Relacionado a isso encontra-se também o fato de que a oposição entre um autêntico pensamento mítico e um pensamento poético pseudomítico é uma ilusão romântica, montada sobre um preconceito do Aufklärung: o de que o fazer poético, pelo fato de ser uma criação da livre capacidade de imaginar, não participa mais da vinculação religiosa do mythos. E a antiga polêmica entre o poeta e o filósofo, que entra agora no seu estágio moderno de fé na ciência. Agora já não se diz que os poetas mentem muito, pois que eles não têm nada de verdadeiro para dizer, já que somente produzem um efeito estético e só pretendem estimular a atividade da fantasia e o sentimento vital do ouvinte ou do leitor através das criações de sua fantasia. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
O atual problema é o de saber como pode se dar um saber filosófico sobre o ser moral do homem. Se o que é bom só aparece na concreção da situação prática em que ele se encontra, então o saber ético deve oferecer, para se haver com a situação concreta, o que é que esta exige dele ou, dito de outro modo, aquele que atua deve ver a situação concreta à luz do que se exige dele em geral. Negativamente isto significa que um saber geral que não saiba aplicar-se à situação concreta permanece sem sentido, e até ameaça obscurecer as exigências concretas que emanam de uma determinada situação. Esta conjuntura, que expressa a própria essência da reflexão ética, não somente converte uma ética filosófica em um problema metódico difícil, mas ao mesmo tempo dá relevância moral ao problema do método. Face à idéia do bem, determinada pela teoria platônica das idéias, Aristóteles enfatiza o fato de que, no terreno do problema ético não se pode falar de uma exatidão, de nível máximo, como a que fornece o matemático. Esse requisito de exatidão, na verdade, estaria fora de lugar. Aqui se trata tão-somente de tornar visível o perfil das coisas e ajudar, de certo modo, a consciência moral com este esboço do mero perfil. Mas o problema de como deve ser possível esta ajuda já é um problema moral. Pois faz parte dos traços essenciais do fenômeno ético, que aquele que atua deve saber e decidir por si mesmo e não permitir que lhe arrebatem essa autonomia por nada. Portanto, o que não pretenda intrometer-se no lugar da consciência moral, nem tampouco ser um conhecimento moral a esclarecer-se a si mesma graças a esse esclarecimento do perfil dos diversos fenômenos. Naquele que há de receber essa ajuda — o ouvinte da lição aristotélica — isto supõe um montão de coisas. Tem de possuir tanta maturidade existencial, que possa não esperar da indicação que se lhe oferece mais do que esta pode e deve dar. Ou, formulado positivamente: por educação e exercício ele já deve ter desenvolvido uma determinada atitude em si mesmo, e seu empenho constante deve ser mantê-lo ao largo das situações concretas de sua vida e conservá-la [319] através de um comportamento correto. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Se quisermos determinar corretamente o conceito de pertença, de que se trata aqui, será conveniente que observemos a dialética peculiar, contida no ouvir. Não se trata somente de que aquele que ouve é de algum modo interpelado. Antes, nisso está o fato de que quem é interpelado tem de ouvir, queira ou não. Não pode apartar seus ouvidos, tal como se aparte a vista de outra coisa, olhando numa determinada direção. Essa diferença entre ver e ouvir é para nós importante, porque ao fenômeno hermenêutico subjaz uma verdadeira primazia do ouvir, como Aristóteles já reconhece. Não há nada que não seja acessível ao ouvido através da linguagem. Enquanto nenhum dos demais sentidos participa diretamente na universalidade da experiência lingüística do mundo, já que cada um deles abarca tão-somente o seu campo específico, o ouvir é um caminho rumo ao todo, porque está capacitado para escutar o logos. À luz da nossa colocação hermenêutica, esse velho conhecimento da primazia do ouvir sobre o ver alcança um peso novo. A linguagem, na qual o ouvir participa, não é somente universal no sentido de que nela tudo pode vir à fala. O sentido da experiência hermenêutica reside, antes, no fato de que, face a todas as formas de experiência no mundo, a linguagem põe a descoberto uma dimensão completamente nova, uma dimensão de profundidade, a partir da qual a tradição alcança os que [467] vivem no presente. Tal é a verdadeira essência do ouvir, já desde tempos remotos, e inclusive antes da escrita: O ouvinte está capacitado a ouvir a lenda, o mito, a verdade dos antepassados. A transmissão literária da tradição, como a conhecemos, não significa, face a isso, nada de novo, apenas altera a forma e dificulta a tarefa do verdadeiro ouvir. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.
