A doutrina de Kant e seus discípulos. — Distingue-se notadamente: 1.° os kantianos, discípulos e comentadores clássicos como Vaihinger, Chr. E. Schmid, Beck; por vezes críticos como Reinhold, Salomon Maimon, Schulze (fim do séc. XVIII); 2.° os pós-kantianos, que querem ultrapassar a análise do conhecimento por uma teoria do absoluto: Fichte, Schelling. Hegel (fim do séc. XVIII — início do séc. XIX); 3.° os neokantianos (séc. XIX), que se acantonam na teoria do conhecimento e da lógica; O. Liebmann, os filósofos da escola de Marburg (H. Cohen, P. Natorp, E. Cassirer) e da escola de Bade (H. Rickert). [Larousse]
“Duas coisas me enchem de uma admiração e de uma veneração sempre novas e sempre maiores, à medida que a reflexão se detém e se aplica a considerá-las”, diz Kant ao encetar a conclusão da Crítica da razão prática: “o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim.” Isto não é apenas um arroubo lírico e religioso, mas devemos ver nestas belas palavras o princípio da especulação cujo desenvolvimento esboçamos e da teoria moral cujo fundamento distinguimos.
Tem-se dito que esta doutrina, elaborada pela dialética implacável de um cérebro possante e sutil até a obscuridade, se resolvia por um apelo ao sentimento — e é verdade. Nesta altura convém recordar quem era Kant, o homem que havia em Kant, esse protestante nada rígido, mas tão compenetrado da sua fé e tão sensível também à voz desse outro protestante, Rousseau. Mas, embora se possa encarar o lado sentimental e religioso de Kant como a base última do seu pensamento, isso não nos deve fazer esquecer a conduta toda intelectual desse pensamento, nem tampouco o método do pensador.
Mais uma vez era atacado o problema fundamental da filosofia, a questão do mecanismo da natureza e, por fim, da realidade do espírito. Não se pode negar que esta doutrina lhe tenha dado um grande impulso e que a solução proposta fosse das mais originais. Já não se tratava nem da participação platônica, nem do intelecto agente e do intelecto possível de Aristóteles e dos seus comentadores, nem da substância pensante e da substância extensa do cartesianismo. A explicação do espírito era encontrada na própria estrutura do espírito; ele é que fornecia os quadros a que vinham ajustar-se as coisas e ele, portanto, é que dava ao mundo a figura que este assumia aos seus olhos. E mais uma vez a dificuldade era apenas protelada, pois surgia um novo enigma. Qual o valor ou a origem desses princípios ordenadores, de onde vinham e que solidez emprestavam à realidade por eles moldada? Questão aliás absurda, pois é a da própria inteligência. Ora, segundo a expressão vigorosa de um pensador contemporâneo, H. Delacroix, a inteligência é primeira, não se “deduz”.
Quer isto dizer que o kantismo, com mais ciência ou finura, deixava reaparecer as mesmas impossibilidades ou os mesmos erros. Era um idealismo aperfeiçoado, mas não deixava de ser idealismo; não ordenava senão a aparência das coisas, os fenômenos, e confessava que as próprias coisas, a coisa em si, o noúmeno lhe escapava. É verdade que restituía uma realidade ao espírito, mas esta realidade permanecia peculiar ao espírito e Kant o emparedava nela.
Saía realmente do impasse com essa moral audaciosa que, com os seus imperativos e as consequências metafísicas destes, pretendia romper o círculo em que se enclausurara a razão especulativa e penetrar no inteligível? Não redundava isso em substituir os dados da experiência pelos dados de uma outra experiência, pelos dados da fé, e tratá-los por meio do mesmo instrumento? É certo que a imortalidade, a liberdade e a prova de Deus decorrem do imperativo categórico: mas quem nos garante que este imperativo categórico não sai do homem, não supera o homem e não permite transcendê-lo?
Era o que não se podia deixar de observar, como de fato se observou, e veremos ainda o aspecto irrisório que assumiu, especialmente na França, um kantismo esvaziado do seu conteúdo religioso e laicizado. Também foram apresentadas emendas ou contestações sobre o fundo. Se Reinhold, Salomon, Maimun e Schultz se mantiveram na linha da doutrina, Herder, por outro lado, denunciou a cisão que Kant teria operado entre a natureza e as faculdades da razão, acusando-o de romper esse encadeamento legítimo das coisas que supõe um princípio de unidade na existência.
Vamos ver que homens de envergadura seguiram as pegadas destes, pretendendo por vezes superá-lo, e o que eles trouxeram de realmente novo. Mas é indiscutível o valor de Kant como figura ímpar e uma das culminâncias da humanidade pensante. O jovem que o lê sente-se deslumbrado; não é menor, porém, a nossa surpresa quando voltamos a ele na idade madura. Admiramos o rigor e a profundeza do sentimento em que se enraíza a doutrina; não admiramos menos a força e a pujança da operação puramente intelectual. O que se patenteia aqui, sem dúvida um pouco melhor do que teria desejado o filósofo, é o limite do homem e o modo como se acha irremediavelmente encerrado em si. Mas ao mesmo tempo que esse limite era demarcado, era também alargado. Parece que não se possa levar mais longe a especulação humana, mantendo-se dentro da medida e da justeza, nem que se possa sentir com mais força esse brado de justiça, desesperado e vão, que se eleva cada dia da terra. Talvez este moderno, este filho de um céu pálido tenha negligenciado demais os ensinamentos antigos, julgando anular muito depressa, com o seu pensamento, esforços e resultados laboriosamente desenvolvidos ou adquiridos no decurso dos séculos: tal é o preço das revoluções e também o seu perigo. A metafísica cristã, por exemplo, e mesmo a dogmática cristã conservam recursos que foram aqui negligenciados. Isso não impede que a obra de Kant tenha assinalado um ponto decisivo — embora devessem haver um retorno e um futuro ainda possíveis — e a sua inteligência, conquanto não possua as graças de outras inteligências geniais, eleva-se ao nível das maiores. [Truc]