erga

ἔργα, erga; v. ergon

É com este sentido que se pode trazer à colação ο ἔργον ἴππου ou de qualquer outra coisa (República, 352e). Ο ἔργον é aquilo com o qual apenas se faz qualquer coisa ou se faz o melhor possível (Rep., 352e3). Assim, ο ἔργον dos olhos, e não os olhos só, é o que nos permite ver. Ο ἔργον dos ouvidos, e não apenas os ouvidos, é o que nos permite ouvir. A visão e a audição são os verdadeiros ἔργα (Rep., 352e9). Uma determinada ferramenta encontra o seu ἔργον na sua utilização específica. Um ramo de uma vinha pode ser cortado com uma faca (Rep., 353a1) ou com uma navalha tal como com muitos outros instrumentos de corte, só que nenhum deles o faz melhor (Rep., 353a4) do que a foice (ibid.), uma vez que foi concebida para este trabalho (Rep., 353a). De entre todo um conjunto de instrumentos que têm a possibilidade de cortar um cacho de uvas, é ela que realiza melhor essa possibilidade.


A língua grega não faz distinção entre “obras” e “feitos”, mas chama-os de erga quando são duráveis o bastante para subsistirem e grandiosos o bastante para serem lembrados. [ArendtCH, 3, nota]


A essa altura aparece, quase entre parênteses, a definição do escravo como “ser cuja obra é o uso do corpo”:

Aqueles homens que diferem entre si assim como a alma com relação ao corpo e o homem com relação ao animal – e estão nessa condição aqueles cuja obra é o uso do corpo [oson esti ergon he tou somatos chresis] e isto é o melhor (que pode vir) deles —, estes por natureza são escravos, para os quais é melhor ser comandados com esse comando, conforme já foi dito. [1254b 17-20]

O problema sobre qual é o ergon, a obra e a função própria do homem, havia sido apresentado por Aristóteles em Ética a Nicômaco. Frente à pergunta se há algo parecido com uma obra do homem como tal (e não simplesmente do carpinteiro, do flautista ou do sapateiro) ou se o homem, pelo contrário, nasceu sem obra (argos), Aristóteles aqui afirma que “a obra do homem é o ser-em-obra da alma segundo o logos” (ergon anthropou psyches energeia katà logon — 1098a 7). Por isso, é ainda mais singular a definição do escravo como aquele homem cuja obra consiste unicamente no uso do corpo. Que o escravo seja e continue sendo um homem está, para Aristóteles, fora de questão (anthropos on, “mesmo sendo homem…” — 1254a 16). Contudo, isso significa que há homens cujo ergon não é propriamente humano ou é diferente daquele dos outros homens.

Platão já havia escrito que a obra de cada ser (quer se trate de um homem, de um cavalo, de qualquer outro ser vivo) é “aquilo que ele é o único a fazer ou faz de modo mais belo do que outros” (monon ti e kallista ton allon apergazetai — A República, 353a 10). Os escravos representam a emergência de uma dimensão do humano em que a obra melhor (“o melhor deles” — o beltiston de Política remete com verossimilhança ao kallista de A República) -não é o ser-em-obra (energeia) da alma segundo o logos, mas algo para que Aristóteles encontra outra denominação, o “uso do corpo”.

Nas duas fórmulas simétricas, ergon anthropou psyches energeia katà logon e ergon (doulou) he tou somatos chresis, a obra do homem é o ser-em-ato da alma segundo o logos e a obra do escravo é o uso do corpo, energeia e chresis, ser-em-obra e uso, parecem justapor-se pontualmente, como psyche e soma, alma e corpo. [AGAMBEN, Giorgio. O Uso dos Corpos. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 22-23]