εν, ἐν, ἔν, hen: um, o Uno
1. A busca pré-socrática de uma arche para todas as coisas terminou normalmente num princípio único, a redução da variedade de existentes a uma matéria ou substância única, sem ênfase, contudo, na unicidade do princípio. Os primeiros dualistas foram, ao que parece, os pitagóricos; «ao que parece» porque o juízo assenta na exegese de um texto difícil, em Aristóteles, a juntar ao fato de que numa data posterior os pitagóricos se tornaram monistas e, como é habitualmente o caso das fontes pitagóricas, a discriminação entre cedo e tarde não é uma questão simples.
2. Na Metafísica 986a Aristóteles diz que os pitagóricos criaram o supremo limite (peras) dos stoicheia e o ilimitado (apeirou); são os elementos do mesmo e do outro e estes últimos produzem o uno (hen), donde procede toda a série dos arithmoi. Isto parecia delinear a distinção entre pares de stoicheia opostos (limite–ilimitado, mesmo-outro) e o seu produto, hen, que é a arche ou o ponto de partida do número. Mas, algumas linhas adiante, no mesmo passo, Aristóteles passa a dizer que alguns pitagóricos alinham os seus stoicheia em duas colunas paralelas, contendo a esquerda o limite, o outro, o uno, etc, e a direita, o ilimitado, o mesmo, a pluralidade. Se tomarmos em conta o que parece ser um desenvolvimento posterior da escola (ver 10 infra), temos assim três pontos de vista muito diferentes sobre o uno: o uno como posterior aos stoicheia, o uno como um stoicheion, e o uno anterior a tudo o mais.
3. Estas especulações baseiam-se em considerações físicas e matemáticas (as implicações morais não estão evidentemente ausentes nestes pontos de vista pitagóricos; também na coluna esquerda na Metafísica 986a figura «o bem»; ver Ethica Nichomacos 1096b), mas a próxima aparição do uno dá-se num contexto dominado pela lógica (confrontar o comentário de Aristóteles no De gen. et corr. I, 325a). Esta é a «Via da Verdade» de Parmênides onde ele procura ilustrar que, se o ser (on) é, então é uno no sentido de ser simultaneamente único (monogenes; írg. 8, versos 11-13) e indivisível (adiaireton; ibid. versos 22-25).
4. Para apoiar a argumentação de Parmênides, Zenão construíra uma série de antinomias dialéticas. Estas tomam a forma de postular uma hipótese, neste caso em que há uma pluralidade de seres, e de mostrar que as conclusões que dela decorrem são tão absurdas como as apresentadas contra o Ser Uno de Parmênides (Parm. 128a-e). Platão constrói um conjunto como este de hipóteses e coloca-as na boca do próprio Parmênides no diálogo do mesmo nome. O tema é o uno (to hen). Os passos que se seguem (Parm. 137c ss.) envolvem uma série de obscuridades, não sendo a menor destas a de saber se o uno em discussão é o Ser Uno de Parmênides ou a própria Unidade transcendente de Platão (a expressão grega é ambígua e em 135e Parmênides sugere que gostaria de alargar a dialética de Zenão aos eide; mas confrontar 137b). De novo, é isto erística de Zenão ou dialektike platônica (é chamada gymnasia em 135c-e)?
5. Seja o que for que a moderna investigação diga sobre o assunto, e ela tende a ver a segunda metade do diálogo como considerações lógicas sobre o Ser Uno, o juízo da última tradição platônica é claro. As hipóteses do Parmênides tornaram-se um texto sagrado sobre o Uno como hypostasis transcendente. É citado com maior frequência do que qualquer outra obra exceto o Timeu nas Enéades, e Proclo escreveu um comentário exaustivo sobre ele.
6. Teve Platão uma doutrina especial do Uno? Na medida em que trata a unidade dos eide individuais, Platão sustenta continuamente que eles são indivisíveis (Fédon 78d, Republica 476a), e vai ao ponto de lhes chamar énades ou mónadas (Phil. 15a-b, 16d-e). Mas estamos consideravelmente pouco informados sobre o eidos do uno ou da própria Unidade. Platão dirige-se, de fato, ao uno (hen) e ao múltiplo (plethos) como um problema dialético no Phil. 13e-18d. Menciona, como já resolvido, o problema do múltiplo-no-uno ao nível de unidades orgânicas como o homem (14d-e; ver holon), mas permanece a questão intrigante do eidos monádico e da sua distribuição através da pluralidade de coisas materiais e o problema correlato da inter-relação (koinonia) dos eide (15b-c; a questão é posta como estando para ser resolvida mas não o é; ver methexis, mimesis). Para resolver isto reporta-se à solução pitagórica (ou, como lhe chama, prometeica; 16c) de converter o hen e o plethos com per as e apeiron, que são, por sua vez, integrados no seu próprio processo de reunião (synagoge) e divisão (diairesis). Estes últimos são, de fato, um movimento dialético do múltiplo para o Uno e vice-versa, mas o uno que a synagoge alcança não é de modo algum um Uno transcendente, mas antes um eidos genérico do tipo descrito no Soph. 253d-e «como um eidos estendendo-se através de muitos eide que estão separados».
