essências

Antes de mais, a fenomenologia toma para objetos, não factos ou conjuntos de factos, mas essências. Trata da essência da percepção, da essência do juízo, da vontade, da coisa, visível ou ideal, etc. Não são generalidades empíricas, que agrupem factos em diferentes classes. Pelo contrário, apenas a essência fornece um direito à generalização. Pode-se compreender historicamente a introdução da essência como objeto fenomenológico próprio a partir das primeiras reflexões de Husserl sobre as ciências apriorísticas dedutivas, cujas leis têm o caráter da idealidade e são leis de essência.

A compreensão da idealidade destas leis exige que formemos, numa evidência, a essência das unidades ideais da teoria como tal, dos seus conceitos, objeto, unidade, pluralidade, etc. Mas, precisamente, se a ciência opera com essências, ela não o sabe. Ela contenta-se com definições, com fórmulas. A essência ela própria não é o seu objeto. Se ela se torna o da fenomenologia, é porque esta procede a uma conversão do «ver», deixando-se guiar pelo sentido da ciência. A essência será «vista» como o «preenchimento» deste sentido, como a própria coisa que era visada. Mas o fio condutor da ciência pura, que permite formar essências exactas, não é o único modo de acesso à essência. É um traço universal da vida pré-científica que toda a coisa possa ser designada e nomeada; ela constitui um pólo de identidade a despeito das mudanças que pode sofrer. Este sentido idêntico implica o preenchimento possível por uma essência. A coisa tem o seu «sentido de coisa», a cor vermelha tem o seu «sentido de vermelho», a percepção o seu «sentido de percepção», etc. A essência não é outra coisa senão a explicitação e o preenchimento destes sentidos numa evidência própria que Husserl chama eidética ou visão de essência.

A essência desempenha na fenomenologia um duplo papel: no plano estrutural, corresponde às «condições de possibilidades» da consciência (correlativamente ao seu objeto) e, por isso, é inseparável do próprio facto, porque o facto tem a sua «essência de facto», a sua contingência é uma «necessidade de essência». Mas ela é também «um objeto de um novo tipo» (Idées, p. 21). Por este motivo corresponde–lhe uma «intuição originária» e assume outra função: a de fornecer à evidência o seu ponto de apoio mais seguro, na medida em que ela lhe permite ter presente sob o seu olhar o objeto visado, tal como ele é visado. O «preenchimento» pela essência é uma forma eminente do preenchimento da intenção cognitiva. A partir das essências e das conexões de essências (por exemplo, as que existem entre o som e a intensidade, a extensão e a cor, e, mais geralmente, as que dizem respeito às leis formais analíticas e às leis materiais sintéticas), a fenomenologia revaloriza a velha palavra ontologia, estabelecendo uma maneira rigorosa de caracterizar «regiões» de ser a partir das suas propriedades «eidéticas». [Schérer]


Husserl demonstra (Rech. logiques. Ideen I) que esse ceticismo psicologista, apoiado no empirismo, suprime-se contradizendo-se. Com efeito, o postulado de base para todo empirismo consiste na afirmação de que a experiência é a única fonte de verdade para qualquer conhecimento: mas essa afirmação mesma deve ser posta à prova da experiência. Ora, a experiência, fornecendo apenas o contingente e o singular, não pode fornecer à ciência o princípio universal e necessário de uma afirmação semelhante. O empirismo não pode ser compreendido pelo empirismo. Por outro lado, é impossível confundir por exemplo o fluxo de estados subjetivos experimentados pelo matemático enquanto ele raciocina e o raciocínio: as operações do raciocínio são definíveis independentemente desse fluxo; pode-se apenas dizer que o matemático raciocina corretamente quando por esse fluxo subjetivo acede à objetividade do raciocínio verdadeiro. Mas essa objetividade ideal é definida por condições lógicas e a verdade do raciocínio (sua não-contradição) impõe-se tanto ao matemático como ao lógico. O raciocínio verdadeiro é universalmente válido, o raciocínio falso é maculado de subjetividade, portanto instransmissível. Do mesmo modo um triângulo retângulo possui uma objetividade ideal no sentido que ele é o sujeito de um conjunto de predicados, inalienáveis sob pena de perder o próprio triângulo retângulo. Para evitar o equívoco da palavraideia”, diremos que ele possui uma essência, constituída por todos os predicados cuja supressão imaginária acarretaria a supressão do triângulo em pessoa. Por exemplo, todo triângulo é por essência convexo.

