É possível, todavia, que este aprofundamento ou alargamento do cartesianismo tenha constituído uma das orientações lógicas que Husserl se haja proposto seguir. Neste caso, a colocação entre parêntesis husserliana conseguiria dar satisfação e resposta a todas as exigências da dúvida cartesiana ; levaria até ao fim a afirmação idealista.
Desta afirmação, não nos propomos fazer aqui a crítica. Somente pretendemos notar que ela constitui, tanto em Husserl como em Descartes, um verdadeiro postulado, e um postulado que precisamente a dúvida e a « epoché » disfarçam, ou, se quisermos, um método que se transmuda na doutrina que ele implicitamente continha. É certo que este ponto de vista foi contestado. « Husserl, sobretudo nos seus últimos escritos, como relata R. Kremer (La Phénoménologie, Paris, ed. do Cerf, 1933, págs. 69-70), parece não querer ultrapassar a abstenção fenomenológica, enclausurando o espírito dentro de si mesmo. Resta saber se esta atitude, que parece um regresso ao idealismo, está na intenção primitiva do pensamento de Husserl. É possível, e até provável, que, historicamente, o mestre, no fundo, nunca se tenha libertado desta concepção idealista, uma vez que não é de presumir que ela possa ser imputada ao método e às exigências do objeto. Não constituirá a existência um dado, da mesma forma que a essência ? Por um lado, como ser, sendo mesmo no ser o princípio determinante, ela reivindica a sua independência perante a consciência e perante a essência ; por outro lado, sendo a essência e a existência correlativas, como princípios incompletos do ser, não é possível tratar adequadamente a essência sem estudar a existência. O problema da realidade tem de se pôr sempre, até sob o ponto de vista fenômeno lógico ».
Que este problema se enuncie, estamos inteiramente de acordo. Mas o que falta saber é como ele se deverá pôr e em que sentido poderá ser resolvido, dentro do contexto da fenomenologia husserliana. Se a colocação entre parêntesis da existência não é unicamente metódica e se funda numa pretensa falta de apodicticidade, a essência tenderá a bastar-se, tal como em Descartes e pelas mesmas razões. É certo que a fenomenologia não pode desprezar a existência, que é também um dado. Mas do que ela está inibida é de poder atribuir a essa existência o sentido « objetivo » que lhe convém : para isso, seria preciso deduzir a existência, por meio de uma espécie de argumento ontológico, como o tentou Hamelin nos seus Elements principaux de la représentation. A tentativa, todavia, está de antemão votada ao fracasso, e não parece que Husserl haja querido seguir esse caminho. Quanto a dizer que a essência, porque é correlativa da existência, não pode ser tratada em si, como realidade que se basta, é inteiramente verdade. Entretanto, isso equivale a afirmar que a existência é um dado tão apodicticamente certo como a essência, ou a qualidade, e que a colocação entre parêntesis da existência, como a concebe a fenomenologia, é rigorosamente impossível. Inversamente, o fenômeno empírico, que envolve a existência, não poderá representar, para a fenomenologia, senão uma determinação contingente e irracional da essência, no interior da consciência. A própria existência, sob este ponto de vista, nunca poderá ser senão fenomenal.
Husserl, de fato, nunca conseguiu aperceber-se da «transcendência», isto é, do fenômeno pelo qual a consciência se ultrapassa constantemente para o mundo. O recurso à intencionalidade, que é o grande expediente de Husserl, de nada serve aqui, porque a intenção, no contexto idealista, que é o de Husserl, não é nem pode ser mais do que um ultrapassamento para um elemento do mundo interior — e não uma autêntica «transcendência » (4).
(4) J.-P. Sartre ( En, págs. 288-291 ) mostra que Husserl não consegue fugir ao solipsismo. Se o ser se reduz a uma série de significações, a única ligação concebível entre o meu ser o de outrem é o do conhecimento. A existência de outrem, assim como a do mundo, nada mais é do que o conhecimento que eu tenho deles. [Jolivet]
(lat. Essentia et esse, essentia et existentia; in. Essence and existence; fr. Essence et existence; al. Wesen und Existenz; it. Essenza ed esistenzd).
