orfismo

(lat. orphismus; in. Orphism; fr. Orphisme; al. Orphismus; it. Orfismó).

Seita filosófico-religiosa bastante difundida na Grécia a partir do séc. VI a.C. e que se julgava fundada por Orfeu. Segundo a crença fundamental dessa seita, a vida terrena era uma simples preparação para uma vida mais elevada, que podia ser merecida por meio de cerimônias e de ritos purificadores, que constituíam o arcabouço secreto da seita. Essa crença passou para várias escolas filosóficas da Grécia antiga (Pitágoras, Empédocles, Platão), mas a importância que alguns filólogos e filósofos dos primeiros decênios do séc. XX atribuíram ao orfismo na determinação das características da filosofia grega já não é reconhecida por ninguém. Cf. O. Kern, Orphicorum fragmenta, Berlim, 1923; I. M. Linforth, The Arts of Orpheus, 1941. [Abbagnnao]


O orfismo e os órficos derivam seu nome do poeta trácio Orfeu, seu fundador presumido, cujos traços históricos são inteiramente recobertos pela névoa do mito. O orfismo é particularmente importante porque, como os estudiosos modernos reconheceram, introduz na civilização grega um novo esquema de crenças e uma nova interpretação da existência humana. Efetivamente, enquanto a concepção grega tradicional, a partir de Homero, considerava o homem como mortal, colocando na morte o fim total de sua existência, o orfismo proclama a imortalidade da alma e concebe o homem segundo um esquema dualista que contrapõe o corpo à alma.

O núcleo das crenças órficas pode ser resumido como segue:

a) No homem se hospeda um princípio divino, um demônio (alma) que caiu em um corpo em virtude de uma culpa original.

b) Esse demônio não apenas preexiste ao corpo, mas também não morre com o corpo, estando destinado a reencarnar-se em corpos sucessivos, através de uma série de renascimentos, para expiar aquela culpa original.

c) Com seus ritos e suas práticas, a “vida órfica” é a única em condições de pôr fim ao ciclo das reencarnações, libertando assim a alma do corpo.

d) Para quem se purificou (os iniciados nos mistérios órficos) há um prêmio no além (da mesma forma que há punição para os não iniciados).

Em algumas tabuinhas órficas encontradas nos sepulcros de seguidores dessa seita, entre outras, podem-se ler estas palavras, que resumem o núcleo central da doutrina: “Alegra-te, tu que sofreste a paixão: antes, não a havias sofrido. De homem, nasceste Deus!”; “Feliz e bem-aventurado, serás Deus ao invés de mortal!”; “De homem, nascerás Deus, pois derivas do divino!” O que significa que o destino último do homem é o de “voltar a estar junto aos deuses”.

A ideia dos prêmios e castigos de além-túmulo, evidentemente, nasceu para eliminar o absurdo que frequentemente se constata sobre a terra, isto é, o fato de que os virtuosos sofrem e os viciosos gozam. A ideia da reencarnação (metempsicose), ou seja, da passagem da alma de um corpo para outro, como nota E. Dodds, talvez tenha nascido para explicar particularmente a razão pela qual sofrem aqueles que parecem inocentes. Na realidade, se cada alma tem uma vida anterior e se há uma culpa original, então ninguém é inocente e todos pagam por culpas de gravidades diversas, cometidas nas vidas anteriores, além da própria culpa original: “E toda essa soma de sofrimentos, neste mundo e no outro, é só uma parte da longa educação da alma, que encontrará o seu termo último em sua libertação do ciclo dos nascimentos e em seu retorno às origens. Somente desse modo e sob o metro do tempo cósmico é que se pode realizar completamente para cada alma a justiça entendida no sentido arcaico, isto é, segundo a lei de que quem pecou, tem de pagar” (E. Dodds).

Com esse novo esquema de crenças, o homem via pela primeira vez contraporem-se em si dois princípios em contraste e luta: a alma (demônio) e o corpo (como tumba ou lugar de expiação da alma). Rompe-se assim a visão naturalista: o homem compreende que algumas tendências ligadas ao corpo devem ser reprimidas, ao passo que a purificação do elemento divino em relação ao elemento corpóreo torna-se o objetivo do viver.

Uma coisa deve-se ter presente: sem orfismo não se explicaria Pitágoras, nem Heráclito, nem Empédocles e, sobretudo, não se explicaria uma parte essencial do pensamento de Platão e, depois, de toda a tradição que deriva de Platão, o que significa que não se explicaria uma grande parte da filosofia antiga, como poderemos ver melhor mais adiante. [Reale]