7. O Sofista também levanta a questão do próprio Uno, i. e.; o eidos do hen, contra Parmênides (245a-b), não já o do diálogo platônico mas o filósofo da «Via da Verdade». Se o Ser Uno esférico é tal como Parmênides o descreve no frg. 8, versos 42 ss., então é um todo feito de partes e, assim, tem de diferir do próprio Uno, que é perfeitamente simples. Mas o texto não tem sequência por não nos informar que há um eidos do Uno. Quando, mais adiante no mesmo diálogo (254d ss.), Platão passa a discutir as «maiores espécies» dos eide, o Uno não está em evidência em parte nenhuma e Plotino tem de fazer uma explicação longa para justificar que a sua omissão é apropriada (Enéadas VI, 2, 9-12).
8. A importância do uno em Platão é, então, exceto para o curioso problema do Parmênides, duma não maior relevância do que a dos outros eide e talvez menor do que a dos megista gene do Sofista. O que é mais flagrante, contudo, é a posição que este parece assumir na quase contemporânea Academia. O tratamento próprio de Aristóteles quanto ao uno é classificá-lo entre os «transcendentais»: a unidade, como o ser, é predicada analogicamente através de todas as kategoriai (Metafísica 1003a-b, 1053b). Mas quanto ao um como unidade este não é mais do que a arche de uma série matemática (ibid. 1016b) e assim está convencido de que Platão deve ter defendido que o Uno era uma substância separada (ibid. 996a; refutado 1001a-b) e a arche de todos os eide visto que o Uno e o Ser são os summa genera dos quais todos os eide são espécies (ibid. 996a, 998b). As origens desta convicção são algo difíceis de compreender, mas estão obviamente ligadas à sua alegação, muitas vezes repetida, de que Platão identificou os eide com os números (ver arithmos 3). Um outro comentário leva-nos na mesma direção. Aristóteles também declara que Platão identificou o Uno com o Bem (ibid. 1091a-b), e nós sabemos que isto se baseia em algo mais de que na leitura do famoso passo sobre o Bem transcendente na Republica 509b dado que sabemos por outra fonte (Aristóxeno, Elem. harm. II, p. 30) que Platão fez também esta identificação na sua lição «Sobre o Bem» (ver agrapha dogmata) que tinha que ver com a matemática.
9. Aristóteles acrescenta que Espeusipo, sucessor de Platão, evitou esta dificuldade porque, se bem que fazendo do Uno uma arche, não o identificou com o Bem (ibid. 1091b) mas fez desta o resultado de um processo evolutivo (ibid. 1072b-1073a). As opiniões de Espeusipo sobre as próprias archai são igualmente referidas. Substituiu os eide platônicos pela mathematika (Metafísica 1028b), derivando os números, conforme a prescrita maneira pitagórica, do Uno e da Pluralidade (ibid. 1085b, 1087b). O Uno de Espeusipo não é, pois, um princípio supremo num sistema monista, mas um de dois co-princípios do número. Xenócrates pertence à mesma tradição; fez dos eide números (1028b, 1069a, etc.) e derivou-os da Mônada e da Díade, baseado numa exegese do Timeu 35a (Plutarco, De procr. an. 1012d). Prossegue identificando o Uno com o Pai e Zeus, o Primeiro Deus, nons, enquanto a Díade pode ser chamada a Mãe dos Deuses e a Alma do Mundo (Aécio I, 7, 30).
10. Em todas estas teorias das archai é de notar que o uno permanece um fator estável; é o seu correlato que altera as nuances: o apeiron dos pitagóricos, a polarizada Díade Infinita de Platão e Xenócrates, e o plethos pluralista de Espeusipo e os pitagóricos (aoristos dyas; Metafísica 987b; ver Physica 206b; a dyas não aparece na terminologia de Phil. 24a-25b mas o que é descrito é dual na natureza). Uma opinião bastante diferente aparece no renascimento pitagórico do primeiro século em que escritores como Eudoro (in Simplício, Physica 181) e Alexandre Polyhistor (D. L. viu, 25) descrevem um pitagorismo que sustentava que a própria Díade Infinita derivava da monas.
