Husserl demonstra (Investigações Lógicas; Ideen I) que esse ceticismo apoiado no empirismo suprime-se contradizendo-se. Com efeito, o postulado de base para todo empirismo consiste na afirmação de que a experiência é a única fonte de verdade para qualquer conhecimento: mas essa afirmação mesma deve ser posta à prova da experiência. Ora, a experiência, fornecendo apenas o contingente e o singular, não pode fornecer à ciência o princípio universal e necessário de uma afirmação semelhante. O empirismo não pode ser compreendido pelo empirismo. Por outro lado, é impossível confundir por exemplo o fluxo de estados subjetivos experimentados pelo matemático enquanto ele raciocina e o raciocínio: as operações do raciocínio são definíveis independentemente desse fluxo; pode-se apenas dizer que o matemático raciocina corretamente quando por esse fluxo subjetivo acede à objetividade do raciocínio verdadeiro. Mas essa objetividade ideal é definida por condições lógicas e a verdade do raciocínio (sua não–contradição) impõe-se tanto ao matemático como ao lógico. O raciocínio verdadeiro é universalmente válido, o raciocínio falso é maculado de subjetividade, portanto instransmissível. Do mesmo modo um triângulo retângulo possui uma objetividade ideal no sentido que ele é o sujeito de um conjunto de predicados, inalienáveis sob pena de perder o próprio triângulo retângulo. Para evitar o equívoco da palavra “ideia”, diremos que ele possui uma essência, constituída por todos os predicados cuja supressão imaginária acarretaria a supressão do triângulo em pessoa. Por exemplo, todo triângulo é por essência convexo.
Mas, se permanecemos no nível dos “objetos” matemáticos, o argumento formalista, que faz desses objetos concepções convencionais, permanece poderoso; demonstrar-se-á por exemplo que os pretensos caracteres essenciais do objeto matemático são na realidade dedutíveis a partir de axiomas. Por esse motivo, Husserl amplia, a partir do segundo temo das Recherches logiques, sua teoria da essência para aplicá-la ao terreno favorito do empirismo, a percepção. Quando dizemos “a parede é amarela” estarão implicadas nesse juízo as essências? E, por exemplo, a cor poderá ser tomada independentemente da superfície sobre a qual se “expõe”? Não, pois uma cor separada do espaço em que ela se dá seria impensável. Pois se, fazendo “variar” pela imaginação o objeto cor, retiramos a ele seu predicado “extensão”, suprimimos a possibilidade do próprio objeto cor, chegamos a uma consciência de impossibilidade. Esta revela a essência. Há, portanto, nos juízos dos limites à nossa fantasia, que nos são fixados pelas próprias coisas de que há juízo e que a Fantasia mesma revela graças ao processo da variação.
O processo da variação imaginária dá-nos a própria essência, o ser do objeto. O objeto (Objekt) é “uma coisa qualquer” por exemplo o número dois, a nota dó, o círculo, uma proposição qualquer, um dado sensível (Ideen I). Fazemo-lo “variar” arbitrariamente, obedecendo apenas à evidência atual e vivida do eu posso ou não posso. A essência ou eidos do objeto é constituído pelo invariante que permanece idêntico através das variações. Assim, se se opera a variação sobre o objeto como coisa sensível, obtém-se como ser mesmo da coisa: o conjunto espaço–temporal, provido de qualidades segundas, colocado como substância e unidade causai. A essência se experimenta pois numa intuição vivida; a “visão das essências” (Wesenschau) não possui qualquer caráter metafísico, a teoria das essências não se enquadra num realismo platônico em que a existência da essência seria afirmada, a essência é somente aquilo em que a “própria coisa” me é revelada numa doação originária.
Tratava-se exatamente, como o queria o empirismo, de voltar “às próprias coisas” (zu den Sachen selbst), de suprimir toda opção metafísica. Mas o empirismo era ainda metafísico quando confundia essa exigência do retorno às coisas com a exigência de fundar todo o conhecimento na experiência, considerando como conhecimento indiscutível que só a experiência nos dá as próprias coisas: há um preconceito empírico, pragmatista. Na realidade, a última fonte de direito para qualquer afirmação racional está no “ver” (sehen) em geral, isto é, na consciência doadora originária (Ideen). Não pressupomos nada, diz Husserl, “nem mesmo o conceito de filosofia”. E quando o psicologismo pretende identificar o eidos, obtido pela variação, com o conceito cuja gênese é psicológica e empírica, respondemos apenas que, se ele quer se limitar à intuição originária tomando-a como sua lei, seus conhecimentos a respeito são menores do que ele pretende. O número dois é talvez, considerado como conceito, construído a partir da experiência, mas na medida em que eu obtenho desse número o eidos por variação, eu afirmo que este eidos é “anterior” a qualquer teoria da construção do número e a prova é que toda explicação genética se apóia sempre no saber atual da “alguma coisa” que a gênese deve explicar. A interpretação empirista da formação do número dois pressupõe a compreensão originária desse número. Esta compreensão é portanto uma condição para toda ciência empírica; o eidos que ela nos oferece é apenas um puro possível, mas existe uma anterioridade desse possível em relação ao real de que trata a ciência empírica. [Lyotard]