciocínio.). Convém-lhes também a transcendência (3) no sentido de in-experimentabilidade. O pensamento dirigido ao inexperimentável chama se especulação.

Na ordem do ser, transcendência (4) significa supramundanidade. A alma humana participa já desta, na medida em que, mercê de sua espiritualidade, transcende o mundo visível, apesar de permanecer inserta nele como forma essencial do corpo. O puro espírito, que não é parte nem membro do mundo, exprimi; plenamente a supra-mundanidade. Incomparável é a transcendência (5) ou supra-mundanidade de Deus, cuja infinidade sobrepuja, de modo inefável, o mundo e tudo quanto é finito; transcendência, à qual, não obstante, se une, em virtude da mesma infinidade, uma imanência igualmente incomparável. — A transcendência (4 e 5), reflui para a transcendência (2 e 3), porque a supra-mundanidade traz consigo também uma rigorosíssima supra sensibilidade e inexperimentabilidade. Considerada do ponto de vista lógico, a transcendência (6) convém àqueles conceitos universalíssimos que transcendem todas as categorias e, em geral, todas as ordens particulares, envolvendo absolutamente tudo dentro de sua extensão. Trata-se, neste caso, do ser e dos chamados transcendentais. — Mencionemos aqui, só de passo, a transcendência matemática (7), que se atribui a uma quantidade que ultrapassa os limites do algébrico, p. ex., o número.

Na atualidade, a filosofia existencial (filosofia da existência) descobriu de novo a transcendência. Jaspers fala do ser como do “envolvente” e faz que a existência humana se constitua pela transcendência, isto é, por sua abertura ao Absoluto. Heidegger entende a transcendência como elevação do ente isolado ao mundo em geral, ao ente-no-todo, a “o” ser, embora não determine o que seja este ser. — Lötz. [Brugger]


(in. Trancendence; fr. Transcendance; al. Transzendez; it. Trascen-denzd). Esse termo foi usado com dois significados diferentes: 1° estado ou condição do princípio divino, do ser além de tudo, de toda experiência humana (enquanto experiência de coisas) ou do próprio ser; 2° ato de estabelecer uma relação que exclua a unificação ou a identificação dos termos.

1) No primeiro sentido, esse termo vincula-se à concepção neoplatônica de divindade. Platão já dissera que o Bem, como princípio supremo de tudo o que é, comparável como tal ao sol que dá vida às coisas e as torna visíveis, está além da substância (epekeina tes ousias, República, VI, 509 b). A exemplo de Platão, Plotino repete que o Uno está “além da substância” (Enn., VI, 8, 1 9), mas acrescenta que ele também está “além do ser” (epekeina ontos, Ibid., V, 5, 6) e “além da mente” (epekeina nou, Ibid., III, 8, 9), de tal modo que é transcendente (hyperbebekos) em relação a todas as coisas, mesmo produzindo-as e conservando-as no ser (Ibid., V, 5, 12). Proclo diz: “Além de todos os corpos está a substância da alma; além de todas as almas, a natureza inteligível; além de todas as substâncias inteligíveis, está o Uno” (Inst. theol., 20). Escoto Erigena e outros usaram o termo supra-ente para designar a transcendência absoluta, graças à qual Deus está além de todas as determinações concebíveis, até mesmo do ser ou da substância. Nem sempre, porém, a transcendência é levada ao ponto de situar Deus além do ser, transformando-o de algum modo em “nada”. A escolástica clássica, reconhecendo a analogicidade do ser, não põe Deus além do próprio ser: esta forma de transcendência é, ao contrário, própria da teologia negativa ou mística (v. teologia, 4). Fora da teologia, essa espécie de transcendência foi reconhecida por Jaspers, que a contrapôs à existência: transcendência é o que está além da possibilidade de existência, é o ser que nunca se resolve no possível e com o qual a única relação que o homem pode ter consiste na impossibilidade de alcançá-lo. Nesse sentido, a transcendência se manifesta sob forma de cifra nas situações-limite e não pode ser caracterizada nem como “divindade”, sem incidir na superstição. A única certeza que se pode ter em relação à transcendência é que “o ser é, e é assim” (Phil., III, p. 134).

