René Descartes (Cartesius, falecido em 1650), pondo em dúvida, por meio de sua “dúvida metódica”, todos os fatos e verdades, com exceção da só proposição “Cogito, ergo sum”, foi, antes de mais nada, um desbravador de novos caminhos no domínio da crítica do conhecimento. Partindo daquela proposição, ainda hoje discutível em seu significado, Descartes propôs-se reconstruir todo o universo mediante o critério nela posto à prova, a saber: as percepções claras e distintas não podem ser falsas. Assim, conhecemos nossa alma como substância imaterial, cuja essência é o pensamento; conhecemos outrossim a existência de Deus pela mera consideração do seu conceito que inclui clara e distintamente a existência — as outras duas provas da existência de Deus são menos características — e conhecemos, por último, a existência do mundo externo, que nos é garantida pela veracidade de Deus, o qual não pode permitir que nossa tendência natural para admitir um mundo corpóreo nos iluda. — Em sua antropologia, Descartes prescinde completamente do fato da relação mútua existente entre alma e corpo, quando arvora o pensamento em essência da alma e volatiliza na pura extensão a essência do corpo, dotado de uma só atividade que consiste no movimento local. .Não existe, por conseguinte, união íntima entre a alma e o corpo; a alma habita no corpo como numa máquina ou num autômato. O corpo é mantido na vida pelo “calor vital”, que tem sua sede no coração, ao passo que a alma se encontra localizada na glândula pineal. Não havendo nenhuma influência recíproca entre alma e corpo, a alma não recebe do mundo sensível seus conceitos, mas possui ideias “inatas”, ou seja, produzidas por si mesma, servindo a experiência externa de mera causa ocasional.
Por sua epistemologia, Descartes tornou-se o pai da moderna crítica subjetivista do conhecimento; seu ocasionalismo encontrou expressão exacerbada em Malebranche (ontologismo); seu método racionalista foi continuado por Spinoza e Leibniz; e, acima de tudo, sua concepção mecanicista da natureza passou a fazer parte da moderna cosmovisão, a qual sem dúvida, em tempos muito recentes, associou ao movimento a força imanente às coisas ou até constitutiva Bacon foi um anunciador, Descartes um revelador. E não vai exagero na expressão. Com este francês o mundo entrou num caminho novo quanto à orientação do pensamento, e as consequências foram e ainda são incalculáveis. Quando se considera um pouco mais de perto a figura de Descartes, que à primeira vista não parece muito simpática, fica-se surpreendido, ao invés, por descobrir nela tão singular atração. É que foi um homem devotado de corpo e alma ao objetivo mais nobre que a existência terrestre nos possa propor: a busca da verdade. Vitam impendere vero: esta divisa lhe convinha muito mais do que a Rousseau, que não receou adotá-la. Animado pelo desejo, pela paixão de conhecer, retirou-se do mundo para satisfazê-la e, embora houvesse passado pela sociedade a fim de observá-la, desviou-se das honrarias e da glória, sem desdenhá-las todavia quando o procuravam e não lhe causavam embaraços. Tão ardente curiosidade não foi apenas de ordem especulativa. Uma das razões que o levaram a insurgir-se contra a escola antiga foi o desprezo que esta votava às ciências da natureza, afirmando que delas nenhum resultado ou proveito se podia tirar. Descartes entendia penetrar os segredos da natureza não somente para desvendá-los, mas também para utilizá-la e submetê-la. Era o mesmo objetivo de Bacon e continua ainda a ser o nosso. O pensador, contudo, não se restringia a ele e no fundo foi o pensamento que constituiu sempre o alvo principal do seu estudo. Este duplo aspecto teórico e prático do seu espírito já o explica, como também lhe explica a filosofia; foi ainda a vocação de Descartes que lhe formou o caráter. Não foi em absoluto um homem intratável que vivesse à margem dos outros homens. Cultivou a amizade e, se bem que ignoremos tudo da sua vida sentimental, sabe-se que teve uma filha ilegítima. Mostrou virtudes e facetas agradáveis, como também mostrou caprichos e acessos de selvageria. O notável é que era ainda a sua carreira de sábio que os ditava. Conheceu e desconheceu Pascal, e pressente-se