fantástico

gr. phantastikos, φανταστικός; lat. phantasticus

O problema que a fisiologia pneumática dos médicos colocava para a antropologia cristã medieval era o da maneira como deveria ser concebida a relação entre o espírito e a alma. Na sua Pantechne, Constantino Africano parece identificar o espírito animal com a intelecção, por excelência uma função da alma racional, e, além disso, menciona a opinião de “certos filósofos que afirmam que este espírito do cérebro é a alma e que ela é corpórea”. Se Costa ben Luca já se detém na diferença entre o espírito corpóreo e mortal e a alma incorpórea e imortal, a preocupação em conciliar a pneumatologia dos médicos com a doutrina cristã fica evidente em Guilherme de Saint-Thierry, que condena explicitamente o grave erro dos que identificam o espírito com “aquela parte [166] eminente do homem que faz dele a imagem do Deus incorruptível e o eleva acima de todos os seres animados, ou seja, a alma racional”. “O Autor da natureza” – escreve ele, com uma fórmula que revela exemplarmente a fratura metafísica da presença, que caracteriza a ontologia cristã — “envolveu de mistério a união da alma e do corpo. Inefável, incompreensível é o encontro dessas duas substâncias.”[GUILHERME DE SAINT-THIERRY De natura corporis et animae (Patrologia latina, 180, 712). Sobre este problema, vejam-se as observações de V. Liccaro, em: HUGO DE SAO VITOR. I tre giorni dell’invincibile luce. L’unione del corpo e dello spirito. Firenze, 1974, p. 195-196.]

É precisamente este mysterium ineffabile que constitui o tema de uma das obras mais singulares do século XII: o De unione corporis et spiritus, de Hugo de São Vítor. Também Hugo, assim como Guilherme de Saint-Thierry, desconfia de toda identificação apressada entre corpóreo e incorpóreo, e começa por isso com as palavras do Evangelho de João, segundo as quais “o que nasceu da carne é carne e o que nasceu do espírito é espírito”. Porém, sobre o abismo que separa as duas substâncias, Hugo põe em ação uma espécie de escada mística de Jacó, ao longo da qual o corpo ascende na direção do espírito, e o espírito desce até o corpo:

Se não houvesse nada de intermediário entre o espírito e o corpo — escreve ele — nem o espírito teria podido encontrar o corpo, nem o corpo o espírito. É grande a distância entre corpo e espírito: eles estão longe um do outro. Há, portanto, algo através do qual o corpo sobe para aproximar-se do espírito, e algo através do qual, por sua vez, o espírito desce para aproximar-se do corpo… Nem todos os corpos são da mesma qualidade, mas alguns são mais altos, outros inferiores, outros sumos e quase transcendentes em relação à natureza corpórea. De modo semelhante, também entre os espíritos há mais altos, inferiores e ínfimos, quase caídos abaixo da natureza espiritual, porque de tal forma as coisas sumas se unem com as ínfimas… O corpo ascende e o espírito desce; o espírito sobe e Deus [167] desce… O corpo ascende por meio dos sentidos, o espírito desce através da sensualidade. Pensa na escada de Jacó: estava apoiada na terra e a sua extremidade tocava os céus. [De unione corporis et spiritus (Patrologia latina, 177, 285).]

Na busca desta escada de Jacó, inspirando-se na teoria neoplatônica do espírito fantástico como mediador entre corpóreo e incorpóreo, irracional e racional, Hugo procede a uma reavaliação da fantasia, que constitui mudança decisiva na história da cultura medieval:

