lar

Embora a tese principal de Fustel de Coulanges, segundo a introdução de A cidade antiga (Anchor, 1956), consista em demonstrar que “a mesma religião” moldou a antiga organização da família e a antiga cidadeEstado, o autor fornece numerosas referências ao fato de que o regime da gens, baseado na religião da família, e o regime da cidade “eram, na verdade, duas formas antagônicas de governo (…). Ou a cidade desagregava a família, com o tempo, ou não poderia perdurar” (p. 252). A contradição dessa grande obra deve-se aparentemente à tentativa de Coulanges de tratar, em um mesmo conjunto, Roma e as cidades-Estado gregas; para suas evidências e categorias ele se apoia principalmente no sentimento institucional e político de Roma, embora reconheça que o culto de Vesta “já perdera o seu vigor na Grécia em tempos muito remotos (…), mas nunca o perdeu em Roma” (p. 146). Não só o abismo entre o lar e a cidade era muito mais profundo na Grécia do que em Roma, mas somente na Grécia a religião olímpica, que era a religião de Homero e da cidadeEstado, era separada da religião mais antiga da família e do lar, e superior a esta. Enquanto Vesta, a deusa da lareira, passou a ser a protetora de uma “lareira da cidade” e tornou-se parte do culto político oficial após a unificação e segunda fundação de Roma, sua equivalente grega, Héstia, é mencionada pela primeira vez em Hesíodo, o único poeta grego que, em consciente oposição a Homero, louva a vida do lar e da família; na religião oficial da pólis, Héstia teve de ceder a Dionísio seu lugar na assembleia dos 12 deuses olímpicos (cf. Mommsen, Römische Geschichte (5. ed.), Livro I, Capítulo 12, e Robert Graves, The greek myths (1955), 27. k). [ArendtCH, 4, nota]


O traço distintivo da esfera do lar era que o fato de que nela os homens viviam juntos por serem a isso compelidos por suas necessidades e carências. A força compulsiva era a própria vida – os penates, os deuses do lar, eram, segundo Plutarco, “os deuses que nos fazem viver e alimentar o nosso corpo” [Fustel de Coulanges, A cidade antiga, Anchor, 1956, p. 96. A referência a Plutarco é de Quaestiones romanae, 51] –, que, para sua manutenção e sobrevivência individual, assim como a vida da espécie, requer a companhia dos outros. O fato de que a manutenção individual devesse ser a tarefa do homem e a sobrevivência da espécie a tarefa da mulher era tido como óbvio, e ambas as funções naturais, o trabalho do homem para fornecer o sustento e o trabalho da mulher no parto, eram sujeitas à mesma premência da vida. Portanto, a comunidade natural do lar nascia da necessidade, e a necessidade governava todas as atividades realizadas nela. [ArendtCH, 5]


“Toda esta religião [sacralidade da privatividade] era confinada pelas paredes de cada casa (…). Todos esses deuses, a Lareira, os Lares e os Manes, eram chamados de deuses ocultos, ou deuses do interior. Em todos os atos dessa religião, o sigilo era necessário, sacrificia occulta, como disse Cícero (De arusp. respl. 17)” (Coulanges, A cidade antiga, Anchor, 1956, p. 37). [ArendtCH, 8, Nota]