A distinção real entre essência e existência é uma das doutrinas típicas da escolástica do séc. XIII. Foi exposta pela primeira vez por Guilherme de Alvérnia, em De trinitate (composto entre 1223 e 1228). Seus criadores foram os neoplatônicos árabes, especialmente Avicena (séc. XI), que a expusera em Metafísica (II, 5, 1). Foi adotada por Maimônides, que a modificou no sentido de reduzir a existência a um simples acidente da essência (Guide des égarés, trad. fr., Munk, pp. 230-33). Mas quem deu à doutrina sua melhor expressão foi Tomás de Aquino, que também a remeteu ao significado que recebera de Avicena, negando que a existência seja um simples acidente (Quodl., q. 12, a. 5). Por isso, é oportuno expor a doutrina na forma emprestada por Tomás de Aquino.
Tomás de Aquino entende a essência no significado 2, como essência necessária ou substancial. Ela é a “quididade” ou “natureza” que compreende tudo o que está expresso na definição da coisa; logo, não só a forma, mas também a matéria. P. ex., a essência do homem, definido como “animal racional”, compreende não só a racionalidade (que é forma), mas também a animalidade (que é matéria). Da essência assim entendida distingue-se o ser ou a existência da coisa definida: ser ou existência que é algo diferente da essência porque se pode, p. ex., saber o que (quid) é o homem ou a fênix sem saber se existe homem ou fênix, ou seja, sem saber nada acerca do ser ou da existência da coisa definida (De ente et essentia, 3). Portanto, substâncias como o homem ou a fênix são compostas de essência (matéria e forma) e existência, separáveis entre si; nelas, essência e existência estão entre: si assim como potência e ato: a essência é potência em relação à existência; a existência é o ato da essência. Somente em Deus, porém, a essência é a própria existência, porque Deus “não só é a sua essência como também o seu próprio ser”; se assim não fosse, ele existiria por participação, como as coisas finitas, e não seria o ser primeiro e a causa primeira (S. Th., I, q. 3, a. 4).
Esta doutrina da distinção real foi muitas vezes considerada de origem aristotélica. Na realidade, nada tem de aristotélico; aliás contradiz um dos cânones fundamentais da filosofia de Aristóteles, o que identifica o ser ou a existência com o ato e o ato com a forma; de sorte que não há forma que não seja ato, isto é, que não exista (a forma é a existência: v. ato; forma). Na realidade, a doutrina foi introduzida e utilizada com propósitos diferentes, que nada têm a ver com o aristotelismo. Avicena introduziu-a como elemento da doutrina da necessidade universal. Deus é necessário “em si mesmo” porque nele essência implica existência; as coisas finitas são necessárias “por outra coisa”, porque, como sua essência não implica existência, elas existem apenas em virtude da necessidade divina. Assim, tudo é necessário (cf. A. M. Golchon, La distinction de l ‘essence et de l’existence d’après Ibn Sina, 1937). Tomás de Aquino, porém, lança mão da mesma distinção para ressaltar a diferença entre o ser de Deus e o ser das criaturas, diferença que ele expressou com o princípio da analogicidade do ser (v. analogia), e para fazer que o próprio ser das criaturas, por resultar estranho à sua essência, exija a intervenção criadora de Deus. Em outros termos, Avicena viu na distinção entre essência e existência um instrumento para a defesa do princípio de que “tudo o que existe, existe por necessidade, e essa necessidade é Deus”. Tomás de Aquino utiliza a mesma distinção para defender o princípio de que “tudo o que existe, existe por participação no ser, e esse ser é Deus”. A doutrina da distinção real inclui duas teses diferentes, mas conexas: d) ser e essência estão separados nas criaturas; b) ser e essência são idênticos em Deus. Ora, mesmo aqueles que não aceitam a distinção real e, portanto, negam a proposição a), admitem a proposição b) como definição de Deus. Foi o que fez Averróis contra Avicena (Met., IV, 3); o que fez Duns Scot contra Tomás de Aquino (Rep. Par., IV, d. 7, q. 2, n. 7). Ockham, ao contrário, negou ambas as proposições. Sobre a primeira afirma.- “A essência não é indiferente ao ser ou ao não–ser, assim como não o é a existência; pois assim como a essência pode ser ou não ser, também a existência pode ser ou não ser. Os dois termos significam, portanto, absolutamente, a mesma coisa” (Quodl., II, 7). Sobre a segunda, afirma que a existência não pode ser contida analiticamente na essência de Deus porque seu predicado está não só em Deus”, mas também em todas as outras coisas reais; portanto, é muito mais ampla do que a essência de Deus e não pode ser-lhe intrínseca (In Sent., I, d. 3, q. 4, G).
