Uma primeira vez, no estudo geral do vivente, havíamos abordado o problema da alma. Eis o que havíamos concluído.
A alma, antes de tudo, apareceu-nos como o primeiro princípio de vida, concepção espontânea e comum em filosofia. Considerando, em seguida, a alma, na linha da teoria hilemorfista da substância, fomos levados a esta segunda afirmação, característica do peripatetismo: a alma é a forma do corpo. Disto decorria todo um conjunto de propriedades: sendo princípio formal de um vivente que é uno, a alma só pode ser una e única; consequentemente, é indivisível e encontra-se toda inteira presente em todas as partes do corpo. Ainda mais, em conformidade com as leis gerais das substâncias físicas, impõe-se que desapareça ou se corrompa quando se dissolver o composto.
Sobre és-te último ponto, já havíamos reservado o caso da alma humana que, sendo princípio de uma vida de grau mais elevado, a vida iniciativa, parecia gozar de prerrogativas especiais e diferir mesmo, em sua natureza profunda, das almas inferiores. É o que devemos presentemente estabelecer de maneira mais explícita.
A afirmação da separação, com relação à matéria, do mundo inteligível, e, consequentemente, da alma intelectiva, havia sido uma das conquistas essenciais do platonismo. Em reação contra o que lhe parecia excessivo nesta teoria, Aristóteles havia proposto sua fórmula original da definição da alma como forma do corpo. Mas, nesta concepção, o problema de um “noûs” puramente espiritual encontrava-se apenas diferido e, efetivamente, nós o vemos reaparecer quando é abordada a questão da vida intelectiva (De Anima III, c. 4 e 5).
A potência de conhecer manifesta-se, então, dotada de propriedades que a distinguem absolutamente das realidades materiais. De uma parte (cf. c. 4, 429, a 18-28), como o queria Anaxágoras, ela deve ser sem mistura, isto é, privada de todas as naturezas corporais: estando, com efeito, em potência para todas as determinações destas naturezas, o intelecto não deve atualmente possuir nenhuma. De outra parte (cf. 5, 430 a. 17), surge esta potência, enquanto agente, como separada da matéria, imortal e eterna.
Estas passagens, vimos, não deixaram de suscitar interpretações diversas por causa de sua obscuridade. Antes de Tomás de Aquino, concluía-se mais comumente pela existência de um princípio intelectivo espiritual, mas absolutamente separado e único para todos os homens, sacrificando-se assim a imortalidade pessoal da alma.
A posição de Tomás de Aquino. Como todos os doutores cristãos, Tomás de Aquino possuía, pela Revelação, uma doutrina da alma espiritual e imortal que se lhe impunha. Assim, não se deve surpreender ao vê-lo dar aos textos precedentes, de acordo com esta doutrina, um sentido ao mesmo tempo espiritualista e personalista: a alma humana é forma do corpo, mas tem a mais uma subsistência espiritual em cada indivíduo e é incorruptível. A dimensão destas afirmações deverá ser bem precisada. (§ II. A natureza da alma humana.)
Mas, à luz da Filosofia Cristã, e em particular do agostinianismo, novos aprofundamentos se impõem. O mundo dos espíritos, em todas as suas dimensões, espírito humano, espírito angélico, espírito divino, encontra-se aberto a nossos olhos. A alma espiritual não trará em si a marca deste mundo superior, e não participará de sua vida mais íntima? É o que haveremos de perguntar, em segundo lugar (§ III. A estrutura intelectiva da alma humana).
Três afirmações exprimem essencialmente a doutrina da natureza da alma humana: a alma humana é espiritual, é subsistente, é incorruptível.
– A alma humana é espiritual.
A natureza de nossa alma, já o sabemos, só se nos pode manifestar através de suas operações, pois só elas nos são diretamente perceptíveis.
Consideremos aquela operação que, entre as outras, pertence especificamente ao homem: a intelecção. Sua espiritualidade manifesta-se de dois pontos de vista.
Quanto a seu objeto, antes de tudo. Com efeito, pelo fato de todas as naturezas corporais poderem ser apreendidas pela nossa faculdade superior de conhecer, impõe-se que esta faculdade não seja determinadamente nenhuma destas naturezas, portanto, que seja incorpórea, ou espiritual. É o que Tomás de Aquino exprime perfeitamente nesta passagem da Summa:
“É manifesto que o homem, por sua inteligência, pode conhecer as naturezas de todos os corpos. Ora, impõe-se que o que tem o poder de conhecer algumas coisas, não possua nada delas em si: assim, vemos que a língua do enfermo que está infectada de bílis e de humor amargo, não pode ter a percepção do doce e que tudo lhe apareça amargo. Se, pois, o princípio intelectivo possuísse em si a natureza de algum corpo, não poderia ter o conhecimento de todos, tendo cada um deles, com efeito, uma natureza determinada. É, portanto, impossível que o princípio intelectual seja um corpo. . . “. Ia Pª, q. 75 a. 2
Nem tampouco, continua Tomás de Aquino, deve-se dizer que a inteligência é mesclada de corporeidade em virtude dos órgãos que utiliza. Tendo uma natureza determinada, tais órgãos não poderiam deixar de fazer obstáculo ao conhecimento de todos os corpos:
“Assim, se houvesse uma cor determinada, não somente na pupila mas ainda em um vaso de vidro, o líquido que nele se lançasse apareceria da mesma cor O próprio princípio intelectual que é chamado de “mens” ou intelecto tem, portanto, uma operação própria pela qual não entra em comunhão direta com o corpo.”