entre ambos a rivalidade. Teve profunda estima por Mersenne, um amigo de verdade e um jactotum muito serviçal. Defendeu-se com galhardia contra os seus adversários da Holanda e de outras terras. Enfim, o retiro em que se enclausurou tão cedo, as precauções de que se cercava, a prudência com que avançava — larvatus prodeo — os cuidados que tomava para evitar a sorte de um Galileu, tudo isso manifesta a consciência clara de uma existência a ser vivida, de uma obra a realizar, de uma preocupação superior a que se devem subordinar todas as demais preocupações. Um sábio, em suma. E é bem possível que tudo quanto se deve dizer acerca do seu caráter esteja resumido nestas palavras de Baillet, o biógrafo que lhe esboçou um retrato escassamente idealizado e sem dúvida o mais próximo do original: “…uma das máximas principais que prescrevera para a orientação da sua vida era a de procurar antes vencer a si mesmo do que à fortuna e mudar antes os seus desejos do que a ordem do mundo”. Este texto se encontra, aliás, no Discurso do método. Nasceu no ano de 1596 em La Haye, na Turena, e tinha ascendentes oriundos do Poitou. Fez os seus estudos no colégio dos jesuítas de La Flèche; o que foram esses estudos e a impressão que deles guardou, sabemo-lo por ele mesmo através da autobiografia intelectual que é o Discurso do método. Aprendeu filosofia com Aristóteles e o horror que este lhe infundiu acabou por assumir a feição de um ódio pessoal. Isto se compreende. Uma escolástica degenerada já não lembrava sequer o valor e a grandeza da escolástica, e a igreja cometera o erro de converter simples questões de física em questões de dogma. No tempo de Galileu pretendia-se impor pela força, em astronomia, o sistema de Ptolomeu. Um gênio como o de Descartes, aberto à livre observação das atividades do espírito e da natureza, não podia fazer outra coisa senão revoltar-se. Fê-lo com prudência, como dissemos acima, e não se revelando senão paulatinamente, mas de maneira irrevogável e sem voltar atrás. Continuava entretanto a estudar, pois em 1616 encontramo-lo a cursar direito em Poitiers e a manusear ainda os livros. Como estes já o não satisfizessem, pensava em passar ao livro do mundo. Teria ele conhecido nessa época a vida de sociedade e uma certa dissipação? É o que se tem insinuado, sem provas suficientes. O que nos surpreende é vê-lo engajar-se então na carreira das armas. Talvez como meio de conhecer novas terras? Alistou-se sob as ordens de Maurício de Nassau, na Holanda, e um pouco mais tarde encontrava-se em campanha a serviço do Duque da Baviera. Tomou parte no cerco de Praga e na batalha da Montanha Branca, em 1620. É difícil imaginar, apesar das afirmações de Baillet, que não se tenha batido, pois, como diz Louis Dimier, “não há meio de ver a guerra sem fazê-la” e Descartes era um autêntico soldado. Sabemos de outras fontes que possuía coragem, e ele mesmo fala de um certo “calor do fígado” que, nesse tempo, o fazia “amar as armas”. Tudo isso é bastante explícito e significativo. Mas esse meditativo não esquecia a meditação. Voltou a ela para tornar a encontrar o seu caminho. Já na Alemanha, encerra-se na famosa estufa (entenda-se num quarto bem aquecido) onde procede às suas pesquisas. Teve a sua noite, que não foi, como a de Pascal, uma revelação fulminante, mas em que tomou consciência do seu alvo e dos seus meios. Em 1628, após ter conduzido essa deliberação durante perto de dez anos e afastado a ideia de qualquer cargo temporal, fixou-se na Holanda, onde residiu em várias localidades, de preferência no campo: em Engeest, próximo de Leyde, em Egmond. Não abandonou mais o país, salvo para realizar algumas rápidas viagens e para ir morrer na Suécia, vinte anos mais tarde. Aquilo a que decidira aplicar-se era uma reforma total dos métodos da inteligência, que ele liberava e devolvia a si própria a fim de levá-la a enfrentar plenamente a sua sorte. Chegara a esta conclusão por estudos anteriores, muitas vezes todo especiais; pelas mesmas vias procedia à ilustração do que descobrira. A glória lhe veio sem que a tivesse procurado — muito ao contrário, apesar de todas as precauções que tomara para evitá-la — com todas as suas importunações, as suas