Mas, para não falarmos sempre apenas desse sentido mais extremo e profundo de diálogo, devemos também considerar diversas formas de diálogo que ocorrem em nossa vida, agora ameaçados como discutimos em nosso tema. O primeiro é o diálogo pedagógico. Não que merecesse por si uma primazia especial, mas nele mostra-se de modo especial o que pode estar por trás da experiência da incapacidade para o diálogo. O diálogo entre professor e alunos é certamente uma das formas mais primitivas de experiência de diálogo, e aqueles carismáticos do diálogo de que falamos acima são todos mestres e professores que ensinam seus discípulos ou alunos através do diálogo. Na situação do professor reside uma dificuldade peculiar em manter firme a capacidade para o diálogo, na qual a maioria sucumbe. Aquele que tem que ensinar acredita dever e poder falar, e quanto mais consistente e articulado por sua fala, tanto [212] mais imagina estar se comunicando com seus alunos. É o perigo da cátedra que todos conhecemos. Recordo-me de meu tempo de estudante de um seminário que fiz com Husserl. Sabemos que o exercício do seminário costuma conter o máximo de diálogo investigativo possível e o mínimo possível de diálogo pedagógico. Husserl, que nos primeiros vinte anos como mestre de fenomenologia em Friburgo sentia-se movido por um profundo impulso missionário e exercia na realidade uma atividade filosófica de ensino muito significativa, não era nenhum mestre do diálogo. Ele abria aqueles seminários com uma questão inicial, recebia uma resposta curta e movido por essa prosseguia seu monólogo por duas horas seguidas. Quando ao final da reunião saía da sala junto com seu assistente, Heidegger, dizia a este último: “hoje, sim, tivemos realmente um debate animado”. São experiências desse tipo que nos dias de hoje colocaram em crise as preleções acadêmicas. A incapacidade para dialogar dá-se principalmente por parte do professor, e sendo o professor o autêntico transmissor da ciência, essa incapacidade radica-se na estrutura de monólogo da ciência moderna e da formação teórica. Em escolas superiores têm-se feito repetidas tentativas de animar as preleções através do debate, fazendo-se também a experiência contrária de que a passagem da posição receptiva de ouvinte para a iniciativa da pergunta e da oposição é extremamente difícil e raras vezes alcança êxito. Por fim, na situação de ensino, quando esta ultrapassa a intimidade de um pequeno círculo, reside uma dificuldade intransponível para o diálogo. Platão já sabia disso: o diálogo jamais se torna possível com muitas pessoas, nem pela simples presença de muitos. Nossas experiências com os chamados fóruns de conversação, esses diálogos em mesas semi-redondas, são também diálogos semimortos. Há também outras situações de diálogo autênticas, isto é, individualizadas, onde o diálogo conserva sua verdadeira função. Gostaria de distinguir três tipos diferentes: O diálogo para negociação, o diálogo terapêutico e o diálogo familiar. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 16.
Mas a oratória como tal está ligada à imediaticidade de seus efeitos. Com profunda erudição, Klaus Dockhorn mostrou em que medida o produzir efeitos se impôs como o mais importante recurso persuasivo desde Cícero e Quintiliano até a retórica política inglesa do século XVIII. Mas o produzir efeitos, enquanto a tarefa essencial do orador, tem muito pouca influência quando se trata da expressão escrita, a qual se torna objeto do esforço hermenêutico; e é justamente essa diferença que queremos destacar: o orador arrasta o ouvinte. O brilho de seus argumentos deslumbra o ouvinte. A força persuasiva do discurso não deve nem pode admitir a reflexão crítica. A leitura e interpretação do escrito, ao contrário, estão tão distanciadas e afastadas do escritor, de seus humores, de suas intenções e de suas tendências latentes que a apreensão do sentido do texto adquire o caráter de uma produção autônoma que se assemelha mais à arte do discurso do que ao comportamento de seu ouvinte. Compreende-se assim o fato de os recursos teóricos da arte da interpretação serem tomados em grande medida da retórica, como demonstrei em alguns pontos e como expôs Dockhorn numa ampla base. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.