Em segundo lugar, quanto a seu modo. A inteligência, com efeito, de si capta seu objeto de modo abstrato e universal, ou independentemente de todas as circunstâncias materiais. Ainda mais, graças a seu processo abstrativo, esta faculdade é capaz de representar realidades puramente espirituais, o que não seria possível se ela mesma estivesse, em seu ato, implicada na matéria. A operação intelectual, por estas razões, só pode ser puramente espiritual.
Mas, tal ser, tal operação, e inversamente. Portanto da imaterialidade da operação deve-se subir imediatamente à imaterialidade de seu princípio: de modo que a espiritualidade requerida pelas condições da intelecção é ao mesmo tempo suposta para o ato, para a potência e também para o ser que está em sua raiz.
– A subsistência da alma espiritual.
Que a alma seja de per si subsistente, um “hoc aliquid” como diz Tomás de Aquino, isto se segue, igualmente de modo imediato, do que acaba de ser estabelecido. Nada, com efeito, pode agir a título de princípio radical se não for de per si subsistente: a alma espiritual, a “mens”, o mais profundo princípio de vida intelectiva, é, portanto, uma substância espiritual.
Mas, nestas condições, não somos levados invencivelmente à tese sustentada por Platão de uma alma bastando-se a si mesma e tendo no corpo somente uma habitação precária? Como manter ao mesmo tempo que a alma é a forma do corpo e que o indivíduo humano é uno? Reconhecendo, como Tomás de Aquino, que há para um ser dois modos de subsistir: de modo especificamente completo, como acontece para esta planta, para esta pedra e igualmente para este homem, e de modo especificamente incompleto, como é o caso da alma: a alma humana, com efeito, como substância específica, só se encontra acabada e perfeita se unida ao corpo … Seja na formulação precisa de Tomás de Aquino:
“Relinquitur igitur quod anima est hoc aliquid ut per se potens subsistere, non quasi habens in se completam speciem, sed quasi perficiens speciem humanam ut forma corporis, et sic similiter est forma et hoc aliquid” Quaest. Disput. De Anima, a. 1
– A incorruptibilidade da alma.
A afirmação da incorruptibilidade ou, o que dá no mesmo, da imortalidade da alma, é tão-somente uma consequência do que precede.
Uma coisa, com efeito, pode corromper-se de duas maneiras: acidentalmente (per accidens) ou de per si (per se). Corrompe-se de modo acidental (per accidens) aquilo que desaparece com a supressão de uma realidade conjunta, como as formas que se encontram em um sujeito que é destruído. Assim, nos animais, a corrupção do indivíduo acarreta o desaparecimento da forma substancial ou da alma. É claro que um tal modo de corrupção não pode ser reconhecido para um ser que, como a alma, subsiste por si (per se), isto é, independentemente de qualquer outro. Portanto, aqui só se pode falar em corrupção substancial, ou que atinge em si a coisa considerada. Ora, também isto é impossível. Sendo uma forma absolutamente simples, a alma não pode perder aquilo que é seu constitutivo próprio, sua forma. Nem tampouco pode perder, por si mesma, seu ser que com ela é solidário: assim é incorruptível e por consequência imortal. Segue-se daí que de nenhum modo possa desaparecer? Uma tal conclusão é evidentemente absurda. O ser da alma é criado: continua, pois, na dependência da causa que está no seu princípio, a qual, como pôde criá-la, pode igualmente aniquilá-la, pois nenhum agente subordinado tem poder sobre si próprio. Incorruptível ou imortal no plano da realidade criada e de sua eficacidade, traz a alma em seu ser profundo o estigma de absoluta submissão ao seu criador.
Não é sem interesse revelar que ao lado dessa argumentação em favor da incorruptibilidade da alma, Tomás de Aquino faça valer uma outra prova que se apoia, por sinal, sobre o desejo da imortalidade, o qual, sendo um desejo natural, não pode ser vão. Eis o argumento em sua forma original:
“Cada coisa deseja, de maneira natural, existir do modo que lhe convém; ora, nos seres cognoscentes, o desejo segue-se ao conhecimento; o sentido, por sua parte, só conhece o que existe hic et nunc, enquanto a inteligência apreende o ser de modo absoluto e independentemente do tempo. Segue-se que todos os que têm uma inteligência, têm o desejo de uma existência perpétua. Mas um desejo de natureza não pode ser vão: toda substância intelectual é, portanto, incorruptível” I, c. 75, a. 6 [Gardeil]