(gr. kinesis; lat. motus; in. Motion; fr. Mouvement; al. Bewegung; it. Movimento).
1. Em geral, mudança ou processo de qualquer espécie. Esse significado corresponde ao do termo grego. Platão distinguia duas espécies de movimento: alteração e translação (Teet., 181 d); Aristóteles distinguia quatro: além dos dois acima, o movimento substancial (geração e corrupção) e o movimento quantitativo (aumento e diminuição) (Fís., III, 1, 201 a 10). Para as espécies particulares do movimento, v. os verbetes relativos.
O movimento em geral foi definido por Aristóteles como “a enteléquia daquilo que está em potência” (Fís., III, 1, 201 a 10): definição que permaneceu célebre durante séculos. Significa que movimento é a realização do que está em potência: p. ex., a construção, a aprendizagem, a cura, o crescimento, o envelhecimento são realizações de potencialidades (Ibid., 201 a 16). No movimento assim entendido a parte fundamental é a do motor, com cujo contato é gerado o movimento “Qualquer que seja o motor” — diz Aristóteles — “ele sempre trará uma forma (substância particular, qualidade ou quantidade) que será principio e causa do movimento, quando o motor mover, do mesmo modo como, no homem, a enteléquia faz o homem do homem em potência” (Ibid., III, 2, 202 a 8). A física aristotélica é, do princípio ao fim, uma teoria do movimento nesse sentido (v. física). Seu teorema fundamental, “tudo o que se move é movido por alguma coisa” (Ibid., VII, 1, 256 a 14), leva à teoria do Primeiro Motor imóvel do universo (v. provas de Deus).
2. Em sentido específico, movimento local ou translação. Aristóteles afirma a prioridade desse movimento sobre os outros três, que podem ser reduzidos a este último, único que pode pertencer às coisas eternas, aos astros (Fis., VIII, 7, 260 b). Segundo Aristóteles, as espécies do movimento local caracterizam os elementos do universo, inclusive o que constitui as substâncias celestes, ou seja, o éter que se move em movimento circular (v. física). Essa doutrina do movimento permaneceu inalterada muito tempo porque toda a filosofia antiga e medieval repetiu-a sem modificações substanciais. Uma teoria do movimento que teve êxito no último período da escolástica foi a da forma fluente, elaborada por Duns Scot. Segundo Duns Scot, um corpo que se move adquire alguma coisa: a todo instante não o lugar, que não é um atributo seu, residindo nos corpos que o circundam, mas uma espécie de determinação qualitativa, análoga ao calor adquirido pelo corpo que se aquece. Essa determinação é o onde (ubi). O movimento, portanto, é a perda ou a aquisição contínua do onde e nesse sentido é uma “forma fluente” (Quodl, q. 11, a. 1). Essa doutrina foi criticada pela escolástica dos fins dos sécs. XIII e XIV. Ockham submeteu-a a crítica radical, considerando o movimento como a mudança de relação de um corpo com os corpos que o circundam (Quodl., VII, q. 6). Este era o conceito que a ciência deveria fazer prevalecer na Idade Moderna. Descartes expressou-o do seguinte modo: “movimento é o transporte de uma parte da matéria ou de um corpo da proximidade dos corpos que o tocam imediatamente, e que consideramos em repouso, para a proximidade de outros corpos” (Princ. phil, II, 25). Sobre o conceito do movimento na ciência contemporânea, v. relatividade. [Abbagnano]
Na concepção aristotélico-tomista, moção é “o ato do que é em potência enquanto tal”, ou seja, a passagem da potência ao ato. Essa passagem que é o devir, é moção. Nesse caso poderíamos dizer amplamente sobre a moção, que é o produzir-se de uma variância de modos de ser ou ainda de relações. Sempre que um modo de ser passa a outro (de potência para ato) ou quando atualiza as possibilidades relacionais, pela variação de relações, dos acidentes e das modais, há sempre moção.
Nesse sentido amplo inclui-se o sentido restrito e mecânico de movimento como a transladação contínua no espaço em função do tempo, e com uma velocidade definida consequentemente. Este é o movimento local, tópico. O conceito genérico de moção contém o de movimento. Moção implica também variância de modos de ser ou ainda de relações. O movimento é atualização da moção tópica, é uma modal.