Mas, se permanecemos no nível dos “objetos” matemáticos, o argumento formalista, que faz desses objetos concepções convencionais, permanece poderoso; demonstrar-se-á por exemplo que os pretensos caracteres essenciais do objeto matemático são na realidade dedutíveis a partir de axiomas. Por esse motivo, Husserl amplia, a partir do segundo temo das Recherches logiques, sua teoria da essência para aplicá-la ao terreno favorito do empirismo, a percepção. Quando dizemos “a parede é amarela” estarão implicadas nesse juízo as essências? E, por exemplo, a cor poderá ser tomada independentemente da superfície sobre a qual se “expõe”? Não, pois uma cor separada do espaço em que ela se dá seria impensável. Pois se, fazendo “variar” pela imaginação o objeto cor, retiramos a ele seu predicadoextensão”, suprimimos a possibilidade do próprio objeto cor, chegamos a uma consciência de impossibilidade. Esta revela a essência. Há, portanto, nos juízos dos limites à nossa fantasia, que nos são fixados pelas próprias coisas de que há juízo e que a Fantasia mesma revela graças ao processo da variação.

O processo da variação imaginária dá-nos a própria essência, o ser do objeto. O objeto (Objekt) é “uma coisa qualquer” por exemplo o número dois, a nota dó, o círculo, uma proposição qualquer, um dado sensível (Ideen I). Fazemo-lo “variar” arbitrariamente, obedecendo apenas à evidência atual e vivida do eu posso ou não posso. A essência ou eidos do objeto é constituído pelo invariante que permanece idêntico através das variações. Assim, se se opera a variação sobre o objeto como coisa sensível, obtém-se como ser mesmo da coisa: o conjunto espaçotemporal, provido de qualidades segundas, colocado como substância e unidade causai. A essência se experimenta pois numa intuição vivida; a “visão das essências” (Wesenschau) não possui qualquer caráter metafísico, a teoria das essências não se enquadra num realismo platônico em que a existência da essência seria afirmada, a essência é somente aquilo em que a “própria coisa” me é revelada numa doação originária.

Tratava-se exatamente, como o queria o empirismo, de voltar “às próprias coisas” (zu den Sachen selbst), de suprimir toda opção metafísica. Mas o empirismo era ainda metafísico quando confundia essa exigência do retorno às coisas com a exigência de fundar todo o conhecimento na experiência, considerando como conhecimento indiscutível que só a experiência nos dá as próprias coisas: há um preconceito empírico, pragmatista. Na realidade, a última fonte de direito para qualquer afirmação racional está no “ver” (sehen) em geral, isto é, na consciência doadora originária (Ideen). Não pressupomos nada, diz Husserl, “nem mesmo o conceito de filosofia”. E quando o psicologismo pretende identificar o eidos, obtido pela variação, com o conceito cuja gênese é psicológica e empírica, respondemos apenas que, se ele quer se limitar à intuição originária tomando-a como sua lei, seus conhecimentos a respeito são menores do que ele pretende. O número dois é talvez, considerado como conceito, construído a partir da experiência, mas na medida em que eu obtenho desse número o eidos por variação, eu afirmo que este eidos é “anterior” a qualquer teoria da construção do número e a prova é que toda explicação genética se apoia sempre no saber atual da “alguma coisa” que a gênese deve explicar. A interpretação empirista da formação do número dois pressupõe a compreensão originária desse número. Esta compreensão é portanto uma condição para toda ciência empírica; o eidos que ela nos oferece é apenas um puro possível, mas existe uma anterioridade desse possível em relação ao real de que trata a ciência empírica. [Lyotard]