A distinção entre essência e existência é peculiar à doutrina escolástica tradicional, e mesmo na filosofia moderna e contemporânea só é retomada por doutrinas a ela ligadas, sobretudo na elaboração dos conceitos teológicos. Fora do uso teológico, essa distinção foi retomada na filosofia contemporânea por Hartmann, como um dos fundamentos da sua ontologia. “Em cada ente”, diz ele, “há um momento de existência (Dasein). Com isso deve-se entender o fato puro e simples de que, em geral, ele está aí. E em cada ente há também um momento de essência (Soseirí). A este pertence tudo o que constitui a determinação específica ou a particularidade do ente, tudo o que este último possui em comum com um outro ou em virtude do que se distingue do outro, em resumo, tudo ‘aquilo que ele é’” (Zur Grundlegung der Ontologie, 2a ed., 1941, p. 92). Embora Hartmann pretenda distinguir o significado do termo que ele emprega, Sosein, do tradicional,
essentia, esse significado coincide com o que a tradição escolástica e especialmente o tomismo atribuía à quididade (quod quid erat esse) expressa pela definição. Hartmann também admite a distinção real entre essência e existência e considera a essência como possibilidade e a existência como a atualidade dela (Ibid., p. 95). Com um sentido que nada tem a ver com a distinção real do neoplatonismo árabe e do tomismo, a relação essência–existência foi utilizada na filosofia contemporânea para definir a natureza do homem. Diz Heidegger: “A natureza desse ente (do ser-aí [Dasein], do homem) consiste no seu ser-para. A essência (essentia) deste ente, no que em geral é possível falar dela, deve ser entendida a partir do seu ser (existentia)” (Sein und Zeit, § 9). Esse “primado da existência sobre a essência” não significa, para Heidegger, nem a separação real dos dois elementos, que para a escolástica era própria das criaturas, nem sua identidade real, que para a escolástica era própria de Deus; significa apenas que o modo de ser do homem, ou seja, a existência, só pode ser esclarecida e compreendida a partir do fato de que o homem está aí (existe), ou seja, existe no mundo e entre os outros entes (v. existência). [Abbagnano]
A distinção no ser de um aspecto essência e de um aspecto existência é um destes dados imediatos que praticamente é reconhecido por todos. O ser nos aparece como “o que é”, isto é, como uma certa coisa, uma essência, que tem a propriedade notável de ser ou de existir. Que se tente eliminar totalmente pelo pensamento um destes dois aspectos e a noção mesma de ser desaparece.
Admitido isto, pode-se em seguida procurar precisar o que representa corretamente esta relação essência–existência e que lugar ou que função tem, na estrutura mesma do ser, cada um dos termos que ele implica. Duas posições características podem ser adotadas na solução do problema: ou se considera conjuntamente o ser como um bloco indiviso, do qual a essência e a existência definem somente dois aspectos subjetivos. Dir-se-á, neste caso, que entre essência e existência há somente uma distinção de razão, isto é, que não tem realidade senão no espírito que a concebe, mesmo que seja objetivamente fundada. Ou far-se-á da essência e da existência princípios ontológicos distintos cuja composição daria conta da estrutura metafísica profunda do ser. Afirma-se então que existe uma distinção real entre essência e existência, especificando-se bem, como veremos, que não se trata de uma distinção de coisas previamente existentes – o que não teria sentido mas de princípios interdependentes.