Mesmo assim, a situação hermenêutica na relação social dos interlocutores é bem diferente da que se dá na relação analítica. Quando conto um sonho a alguém sem ser movido por uma intenção analítica ou por meu papel de paciente, a comunicação não tem o sentido de introduzir uma interpretação analítica do sonho. Se fizer isso, o ouvinte não atina com o scopus hermenêutico. A intenção é antes compartilhar os jogos inconscientes da própria fantasia onírica, do mesmo modo que na fantasia por exemplo participamos das lendas ou no caso da imaginação poética. Essa reivindicação hermenêutica é legítima e nada tem a ver com a resistência que é um fenômeno bem conhecido dentro da análise. É perfeitamente justificável rechaçar a atitude de alguém que não leve em conta essa situação hermenêutica descrita e, em vez de compreender por exemplo as poesias oníricas de Jean Paul como jogos significativos da imaginação, trata de interpretá-los como uma [260] gravidade significativa do simbolismo inconsciente de uma biografia entulhada. É oportuna aqui a crítica hermenêutica à legitimidade da psicologia profunda, e não se limita de modo algum a fantasias estéticas. Quando alguém, por exemplo, procura convencer argumentativamente um outro sobre uma questão política, tomado de uma emoção apaixonada e uma veemência beirando a irritação, sua pretensão hermenêutica será escutar contra-argumentos e não ver suas emoções serem analisadas por vias da psicologia profunda, segundo a máxima de que “quem se irrita jamais tem razão”. Mais adiante voltaremos a discutir essa relação entre reflexão psicanalítica e hermenêutica e os perigos de uma confusão desses dois “jogos de linguagem”. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.
Uma das teses do Platão mais autêntico (tese que Aristóteles comentou e buscou fundamentar) também é que a essência da retórica não se esgota nessas artes que se podem formular como regras técnicas. Aquilo que fazem os mestres de retórica, criticados por Platão no Fedro, é algo que está “aquém” da verdadeira arte. Pois a autêntica arte da retórica é inseparável do conhecimento da verdade e do conhecimento da “alma”. Platão refere-se ao estado anímico do ouvinte, cujos afetos e paixões o discurso deve despertar para poder persuadir. Esse é o ensinamento do Fedro, e toda a retórica segue assim o princípio do argumentum ad hominem no trato cotidiano com as pessoas até os nossos dias. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 20.
Não é por acaso que a palavra “literatura” conservou um sentido axiológico, de forma que a pertença a ela representa uma característica distintiva. Um texto desse gênero não significa a mera fixação de um discurso, mas possui sua própria autenticidade. Se o caráter do discurso consegue fazer com que o ouvinte ultrapasse o próprio discurso, ouvindo através dele e centrando sua atenção no que o discurso lhe comunica, esse fato põe de manifesto o que é a linguagem ela mesma. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Nesse sentido, a palavra singular como portadora de seu significado e como co-portadora do sentido discursivo é apenas um momento abstrato do discurso. Tudo deve ser visto no âmbito mais amplo da sintaxe. Tratando-se de um texto literário, é uma sintaxe que não é tal incondicionalmente nem tampouco segundo a gramática usual. Assim como o orador lança mão de liberdades sintáticas outorgadas pelo ouvinte, na medida em que este está em sintonia com todas as modulações e gesticulações do orador, também o texto literário — com todos os matizes que ostenta — possui suas próprias liberdades. Essas liberdades se encaixam na realidade sonora que reforça o sentido do conjunto do texto. De certo, já no âmbito da prosa corrente supõe-se que um discurso não é um “escrito”, tampouco como uma conferência é uma aula, um paper. Isso fica ainda mais acentuado no caso da literatura, no sentido eminente da palavra. Ela supera a abstração do escrito não somente porque o texto seja legível, quer dizer, compreensível em seu sentido. Um texto literário possui um status próprio. Sua presença como texto estruturado na linguagem exige uma repetição da literalidade original. Isso sem recorrer a uma linguagem originária, mas na medida em que inaugura uma linguagem nova e ideal. A trama das referências de sentido nunca se esgota nas relações existentes entre os significados principais das palavras. Justamente as relações de significado anexas, que não aparecem ligadas à teleología de sentido, conferem sua magnitude (Volumen) à frase literária. Tais relações não se dariam se o conjunto do discurso por assim dizer não se mantivesse de pé por si só, se convidasse à quietude e impedisse o leitor ou o ouvinte de tornar-se cada vez mais ouvinte. Mas, apesar disso, como toda audição, esse tornar-se ouvinte é sempre um ouvir algo, que entende o que ouviu como a figura de sentido de um discurso. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