11. As afinidades entre Pitágoras e a Academia em breve foram exploradas por ambas as partes. O próprio Aristóteles já tinha unido as duas (ver mimesis e confrontar a frequente justaposição de Espeusipo e Pitágoras na Metafísica). A derivação dos princípios transcendentes platônicos dos diálogos posteriores feitos em termos de teoria pitagórica do número é particularmente assinalada, e esta referência de um pitagórico posterior, Moderato de Gades, foi conservada por Simplício (Physica 230-231). Nela estão presentes todas as posteriores hipóstases neoplatônicas: a primeira, o Uno, para além do Ser; a segunda, o Uno que é realmente real, o inteligível, os eide; e a terceira, o Uno, que participa (methexis) do primeiro Uno e dos eide. A ênfase posta no Uno no tratado de Moderato é reveladora do seu ponto de vista pitagórico. Um relato semelhante das três hipóstases do acadêmico Albino mostra a sua orientação no sentido do Filebo e do Timeu ao descrever as três hipóstases como noûs (Epit. X, 1-2). Aqui, porém, há algo de Aristóteles: o primeiro noûs, além de ser o demiourgos (ibid. XII, 1) e o Pai e causa de toda a bondade e verdade, pensa-se a si próprio (ibid. X, 3). Mas foi o Uno que eventualmente triunfou sobre o noûs. Numénio, pitagórico do século II, que Plotino estudou, já tinha reduzido o noûs e a função demiúrgica para o segundo lugar (ver noûs 18) e o seu «Primeiro Deus» é absolutamente uno e indivisível (Eusébio, Praep. Evang. XI, p. 537).
12. Este é, em essência, o Uno, a primeira hipóstase de Plotino, que está para além do Ser e completamente sem qualquer qualificação (Enéadas VI, 9, 3). A unidade não é predicado dele (VI, 9, 5); de fato, nada está nele: ele é o que é, i. é, é a sua própria atividade e essência (VI, 8, 12-13). Contudo, duas correções se seguem: não é uma unidade numérica (monas; VI, 9, 5), nem é o aristotélico pensamento do pensamento (VI, 7, 37; ver noesis 18).
13. A transcendência do Uno, afirmada com crescente ênfase na tradição filosófica posterior, leva a uma crise do conhecimento (ver agnostos). Plotino enfrenta o problema deste primeiro princípio transcendente que está para além do Ser, a apreensão e a descrição por uma aplicação da teoria da mimesis e um recurso notável à introspecção. O problema da mimesis pode ser abordado por dois lados. Um, propriamente aristotélico, é o da unidade da pessoa (ver Metafísica 1003b). Dele progride-se através de graus de unidade cada vez mais elevados até à simplicidade absoluta que é o Uno (VI, 9, 1-2). De um ponto de vista mais platônico, a intelecção é uma espécie de movimento rotativo nos céus mas perturbado em nós por causa dos movimentos contraditórios provenientes do corpo (Timeu 37a-b; Leis X, 897d; ver noesis 11). Para Plotino o Uno é o centro imóvel de todos estes movimentos e numa metáfora de bailarinos em volta de um corifeu ele explica os nossos movimentos irregulares (v. g. sensação, raciocínio discursivo) pelo nosso afastamento do regente aproximando-nos dos espectadores (VI, 9, 8; sobre o princípio da «atenção» ver noesis 21, noûs 18, e as observações extraordinárias em I, 4, 10). Em ambos os casos, assim, a verdadeira unidade deve ser procurada dentro de nós próprios. O Uno é conhecido não pelo raciocínio, que é necessariamente um exercício em pluralidade, mas pela presença (parousia) em nós da unidade (VI, 9, 4). A compreensão do Uno é completada pela reflexão interior, a «fuga do só para o Só» (VI, 9, 11), que procura tornar a alma completamente simples (VI, 9, 7). No mundo inteligível, esta união mística com o Uno é uma experiência permanente, a verdadeira Afrodite celestial; aqui, no entanto, é apenas ocasional, e nós experimentamos antes a vulgar cortesã Afrodite (VI, 9, 9; sobre a própria união mística ocasional de Plotino com o Uno, ver Porfírio, Vita Plot. XXIII).
14. Tal como Plotino avança, in Enéadas VI, 9, 1-2, da unidade relativa para a unidade absoluta, do mesmo modo Proclo deriva o Uno absoluto da presença de unos que participam (methexis) da Unidade (Elem. theol. props. 1-6; para o método, cf. trias). Há, como em Aristóteles, uma causa final transcendente (prop. 8), bem como uma causa eficiente transcendente (prop. 11); estas identificam-se e são o Uno (prop. 12-13).
Para as outras hipóstases neoplatônicas, ver noûs, psyche tou pantos, psyche; para o modo de progressão, proodos, trias. [FEPeters]