Com isto, com o infinitamente pequeno do cálculo infinitesimal, com a força viva como elemento definitório da matéria em lugar da pura extensão, temos os dois elementos, as duas ideias fundamentais que, chegando a uma maridagem, a um casamento, a uma união perfeita, vão produzir a metafísica propriamente dita de Leibniz. A metafísica de Leibniz está constituída toda ela sobre o fundamento da ideia de “mônada”. Pode-se dizer que a metafísica, de Leibniz é a teoria das mônadas, e ele o compreendeu assim, visto que sua última obra, publicada depois de sua morte, leva este nome: “Teoria das Mônadas”, ou dito em uma só palavra: Monadologia. Vamos ver que é a mônada.
A palavra “mônada” não é de Leibniz. Provavelmente Leibniz tomou-a de suas leituras de um filósofo da Renascença, üm físico, astrônomo e matemático muito genial, porém um pouco fantástico que se chamava Giordano Bruno. Giordano Bruno foi quem a pôs em circulação na Europa. Talvez ele a tivesse tomado também de leituras que houvesse feito, de místicos e filósofos da Antiguidade; talvez de Plotino, que também a empregou. O fato é que até muito tarde na sua evolução pessoal filosófica não usou Leibniz a palavra “mônada”, e quando chega já a usá-la cristalizam-se em torno dessa palavra todos os elementos fundamentais de sua metafísica.
Que é a mônada? A mônada é primeiramente substância, quer dizer, realidade. Substância como realidade, e não substância como conteúdo do pensamento, como termo puramente psicológico de nossas vivências, mas substância como realidade em si e por si. Pois bem; que é para Leibniz ser substância? Ser substância, para Leibniz, não consiste em ser extenso. Acabamos de vê-lo. Para Leibniz, a extensão é a ordem das substâncias, a ordem da simultaneidade das substâncias, como o tempo é a ordem da sucessão de nossos estados de consciência. A extensão,
o espaço é uma ideia prévia, mas não tem um objeto substancial, real. O único objeto substancial, real, a substância, a mônada, não pode, por conseguinte, definir-se pela extensão. Se a mônada pudesse definir-se pela extensão, então a mônada seria extensa. Que quer dizer? Que seria divisível; e se fosse divisível seria dual, ou trial etc. Mas a mônada é mônada, ou seja, única, só, e, por conseguinte, indivisível. E para que seja indivisível não vale falar de átomos. Os átomos materiais não satisfazem a Leibniz, porque o átomo, se é material, se é extenso, é divisível; será mais ou menos difícil de dividir pela técnica digital humana, mas como não se trata de técnica digital, mas da estrutura de si e por si da substância, uma substância extensa será sempre divisível. Por conseguinte, a mônada não pode ser divisível; é indivisível, e se é indivisível, não é material, não pode ser material. E se, sendo indivisível, é imaterial, que é, pois? Qual é a consistência da mônada? Em que consiste a mônada? Se não consiste em extensão, se não consiste em matéria, em que consiste? Pois não pode consistir em outra coisa que em força, em energia, em vis, como se diz em latim; em vigor. A mônada é, pois, aquilo que tem força, aquilo que tem energia.
Mas que é força e energia? Força e energia não as devemos representar como aparecem na nossa experiência sensível. Na nossa experiência sensível chamamos força à capacidade que um corpo tem de pôr em movimento outro corpo. Define-se, pois, a força pela capacidade de pôr em movimento outro corpo. Mas assim não pode definir-se metafisicamente a energia, porque aqui não há corpos; as mônadas não são corpos, as mônadas não são extensas. Então, que será esta força em que consiste a mônada? Não pode ser outra coisa que a capacidade de agir, a capacidade de atuar. E que é este atuar? Que é este agir? Pois verificamos que não há para nós intuição de ação, intuição dinâmica nenhuma, senão a que temos de nós mesmos. Aqui outra vez o método do cogito cartesiano vem dar a Leibniz um apoio e um auxílio. Pois como podemos imaginar e representar a força, a energia da mônada? Pois do mesmo modo que nós, no interior de nós mesmos, captamos a nós mesmos como força, como energia; quer dizer, como trânsito e movimento interno psicológico de uma ideia, de uma percepção a outra percepção, de uma vivência a outra vivência. Essa capacidade de ter vivência, essa capacidade de variar nosso estado interior, que deixa de ser a vivência A para passar a ser a vivência B, depois a vivência C; essa capacidade íntima de suceder-se umas a outras as vivências, é isso que constitui para Leibniz a consistência da mônada. A mônada é substância ativa. Que quer dizer isto? Substância, diremos, psíquica. Essa substância ativa, essa capacidade de passar por vários estados, essa possibilidade de_ viver com que se pode definir a mônada, tem uma porção de caracteres interessantes.