No fundamental, a arte de recitar tampouco é diferente. Necessita apenas de uma técnica especial, porque os ouvintes são pessoas anônimas e o texto poético exige sua realização em cada ouvinte. Encontramos aqui algo parecido com o que acontece quando soletramos, a saber, a recitação mecânica. Declamar mecanicamente não é falar, mas alinhar fragmentos de sentido, um atrás do outro. Um exemplo claro é o das crianças que aprendem versos de memória e os “recitam”, para a alegria dos pais. Quem é realmente capaz de recitar ou é um artista da recitação, ao contrário, tornará presente uma figura global de linguagem, do mesmo modo que o ator deve criar as palavras de seu personagem como se as encontrasse no ato. Não poderá ser uma série de retalhos de fala, mas um todo, composto de sentido e som, que “se sustenta por si”. Por isso o falante ideal não pode fazer-se presente a si mesmo, mas unicamente ao texto, que deve tornar-se acessível inclusive a um cego, incapaz de ver seus gestos. Disse Goethe certa vez: “Não há maior nem mais puro prazer do que fechar os olhos e ouvir recitar — não declamar — um fragmento de Shakespeare, entoado com uma voz natural perfeita”. Podemos perguntar, no entanto, se a recitação é possível com qualquer tipo de textos poéticos; por exemplo, quando se trata de poesia para meditação. Este problema surge também na história dos gêneros da lírica. A lírica coral e o canto em geral, que convida a cantar junto, é algo totalmente distinto do tom elegíaco. A poesia para meditação somente parece possível na pura solidão. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
A motivação moral contida no conceito do common sense ou do bon sens permaneceu ativa até os nossos dias e diferencia esses conceitos do nosso conceito da “compreensão humana sadia”. Cito, como exemplo, o belo discurso que Henri Bergson fez em 1895, sobre o bon sens, por ocasião da homenagem que lhe foi prestada na Sorbônia. Sua crítica às abstrações da ciência da natureza, bem como às da linguagem e do pensamento jurídico, seu tempestuoso apelo à “energia interior de uma inteligência, que a todo momento se reconquista sobre si mesma, eliminando as idéias feitas para deixar espaço livre para as idéias que se fazem” (88), tudo isso pôde, na França, ser batizado sob a denominação de bon sens. A determinação desse conceito continha, como é natural, uma referência aos sentidos, mas para Bergson é evidente que, diferentemente dos sentidos, o bon sens se refere ao milieu social (meio social). “Enquanto que os outros sentidos nos colocam em relação com coisas, o bom senso preside nossas relações para com pessoas” (85). Ele é uma espécie de gênio para a vida prática, mas menos um dom (Gabe) do que a permanente tarefa (Aufgabe) de “ajustamento sempre novo de situações sempre novas, uma espécie desadaptação dos princípios gerais à realidade, através da qual se realiza a justiça, um “tato da verdade prática”, uma “retidão de juízo, que provém da retitude da alma” (88). O bons sens é, segundo Bergson, enquanto a fonte comum do pensamento e do querer, em sens social, que tanto evita o erro dos dogmáticos científicos, que estão à busca de leis sociais, como o dos utopistas metafísicos. “Falando mais propriamente, talvez não exista mais método, mas antes, um certo modo de fazer.” É verdade que Bergson fala sobre o significado dos estudos clássicos para o aperfeiçoamento desse bon sens — ele vê neles o empenho de romper o “gelo das palavras” e para descobrir, sob elas, a corrente livre do pensamento (91) — mas é claro que ele não coloca a pergunta contrária, ou seja, até que ponto é necessário o bon sens para os próprios estudos clássicos, isto é, não fala de sua função hermenêutica. Sua pergunta não se dirige, de forma alguma, às ciências, mas, sim, ao sentido independente do bon sens para a vida. Nós sublinhamos apenas a evidência, para ele e seus ouvintes, o sentido moral–político desse conceito assume a liderança. VERDADE E MÉTODO PRIMEIRA PARTE 1.