A moção se dá do sujeito no sujeito, da forma à forma, mas sempre do contrário ao contrário. O movimento é o ato do móvel, enquanto móvel; é o ato médio entre potência e ato. Desta forma o movimento está no móvel e é requerido, no móvel, dois contrários, um antes e um depois. O movimento não é um ser de per si subsistente, mas em outro. É uma modal como nos mostra Suarez. Pelo movimento conhecemos o tempo, pois é ele que o determina para nós. Serve para medi-lo. O movimento é a moção local, tópica, mutação local, a mais comum entre os corpos. Há muitas espécies de moções tópicas (movimento), pois no aumento e na diminuição há mutações tópicas também. Vide mutação.
Quanto à mutação dizia Aristóteles: “medimos não somente pelo tempo o movimento, mas também o tempo pelo movimento, que se determinam reciprocamente”.
Três termos estão implicados nesta ideia: 1) o ponto de partida que os escolásticos chamavam de terminus a quo (de onde); 2) o ente que se move, terminus quod ( o que se move); 3) para onde se move terminus ad quem. Importante ainda considerar um quarto termo a via (em lat., caminho) os meios empregados para a moção, o onde da moção.
Ora, todo movimento tópico se dá no espaço, mas se processa num tempo. Não se poderia medir o movimento sem os dois termos: espaço e tempo. O quod e o termo ad quem pertencem ao espaço, mas ao termo quod cabe o tempo, porque ele processa o movimento que é sempre um transitar, porque sucede numa variância de relações em face do termo a quo e o ad quem. Todo movimento encerra, em suma, a sucessão da variância numérica das relações entre o quod e os outros dois termos. Se esses apenas mudassem, enquanto quod permanecesse estático, filosoficamente considerado, não conheceria um movimento absoluto, mas apenas relativo.
A variância das relações entre os termos nos permite compreender como concebe o movimento a teoria da relatividade. O movimento é assim relativo à variância das relações entre os termos. Se existir um ponto estático, fixo, como o éter, como era aceito na física e ainda o é, poderíamos conhecer o movimento absoluto, pois teríamos um termo a quo e um ad quem fixos, permitindo que a medida de deslocamento, no tempo, do termo quod, desse-nos a medida absoluta do movimento. Mas desde o momento que os termos conhecem variância de relações, que são portanto covariantes, o movimento é, por sua vez, variante e relativo. Expomos, em termos filosóficos, o que diz a relatividade sobre o movimento, com termos da física e da mecânica.
Se medimos a velocidade do movimento pelo espaço percorrido e pelo tempo que gastou em percorrê-lo, a velocidade do movimento é, em suma, para nós, o espaço percorrido numa unidade de tempo. Então a velocidade do movimento ainda se inclui dentro do esquema do complexo tempo-espacial. Movimento é o percurso da via pelo termo quod; velocidade, o tempo. Mas o processo do movimento é tempo porque sucede; e neste caso a velocidade é o tempo do processo, e nunca excluímos o tempo, nem o espaço.
Mas medimos o tempo pelo espaço e pelo movimento; porém, na verdade, não medimos o tempo, mas espacializamos o tempo. Ou em outras palavras: do complexo tempo-espacial atualizamos o espaço para dizer o que é o tempo, como para dizer o que é o espaço, atualizamos o tempo. A inseparabilidade de tempo e espaço é evidente, e a tentativa de identificação de ambos, pela redução de um ao outro, foi um equívoco que levou filósofos e cientistas a situações embaraçosas e aporéticas, e a cair, finalmente, nas famosas antinomias de Kant:
Medimos o tempo pelo movimento e pelo espaço.
Medimos o espaço pelo tempo e pelo movimento.
Medimos o movimento pelo tempo e pelo espaço.
São fisicamente inseparáveis. Movimento é o desenvolvimento do espaço no tempo e do tempo no espaço. O que nos mostra o movimento? Que o complexo tempo-espacial é intensivo–extensivo, incluindo portanto a gradatividade da heterogeneidade intensiva ,a par da estaticidade homogênea do extensivo.