Entre os corpos é mais nobre e mais próximo da natureza espiritual aquele que possui por si mesmo um movimento contínuo e nunca pode ser detido a partir de fora; este, enquanto suscita a sensação, imita a vida racional, e enquanto forma a imaginação, imita a sabedoria viva. No corpo, não pode haver nada mais alto e mais próximo da natureza espiritual do que aquilo em que, além da sensação e acima dela, se origina a força da imaginação. Tal realidade é tão sublime que, acima dela, nada pode encontrar-se senão a razão. A força ígnea que recebeu uma forma do exterior se chama sensação; esta mesma forma transportada para o interior é chamada de imaginação. Realmente, quando a forma da coisa sensível, colhida no exterior por meio dos raios da visão, é reconduzida aos olhos por obra da natureza e por estes é acolhida, tem-se a visão. Sucessivamente, passando através das sete membranas dos olhos e dos três humores, finalmente purificada e conduzida para o interior, chega ao cérebro e origina a imaginação. A imaginação, passando da parte anterior da cabeça para aquela central, entra em contato com a mesma substância da alma racional e provoca o discernimento, já tão purificada e tomada sutil a ponto de poder unir-se, sem mediação, com o mesmo espírito… A imaginação é, portanto, uma figura da sensação, situada na parte mais alta do espírito corpóreo e na parte mais baixa do espírito racional… Nos animais irracionais, ela não [168] transcende a cela fantástica, enquanto nos animais racionais chega até à cela racional, onde entra em contato com a mesma substância incorpórea da alma… Então, a substância racional é uma luz corpórea, a imaginação, enquanto imagem de um corpo, é uma sombra. Por isso, depois que a imaginação subiu até à razão, como sombra que vem à luz e se sobrepõe à luz, enquanto lhe vai ao encontro se torna manifesta e circunscrita, enquanto se sobrepõe a ela, a ofusca, a envolve, a cobre. Se a razão a recebe sobre si só com a contemplação, a imaginação é para ela uma espécie de veste que lhe é exterior e a envolve, de tal forma que se pode facilmente libertar dela e desnudar-se. Se, pelo contrário, a razão aderir a ela com deleite, a imaginação torna-se para ela como uma pele, de modo que não se poderá desvencilhar dela sem dor, por se ter acercado dela com amor… Assim, subindo dos corpos ínfimos e extremos até ao espírito corpóreo, há uma progressão através do sentido e da imaginação, estando ambos no espírito corpóreo. Imediatamente depois do corpo, no espírito incorpóreo há a afeição imaginária que a alma recebe por sua união com o corpo, e, para além dela, a razão que age sobre a imaginação. [De unione corporis et spiritus (Patrologia latina, 177, 287-88).]

Nos Padres, que mais sofrem a influência de Hugo, como Isaac de Stella e Alguero de Claraval, essa função mediadora do espírito fantástico fica reforçada e mais precisa: “A alma que é verdadeiro espírito, e a carne que é verdadeiro corpo, fácil e convenientemente se unem em seu ponto extremo, a saber, no fantástico da alma, que não é um corpo, mas é semelhante ao corpo, e na sensualidade da carne, que é quase espírito…”[ALGUERO DE CLARAVAL. Liber de spiritu et anima (Patrologia latina, 40, 789).]

Para medir a importância da reavaliação da fantasia que se realiza nesses escritos, convém recordar que, na tradição cristã medieval, a fantasia aparece com muita frequência sob uma luz decididamente negativa. Não é inoportuno lembrar a propósito [169] que as lascivas mulheres seminuas, as criaturas metade humanas e metade feras, os diabos aterrorizantes e todo o acervo de imagens monstruosas e sedutoras que se cristalizaram na iconografia das tentações de Santo Antão, representam precisamente os fantasmas que o tentador suscitou no espírito fantástico do santo. É justamente esta vertiginosa experiência da alma que, com a intuição polarizante que caracteriza o pensamento medieval, se torna agora o lugar em que se celebra a “união inefável” do corpóreo e do incorpóreo, da luz e da sombra. Se o mediador espiritual dessa união, nas pegadas do pensamento neoplatônico, pôde ser identificado no pneuma fantástico, isso se deve ao fato de que nem sequer nas mais exaltadas teorizações românticas a imaginação foi concebida de maneira tão elevada e, ao mesmo tempo, concreta, como no pensamento desta época, que, bem mais do que a nossa, merece realmente o nome de “civilização da imagem”. E se tivermos em conta a íntima ligação entre amor e fantasia, torna-se fácil compreender a influência profunda que tal reavaliação da fantasia viria exercer sobre a teoria do amor. Também porque foi descoberta uma polaridade positiva da fantasia, foi possível, nos modos que assinalaremos, redescobrir uma polaridade positiva e uma “espiritualidade”, na doença mortal do espírito fantástico que era o amor. [AgambenE:166-170]