Entrementes, as correntes realistas da filosofia contemporânea atribuíam transcendência às coisas, aos objetos do conhecimento em geral ou ao ser de tais objetos. Nesse sentido, Husserl negava que uma coisa pudesse ser dada como imanente em qualquer percepção ou consciência, e definia o ser da coisa como ser transcendente, que é mais ou menos sombreado pelas aparições da coisa à consciência (ldeen, I, § 41). N. Hartmann insistia na transcendência do ser em relação ao conhecimento, porquanto o ser fica sempre além do objeto cognitivo imanente (Metaphysik der Erkenntniss, 2a ed., 1925, p. 50). No mesmo sentido, a transcendência era combatida pelas várias formas do imanentismo.

2) No segundo significado, transcendência é o ato de se estabelecer uma relação, sem que esta signifique unidade ou identidade de seus termos, mas sim garantindo, com a própria relação, a sua alteridade. Esse conceito também tem origem religiosa e neoplatônica. Plotino dizia que a contemplação é “para quem foi além de tudo” (Enn., VI, 9, 11). Num trecho famoso, S. Agostinho dizia: “Se achares mutável a tua natureza, transcende-te a ti mesmo”, e acrescentava: “Lembra-te de que, ao te transcenderes a ti mesmo, estás transcendendo uma alma racional e que, portanto, deves visar ao ponto do qual provém a luz da razão” (De vera relig., 39).

Esse sentido ativo de transcendência ficou praticamente obliterado na filosofia tradicional e só foi retomado pela filosofia contemporânea. Com referência à transcendência do ser ou da coisa em relação à consciência que a apreende ou ao ato de conhecimento que é seu objeto, a própria consciência ou o ato de conhecimento foram chamados de transcendentes. Assim, Husserl fala de percepção transcendente, que tem a coisa por objeto e em relação à qual a coisa é transcendente, o que difere da percepção imanente, que tem por objeto as experiências conscientes que são imanentes à própria percepção (Ideen, I, § 42, 46). N. Hartmann baseou o seu realismo no conceito de transcendência: “O conhecimento não é um simples ato de consciência, como o representar e o pensar, mas um ato transcendente. Um ato desses se liga ao sujeito só por um lado, mas por outro fica fora; por este último, liga-se ao existente, que, graças a ele, se torna objeto. O conhecimento é uma relação entre um sujeito e um objeto existente. Nessa relação, o ato transcende a consciência” (Systematische Philosophie, § 11). No mesmo sentido ele chama de transcendente a relação cognoscitiva (Ibid., § 10). No entanto, a mais importante utilização do conceito nesse sentido foi a de Heidegger, que definiu como transcendente a relação entre o homem (Dasein, ser-aí) e o mundo. “O ser-aí que transcende (eis uma expressãopor si tautológica) não ultrapassa nem um obstáculo anteposto ao sujeito de tal modo que o obrigue a permanecer em si mesmo (imanência), nem um fosso que o separaria do objeto. Por sua vez, os objetos (entes que lhe estão presentes) não são aquilo em cuja direção ocorre a ultra-passagem. O que é ultrapassado é unicamente o ente, ou seja, qualquer ente que possa ser revelado ou revelar-se ao ser-aí, portanto o ente que o ser-aí é, enquanto, existindo, é ele mesmo” (Vom Wesen des Grundes, 1929, II). Em outros termos, é pelo ato de transcendência que o homem, como ente no mundo, se distingue dos outros entes ou objetos e se reconhece como “ele mesmo”. Heidegger, portanto, considera a transcendência como o significado do ser no mundo. “Quem ultrapassa e, portanto, vai além, deve como tal sentir-se situado no ente. O ser-aí, na medida em que se sente como tal, está incluído no ente de tal modo que, reabarcado nele, é por ele conciliado consigo mesmo. A transcendência é um tal projeto do mundo que quem projeta é dominado pelo ente que transcende e está já de acordo com ele. Com esse ser incluído do ser-aí, ligado com a transcendência, o ser-aí ganhou base no ente, obteve o seu fundamento” (Ibid., III). São características de Heidegger essa reincidência e esse achatamento da transcendência nos objetos transcendidos, do projeto nas suas condições de partida, do possível no efetivo, do futuro no passado. Heidegger chama de decadência ou facticidade essa reincidência ou achatamento. Foi o que fez Sartre, que expressa o mesmo conceito de transcendência afirmando que a consciência (o para-si), ao transcender para o ser (o em-si), está apenas se anulando para revelar e afirmar, através de si, o próprio ser (L’être et le néant, II, cap. III, espec. pp. 268-69). Para uma interpretação da transcendência que fuja ao achatamento ou à nadificação, cf. ABBAGNANO, Struttura dell’esistenza, 1939, § 18; ID., Introduzione all’esistenzialismo, I, 6; etc. [Abbagnano]