As variâncias da intensidade na extensidade são sempre moções porque há aí variância de relações. As próprias variâncias nos modos de ser ainda serão relações. Por isso não há um movimento absoluto porque teríamos então de excluir o estático, e deixarmos o dinâmico em sua plenitude, dicotomizando a realidade que apenas podemos distinguir metafisicamente.
Vê-se assim como a atividade abstratora do racionalismo levou-nos a compreender o tempo e o espaço como absolutos (como ab-solutum, isto é, afastados de uma identificação), acabando por lhes dar uma “subsistência” abstrata, e sem subsistência, pois os esvaziara de tudo para afirmá-los através de uma negação, o nada, – razão pela qual não podia a filosofia racionalista compreender nem alcançar o que a experiência científica teria de exigir, como exigiu, dialeticamente, na afirmação do complexo tempo-espacial da física moderna, que é a concreção do tempo e espaço, como meras distinções metafísicas da realidade, cum fundamento in re, como diriam os escolásticos, mas cuja subsistência é o ser, e não numa subsistência em si, à parte do cosmos, como nos poderiam fazer crer os exageros do racionalismo. E poderíamos compreender as afirmativas da heterogeneidade do espaço, que apresenta para a física moderna propriedades diferentes segundo as covariantes implicadas na sua formação.
É natural que alguns racionalistas digam que a deformação é apenas corpórea, pois tempo como duração pura, como temporalidade pura, é imutável e homogêneo, e o espaço que está atrás de todas as coisas é também homogêneo e imutável. Mas compreendemos dialeticamente que as representações do tempo e do espaço nada mais são que abstrações levadas ao extremo do despojamento da realidade, pela valoração dos racionalistas pelo nada, a par do menosprezo que lhes causa o real, com a sua irracional presença através das singularidades. [MFSDIC]
O termo movimento tem frequentemente a mesma significação que os vocábulos mudança e devir. Em princípio, o que dissemos acerca do conceito de devir pode aplicar-se ao conceito de movimento. Contudo, pode adoptar-se a convenção de usar movimento para se referir a dois conceitos mais específicos: um, o de translação, deslocação ou movimento local; outro, o do movimento no sentido em que esta noção foi usada na moderna ciência da natureza e na filosofia desta ciência. Estes dois conceitos estão estreitamente relacionados entre si. Com efeito, uma das caraterísticas desta ciência é a de se negar a tratar o problema da mudança ontológica e o reduzir a questão da mudança à da deslocação de partículas no espaço. Já os atomistas gregos tinham antecipado esta redução, pois os átomos não se alteravam na sua natureza, e as mudanças dos corpos explicavam-se por meio de translações espaciais. E o próprio Aristóteles seguiu, por vezes, a mesma via, sobretudo ao tratar em pormenor aquilo a que chamava “movimento local”. O movimento no sentido apontado constituiu um tema central na moderna ciência e filosofia da natureza; como Einstein assinalou, constituiu uma das chaves fundamentais para a “leitura do livro da natureza”. [Ferrater]
O movimento universal pode ser muito lento e assim a sensação ser possível (radiatividade) [Nota do autor, em francês: Il y a de l’être dans toute proposition.].
Heráclito diz que tudo é movimento. Mas o que é o movimento? Qualquer coisa que só pode ser concebida por oposição a substância.
Além disso, o movimento exige duas coisas: uma coisa que move e uma coisa que é movida, um motor e um móvel. — Necessita primeiro, de uma coisa para mover, porque é inconcebível que qualquer coisa possa mover-se a si própria. Necessita em seguida, de uma coisa para ser movida, pois como disse, nada pode mover-se a si próprio.
De novo digo que para nos apercebermos de algo, para algo conhecer, é necessário que, tal nos sendo dado, alguma coisa sejamos.
Quer dizer, todo o movimento, toda a percepção, todo o conhecimento, por mutáveis que sejam e pertencendo a alguma coisa que muda, supõe uma substância nem que seja pelo facto de existir aqui, seja embora por menos de um momento.
Agora, tendo observado que todas as coisas são movimento, ainda há uma questão para decidir. Este movimento, ou existe ou não existe. Se não existe, ainda que se possa dizer que existe (pois parece existir), a ideia de uma existência é anterior à ideia de movimento e a existência não pode consistir em movimento [Texto provavelmente de 1906. Traduzido do original inglês.]. [Fernando Pessoa]