frivolidades e os seus perigos. O homem que se pusera a salvo da igreja católica encontrava a perseguição das seitas luteranas. Defendeu-se aliás muito bem, pondo em campo amigos dedicados e poderosos; respondeu igualmente a outros adversários no puro terreno da ciência e soube garantir e fazer valer a sua obra, mas sem outro interesse que não o dessa obra, pois não levava absolutamente em consideração a sua pessoa. Cônscio do seu valor e do seu papel, permaneceu humilde, ou melhor: simples, e não lhe faltava nem bondade nem paciência, exceção feita de alguns ímpetos de mau humor. Sua personalidade define-se admiravelmente na preciosa correspondência com Elisabete, divulgada por Jacques Chevalier sob o título Cartas sobre a moral, e em suas relações com a rainha Cristina. Vemos aí, uma soberana e uma princesa de sangue real tratarem de igual para igual com o filósofo, a quem testemunham uma tocante amizade, enquanto ele, sem se apartar das conveniências, lhes fala como a filhas espirituais. O fim é conhecido: Cristina atraindo Descartes a Estocolmo para receber-lhe diretamente as lições e os conselhos, e Descartes, incapaz de resistir às inclemências do clima, falecendo ao cabo de poucos meses, em 11 de março de 1650. Seus restos mortais foram trasladados para Paris, onde repousam na igreja de S. Estêvão do Monte. O Discurso do método apareceu em 1636. Era o prefácio de um livro intitulado “Ensaios” e compreendia uma Dióptrica, um Tratado dos meteoros e uma Geometria. O êxito foi estrondoso. Aliás, tinha sido preparado. A reputação, naquele tempo, precedia os livros e os “curiosos”, como se dizia, comunicavam uns com os outros e se informavam mutuamente dos seus trabalhos. O conteúdo da obra, por outro lado, era significativo. Descartes fora apreciado até então como homem de ciência. O que afirmava aqui, outrossim, e o que iria confirmar, era a sua qualidade de filósofo. Entretanto, esta não nos deve fazer esquecer a outra, nem tampouco o fato de ter ele sempre apoiado a sua filosofia na experiência e em trabalhos exatos sobre matérias que eram da sua especialidade. Em 1641 veio a lume o complemento ou comentário do Discurso, as Meditações. Escritas em latim, traduziu-as o Duque de Luynes sob a direção e com as correções do autor. Suscitaram objeções que por sua vez provocaram “respostas” dotadas de grande alcance, com as quais se enriqueceu a obra. Controvérsias sobre pontos mais especiais, mas conduzidas num tom singularmente mais vivo e com outros adversários, notadamente o reitor da Universidade de Utrecht, Voetius, induziram Descartes a escrever, de 1642 a 1647, uma Carta ao Pe. Dinet, uma Mensagem aos magistrados de Utrecht, uma Carta ao embaixador da França, La Thuillerie, e uma outra Carta a Voetius, em que respondia com muita verve a um pedante. Foi em 1646 que Descartes escreveu para a princesa Elisabete o Tratado das paixões, cuja primeira edição foi publicada em Amsterdão no ano 1649. Um Tratado de mecânica, manuscrito, perdeu-se sem deixar vestígios. Sonhara com um tratado do mundo, em que levaria em conta a descoberta de Galileu. Deste tratado extraiu, com prudentes readaptações, os Princípios de filosofia, que apareceram em 1644. É de todas as suas obras a que menos apreciamos; no entanto, ela completou a consagração do autor em vida. De um diálogo em francês sobre a Busca da verdade pelas luzes naturais só passou à posteridade uma versão latina e as Regula, “Regras para a direção do espírito”, igualmente em latim, só viram a luz em 1701. Como vemos, a obra escrita de Descartes não é enorme pela massa. Representa menos um conjunto sistemático e um monumento do que um pensamento em marcha, desenvolvendo-se, explicando-se e expandindo-se ao sabor das pessoas e das circunstâncias. Não que desconheça o valor da sua contribuição e o objetivo que colima: uma nova maneira de conduzir a inteligência; uma verdade fundada, não já na autoridade ou na opinião, mas na certeza. E uma vida inteira consagrada unicamente a essa finalidade. Descartes foi um homem que se inclinou, ou melhor que se retesou sobre o seu espírito, sobre o espírito em geral, no esforço mais sagaz e mais tenaz que já se envidou para descobrir-lhe o segredo. [Truc]