dever ser

(gr. to deon; in. Oughtness; fr. Devoir-être; al. Sollen; it. Dover esseré).

O possível normativo: aquilo que é bom que aconteça ou que se pode prever ou exigir com base em uma norma. Platão dizia que, se é verdadeira a doutrina de Anaxágoras, de uma Inteligência que ordena o mundo do melhor modo, então “o bem e o dever-ser sustentam e agregam todas as coisas” (Fed., 99c). Na filosofia moderna, essa noção foi ilustrada por Kant, que diz: “O dever-ser exprime uma espécie de necessidade e uma relação com princípios que não se verificam absolutamente na natureza. Nesta, o intelecto pode conhecer só o que é, foi ou será. É impossível que alguma coisa deva ser diferente do que foi de fato em suas relações temporais. Quando se observa o curso da natureza, o dever-ser não tem o menor significado. Não podemos perguntar o que deve acontecer na natureza, assim como não podemos procurar saber que propriedades deve ter o círculo, mas apenas o que acontece nela, ou quais propriedades este possui. O dever-ser exprime uma ação possível, cujo princípio é apenas um conceito, ao passo que o princípio de uma ação natural só pode ser um fenômeno. É verdade que a ação deve ser possível nas condições naturais se o dever-ser visar a elas; mas tais condições não atingem a determinação do arbítrio, mas apenas o efeito e a consequência dela no fenômeno” (Crít. R. Pura, Dial., cap. II, seç. 9, § 3). Essas determinações de Kant deixam claro que a esfera do dever-ser é a ação humana: o dever-ser, que não tem sentido no mundo natural, é o princípio do mundo humano. Mas esse reconhecimento equivale a admitir que, no mundo humano, a distinção entre o que acontece de fato e o que se poderia esperar que acontecesse, a partir das normas que o regulam, deve manter-se constante. Onde é reconhecido ou introduzido o dever-ser obviamente é reconhecida e introduzida a sua diferença possível em relação ao ser de fato, bem como a possibilidade de julgar este em relação àquele. Assim se explica por que Hegel, que põe como princípio de sua filosofia a identidade entre real e racional, nega qualquer função ao dever-ser e considera-o mero fantasma. “À realidade do racional”, diz ele, “contrapõe-se, de um lado, a visão de que as ideias e os ideais são apenas quimeras e que a filosofia é um sistema desses fantasmas cerebrais, e, de outro, a visão de que as ideias e os ideais são algo excelente demais para ter realidade ou impotente demais para atingi-la. Mas a separação entre realidade e ideia é muito apreciada pelo intelecto, que considera verazes os sonhos de suas abstrações e tem muito orgulho de seu dever-ser, que apregoa de bom-grado até mesmo no campo político, como se o mundo houvesse esperado esses ditames para aprender como deve ser e não é: pois se fosse como deve ser, aonde iria parar o pedantismo desse dever-ser?” (Enc., § 6). As obras de Hegel demoram-se muitas vezes em observações irônicas e sarcásticas sobre o dever-ser que não é, sobre o ideal que não é real, sobre a razão que se supõe impotente para realizar-se no mundo. Segundo ele, a filosofia não tem a tarefa de considerar o que deve ser, mas o que é “real e presente” (Ibid., % 38). É como a coruja de Minerva, que começa a voar no crepúsculo, ou seja, chega sempre tarde demais, quando a realidade já cumpriu o seu processo de formação e está pronta (Fil. do dir., Pref.). Em outras palavras, não cabe à filosofia outra tarefa senão reconhecer, justificar e exaltar como “racionalidade absoluta” o fato consumado. Trata-se, em substância, de uma recusa da filosofia de inserir-se na realidade e de valer como sua força modificadora e diretiva. Essa recusa foi típica da filosofia romântica, que, segundo expressão do próprio Hegel, quis “estar em paz com a realidade” e abdicou da tarefa assumida pela filosofia do Iluminismo, de transformar a realidade.

A atitude em face do dever-ser é, portanto, a pedra de toque das filosofias contemporâneas, porque revela se elas se orientam segundo a tradição iluminista, clássica e renascentista, ou segundo a tradição romântica, helenística e medieval. Mas é necessário lembrar que nem sempre a importância predominante atribuída à noção de dever-ser é sinal do caráter clássico-iluminista de uma filosofia. A chamada filosofia dos valores do século passado, que conta entre seus representantes principais com Windelband e Rickert, fez do dever-ser o centro da sua especulação, mas o transformou em uma realidade sui generis, o valor ou sua consciência, considerada independente de suas manifestações empíricas; por isso, foi substancialmente infiel à noção kantiana do dever-ser, em que declarava inspirar-se. De modo análogo, a interpretação que Nicolau Hartmann faz do dever-ser equivale à sua negação. O dever-ser, segundo Hartmann, só prescreve a realização daquilo que pode e deve necessariamente realizar-se, quando nada falta às condições de sua realização; por isso, é a própria possibilidade real, que é sempre uma efetividade, ainda que não pareça. (Möglichkeit und Wirklichkeit, p. 266). Por outro lado, a noção de dever-ser foi posta como base do positivismo jurídico, por Hans Kelsen. Diz Kelsen: “O dever-ser exprime o sentido específico no qual o comportamento humano é determinado por uma norma. Tudo o que podemos fazer para descrever tal sentido é declarar que ele difere do sentido pelo qual dizemos que um indivíduo se comporta efetivamente de certa forma e que algo acontece ou existe efetivamente” (General Theory of Law and State, 1945,1,1, C., a, 5; trad. it., p. 36). Kelsen, todavia, reconhece que a tensão entre norma e existência não deve ser superior a certo máximo, nem inferior a certo mínimo: a conduta efetiva não deve coincidir completamente com a norma que a regula nem discrepar completamente dela (Ibid., Apêndice, IV, B, c; p. 444) (v. norma). [Abbagnano]