Em primeiro lugar, a mônada não somente é indivisível, mas individual. Que quer dizer isto? Quer dizer que uma mônada é totalmente diferente de outra mônada; não pode haver no universo duas mônadas iguais. Em virtude do princípio de Leibniz chamado dos “indiscerníveis”, se uma mônada fosse igual a outra mônada, verdadeiramente igual a ela, não poderiam ser duas, mas uma. As coisas no mundo, as realidades no mundo são indiscerníveis quando são iguais. Portanto, nunca são iguais. A individualidade da mônada é um dos pontos essenciais da metafísica de Leibniz.
Mas, ademais, essa individualidade é simplicidade. Indivisível significa indivíduo, mas ademais simples. Simples quer dizer sem partes. A mônada não tem partes, mas, como é ativa, há de se encontrar uma definição que torne compatível a individualidade, a indivisibilidade, a simplicidade da mônada com as mudanças interiores da mônada. Como pode haver mudanças interiores, atividade, mudança interior nos estados da mônada se, de outro lado, tem que ser indivisível, individual e simples? Pois não há mais que uma maneira que é dotar a mônada de percepção.
A mônada está, pois, dotada de percepção e de apetição, caracteres de tudo o que é essencialmente psíquico. Percepção, porque a percepção é justamente o ato mesmo de ter o múltiplo no simples. Na alma espiritual, no ato da percepção, o múltiplo percebido, o conteúdo múltiplo da vivência está na unidade indivisível, na unidade simples daquele que percebe. Na percepção é que se dá precisamente o requisito que antes exigíamos, a saber, que a mônada seja simples, indivisível e individual, e ao mesmo tempo que contenha uma pluralidade de estados. Essa precisamente é a percepção; e assim define literalmente Leibniz a percepção: como a representação do múltiplo no simples.
Mas, além de percepção, a mônada tem apetição, ou seja, tendência de passar de uma a outra percepção. As percepções se sucedem na mônada, e esse suceder-se das percepções na mônada constituem a apetição. Agora já temos uma representação, uma ideia muito mais complexa e clara da atividade da mônada. A atividade da mônada é dupla: de um lado, perceber; de outro lado, apetecer. Corresponde, pois, — como diz o próprio Leibniz — a realidade metafísica da mônada a essa realidade que chamamos o “eu”.
Paremos agora um momento; relembremos o geometrismo e o mecanismo de Descartes. Que vemos agora? Vemos que Leibniz perfurou, por assim dizer, o fenômeno, a aparência do geométrico, do mecânico, do físico, do material, e por debaixo dessa aparência fenomênica do extenso, do mecânico, do material, do físico, descobriu, como suporte real metafísico dessa aparência mecânica, a mônada, que não é extensa, que não é movimento, mas sim é pura atividade, ou seja, percepção e apetição.
Estas mônadas são a sucessão constante de diferentes e diversas percepções, o trânsito constante de uma a outra percepção. E qual é a lei íntima desse trânsito? É uma lei espontânea. Assim como o círculo percorrido por um ponto está já in nuce, em germe, dentro da divisão infinitesimal do ponto, assim também as mônadas, para Leibniz, não têm janelas nem nelas penetra nada do mundo exterior. Mas a lei íntima de sucessão de seus estados perceptivos e de sua própria apetição é uma lei que rege essa sucessão; da mesma forma que a lei íntima de uma função, de uma variável, está integralmente contida no seio do ponto dessa variável. E assim verificamos que em qualquer momento de sua vida, do seu ser, do seu existir; em qualquer instante da sua realidade, a mônada é uma redução do mundo inteiro. É a mônada em qualquer momento de sua vida algo que nesse momento contém todo o passado da mônada e todo o porvir, visto que a série das percepções que a mônada vai tendo vem determinada por uma lei interna, que é a definição dessa individualidade metafísica substancial. Em qualquer momento da vida da mônada todo o seu passado está vertido nesse presente e esse presente por seu turno não é mais do que o prelúdio do futuro, inscrito já também na atividade presente da mônada. Pois bem; se as mônadas refletem desta sorte o universo; se cada mônada é um reflexo universal, é assim exclusivamente de um certo ponto de vista. Reflete, pois, cada mônada a totalidade do universo, porém a reflete do ponto de vista em que se encontra situada, e ademais a reflete obscuramente. Leibniz distingue perfeitamente a percepção da apercepção. Leibniz distingue entre perceber e aperceber. Que é aperceber? Muito simplesmente: aperceber é ter consciência de que se está percebendo. A apercepção é o saber da percepção; a percepção que se sabe a si mesma como tal percepção. De modo que Leibniz distingue entre estes atos psíquicos: a apercepção e a percepção. [Morente]