Do ponto de vista filosófico, este problema se. encontra colocado pelo fato da multiplicação formal e da limitação dos seres criados e, subsidiariamente, pela questão da relação destes seres com o ser incriado, único e infinito. Eis aí, com efeito, seres limitados e múltiplos. Por que são eles assim limitados e múltiplos? Considerando a multiplicidade dos indivíduos materiais, somos levados a dizer que isto se deve ao fato de tais seres serem compostos de matéria e de forma: a matéria recebe a forma que ela limita e multiplica. Mas se nos colocamos em face de uma multiplicidade de formas, e especialmente de formas puras, o que são para Tomás de Aquino as substâncias angélicas, a solução invocada, para o caso dos seres corporais, não tem mais valor: não há mais, aqui, matéria para limitar e multiplicar. É então que se é levado a perguntar se, no seio das próprias formas puras, não haveria uma composição, de outra ordem que a de matéria e forma, que viria dar conta da sua limitação e da sua multiplicação. Se, de outro lado, se consideram os seres limitados na sua referência ao ser ilimitado e incriado, pode-se perguntar o que fará com que toda essa multiplicidade de seres não venha a se perder na unidade panteísta do único ser primeiro. Com toda evidência deve haver entre os seres limitados e o ser infinito na sua simplicidade uma diferença de estrutura que parece requerer nos primeiros uma complexidade interna.
Aristóteles, que não observou nitidamente o problema da multiplicidade formal nem o da relação dos seres limitados com o ato puro, não pôde tratar explicitamente da distinção que nos ocupa. Nada, entretanto, a isto se opõe em sua filosofia; pode-se mesmo dizer que pela sua dupla orientação rumo ao concreto do indivíduo existente e rumo aos valores inteligíveis da essência, tal filosofia ia logicamente nesse sentido. É com o neo-platonismo que se começa verdadeiramente a abordar o assunto. Boécio em um texto do De hebdomadibus, do qual em seguida nos serviremos em favor da distinção real, já distingue no ser o esse e o quod est, mas é claro que nada disse da realidade desta distinção. É preciso avançar até a filosofia árabe para encontrá-la explicitamente reconhecida. Avicena irá mesmo até fazer da existência uma espécie de acidente da essência, o que Tomás de Aquino, seguindo Averróis, retomará vivamente. É incontestavelmente ao Doutor angélico que cabe a honra de ter elaborado esta doutrina e de ter sistematicamente desenvolvido as consequências. Mas, nele procurar-se-ia em vão uma justificação explícita e formal da realidade da distinção em questão. A controvérsia sobre este assunto não estava ainda começada. Entretanto, essa tese se encontra implicada em todos os seus textos de modo tal que todo o conjunto se desagrega se interpretarmos os textos em um outro sentido. A polêmica somente tomará consistência após sua morte, quando Gilles de Roma, tendo afirmado a realidade da distinção, atraiu sobre si as críticas de Henri le Gand. Ulteriormente Scoto e Suarez, negando a realidade da distinção, provocarão discussões sem fim. Para todo esse histórico poder-se-á consultar com fruto a Introdução da edição por Roland-Gosselin do Ente et Essentia de Tomás de Aquino.
Da obra de Tomás de Aquino podem-se extrair duas provas principais da realidade dessa distinção: a primeira fundando-se sobre a distinção objetiva de seus dois princípios, a segunda repousando sobre a constatação de que em todo ser onde a existência se encontra recebida, a essência e a existência são realmente distintas.
Primeira prova (Cf. De ente et essentia, c. 5): Tudo o que não está contido na concepção que formamos da essência de uma coisa é-lhe acrescido do exterior; ora, colocado à parte o caso do ser cuja essência seria existir, isto é Deus, a existência de uma coisa não está contida na concepção que formamos de sua essência, sendo-lhe, portanto, acrescentada.
“Tudo o que não pertence ao conteúdo intelectual da essência ou da quididade lhe advém do exterior e entra em composição com ela, sendo dado que nenhuma essência pode ser apreendida pela inteligência sem suas partes. Ora, toda essência ou quididade pode ser compreendida sem que se tenha conhecimento de sua existência: posso, com efeito, compreender o que é um homem ou um fênix e ignorar entretanto se eles existem efetivamente na realidade. É, portanto, evidente que a existência é outra coisa do que a essência ou a quididade, colocado à parte o caso de uma coisa cuja quidade seria sua própria existência, e esta coisa só pode ser única e primeira… Donde se segue que em toda coisa diversa dela mesma, uma coisa é sua, existência e outra coisa sua quididade, ou sua natureza, ou sua forma”.