Essas observações pareceriam contraditas pelo fato de que na dialética socrático-platônica a arte do perguntar se eleva a um domínio consciente. Não obstante, também esta arte é uma coisa peculiar. Já havíamos visto que ela está reservada àquele que quer saber, isto é, àquele que já tem perguntas. A arte de perguntar não é a arte de esquivar-se da coerção das opiniões; ela pressupõe essa liberdade. Nem sequer é uma arte no sentido em que os gregos falavam de techne, não é um saber que se possa ensinar e através do qual podemos nos apoderar do conhecimento da verdade. O chamado excurso epistemológico da sétima carta está orientado, antes, precisamente no sentido de destacar esta arte peculiar da dialética em seu caráter único, face a tudo o que se pode ensinar e aprender. A arte da dialética não é a arte de ganhar de todo mundo na argumentação. Pelo contrário, é perfeitamente possível que aquele que é perito na arte dialética, isto é, na arte de perguntar e buscar a verdade, apareça aos olhos de seus ouvintes como o menos indicado a argumentar. A dialética, como arte do perguntar, só pode se manter, se aquele que sabe perguntar é capaz de manter em pé suas perguntas, isto é, a orientação para o aberto. A arte de perguntar é a arte de continuar perguntando; isso significa, porém, que é a arte de pensar. Chama-se dialética porque é a arte de conduzir uma autêntica conversação. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Em si, todo escrito levanta a pretensão de ser alentado por si mesmo no lingüístico, e esta pretensão de autonomia de sentido vai tão longe que inclusive uma leitura autêntica, por exemplo, a de um poema pelo seu autor se torna questionável, no momento em que a intenção dos ouvintes se afasta do ponto a que nós, como aqueles que compreendem, realmente estamos orientados. Posto que o que importa é a comunicação do verdadeiro sentido de um texto, sua interpretação se encontra submetida a uma norma que se pauta no assunto em questão. E esta a exigencia que coloca a dialética platônica, quando procura fazer valer o logos como tal, e deixa, às vezes, para trás o seu companheiro real de diálogo no curso desse empenho. E mais, a debilidade específica da escrita, sua maior necessidade de auxílio, em comparação com o falar vivo, tem como reverso o fato de que faz sobressair a tarefa hermenêutica da compreensão com dobrada clareza. Tal como na conversação, também aqui a compreensão tem que tentar fortalecer o sentido do que foi dito. O que se diz no texto tem de ser despojado de toda a contingência que — lhe é inerente, e entendido na plena idealidade em que unicamente tem seu valor. Por isso a fixação por escrito permite que o leitor compreensivo possa erigir-se em advogado de sua pretensão de verdade, precisamente porque separa por completo o sentido do enunciado aquele que enuncia. É assim como o leitor experimenta, em sua validez, o que lhe fala e o que ele compreende. Por sua vez, aquilo que ele compreendeu será sempre mais que uma opinião estranha: já será sempre uma possível verdade. Isto é o que emerge em virtude da liberação do dito com respeito a quem o disse e em virtude do status de duração que lhe confere a escrita. E o fato de que pessoas pouco acostumadas à leitura nunca cheguem inteiramente à suspeita de que algo escrito possa ser falso, tem, como já vimos , uma razão hermenêutica profunda, pois para eles todo escrito é uma espécie de documento que se avaliza a si mesmo. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.
À primeira vista, o fato de que não se deva introduzir num texto nada que não pudesse ter tido em mente o autor e o leitor, soa como um cânon hermenêutico da razão, que, enquanto tal, também é reconhecido geralmente. E, no entanto, somente nos casos mais extremos pode-se realmente aplicá-lo. Os textos não querem ser entendidos como expressão vital da [399] subjetividade de seu autor. Por conseqüência, não é a partir daí que podem ser traçados os limites de seu sentido. Todavia, o duvidoso não é somente a limitação do sentido de um texto às verdadeiras idéias do autor. Ainda quando se procura determinar objetivamente o sentido de um texto, entendendo-o como alocução contemporânea e referindo-o a seu leitor original, como fazia a premissa básica de Schleiermacher, tampouco se conseguirá ir mais além de uma delimitação casual. O próprio conceito do destinatário contemporâneo não pode ter mais que uma validez crítica limitada. Pois, o que quer dizer contemporaneidade? Os ouvintes de anteontem, tal como os de depois de amanhã, continuam pertencendo aos que nós falaríamos como contemporâneos. Onde se poderia traçar a fronteira daquele depois de amanhã que exclua a um leitor como possível interlocutor? O que são os contemporâneos, e o que é a pretensão de verdade de um texto, face a esta múltipla confusão de ontem e amanhã? O conceito do leitor originário encontra-se envolto em uma idealização completa e opaca. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 1.