Segunda prova. Na maior parte dos casos Tomás de Aquino desenvolve seu pensamento colocando em paralelo o caso das coisas criadas, nas quais há uma real distinção da essência e da existência, e o caso do ser primeiro cuja essência é idêntica ao seu ser, o que supõe, evidentemente, demonstrada a existência de Deus. Este argumento, cujo fundo é sempre o mesmo, pode revestir várias formas. Eis como se encontra na Suma Teológica (Ia Pa, q. 3, a. 4).
Tudo o que está em um ser além de sua essência deve ser causado, seja pelos princípios desta essência … seja por qualquer coisa de exterior: “Quidquid est in aliquo quod est praeter essentiam ejus, opportet esse causatum, vel a principiis essentiae vel ab aliquo exteriori…”
Ora, é impossível que a existência seja causada somente a partir dos princípios essenciais de uma coisa, pois nenhuma coisa, se ela é um ser causado, é capaz por si mesma de ser causa deste ser: “impossibile est autem quod sit causarem tantum ex principiis essentialibus rei, quia nulla res sufficit quod sit sibi causa essendi si habeat esse causatum”.
É preciso pois que aquilo cuja existência é outra coisa do que a essência tenha seu ser causado por um outro: “oportet ergo quod illud cujus esse est aliud ab essentia sua habeat esse causatum ab alio”.
Donde se conclui que, ao mesmo tempo, em Deus, cujo ser é incausado, há identidade entre essência e existência, ao passo que nas criaturas, cujo ser é causado, uma coisa é a essência (aliud) e outra coisa é a existência (aliud).
Completa-se a prova observando-se que o ser cuja essência é idêntica à existência sendo único, todos os outros seres implicam a distinção real e que o ser que se encontra no primeiro caso é causa dos outros.
Sentido exato desta distinção.
As objeções que são feitas a esta tese repousam sobre interpretações incorretas que são oferecidas; faz-se mister precisar exatamente os termos
O ser do qual se procuram determinar os princípios componentes é a substância concreta existindo atualmente e não o simples possível. Não especulamos, pois, a propósito de uma noção, mas sim a propósito de realidades.
Nessa realidade distinguimos o sujeito essencial, res, e o que Tomás de Aquino chama indiferentemente ipsum esse, actus essendi, existentia; chamemos existência. E afirmamos que essa distinção é real. O que entendemos com isto? Que ela não existe simplesmente no espírito ou na razão, mas que é um dado estrutural do universo real. Entretanto, é preciso tomar cuidado em não se representar essa distinção como a de duas coisas que viriam se compor, tendo como resultado uma terceira. No plano da criatura, antes do ser, não há nem essência, nem existência, entidades que, por outro lado, são absolutamente incapazes de existir independentemente uma da outra. Nem a essência nem a existência existem isoladamente; somente existe o ser que elas compõem: são dois princípios correlativos que só têm realidade enquanto se completam.
É possível precisar que papel desempenha cada um dos elementos dessa distinção? O próprio Tomás de Aquino nos ensina que o esse desempenha a função de ato e a essência a de potência.
A existência se manifesta inicialmente como pura atualidade, e como ato ou perfeição última: esse est actualitas omnium -actuum et propter hoc est perfectio omnium perfectionum (De Pot., q. 7, a. 2, ad 9); ainda que a expressão seja equívoca: é o que existe, de mais formal em uma coisa. Em face disto, a essência aparece como uma potência, isto é, como uma capacidade real de receber, mas que é de um tipo bem diferente da matéria, pois ela própria é em sua ordem algo de atuado ou de determinado: a matéria das substâncias espirituais (entendendo-se com isto a essência) é, diz-nos Tomás de Aquino, um certo ser em ato, existindo em potência: aliquid ens actu in potentia existens (De substantiis separatis, c. 5, n: 35) . Essência e existência possuem, pois, cada uma em sua linha, valor de princípio determinante, permanecendo, contudo, que a existência é o ato último, a perfeição derradeira.
No momento em que se diz, enfim, que a essência recebe a existência, isto não é à maneira de um sujeito substancial que recebe de um acidente uma determinação nova; a existência não é um simples complemento do ser. Dever-se-ia dizer que ela é o que há de mais fundamental no ser concreto e que é a essência que vem determiná-la e limitá-la.
Todas estas considerações nos convidam a não utilizar senão de modo bastante analógico as noções de ato e de potência no caso privilegiado e único onde tais noções definem as relações da essência e da existência no ser criado. [Gardeil]