Enquanto sociedade, em sentido lato, designa toda formação social, isto é, toda reunião estável de homens em ordem à realização de um fim, reserva-se geralmente o nome de comunidade para uma união de vidas e de destinos (família, nação) oriunda da natureza ou resultante, por si, da unidade de sentimentos, e que, por conseguinte, vincula intimamente os indivíduos entre si. Frente a esta, a sociedade, em sentido estrito, define-se como uma associação baseada predominantemente em cálculos puramente racionais, endereçada a um fim particular determinado, e cujos membros podem, aliás, permanecer interiormente estranhos uns aos outros (sociedade comercial). Isto se reflete no fato de que, falando de comunidade, se pensa principalmente na unidade de sentimentos e de amor, ao passo que, falando de sociedade, se pretende acentuar, de maneira preponderante, a estrutura jurídica e estatutária, a “organização”. Sem dúvida, para os antigos a palavra “sociedade” podia designar outrossim os laços internos, para os quais se reserva hoje o termo “comunidade”. Posteriormente, porém, na época do individualismo, não somente a compreensão dos valores intrínsecos da vida de comunidade se foi obliterando, como também o conteúdo semântico do vocábulo “sociedade”, e o anelo, novamente desperto, por uma autêntica comunidade escolheu justamente este nome para a imagem de seus desejos. Por esta via, não raro se uniu uma aversão sentimental a toda ordem jurídica, como se por ela perigassem os vínculos mais íntimos da comunidade. De fato porém os laços jurídicos são absolutamente indispensáveis, sempre que elevado número de homens precise de reunir-se para a ação comum e estável em ordem a um fim grandioso. Não o direito enquanto tal, mas a rígida e inumana manipulação do direito, compromete a genuína comunidade. De acordo com o exposto, importa rejeitar a oposição rígida entre a comunidade, baseada exclusivamente na “vontade de ser”, e a sociedade, cimentada também de maneira exclusiva na “vontade de eleger”, principalmente se essa oposição for tomada no sentido de a comunidade nascer de forças meramente irracionais e se subtrair à razão e à vontade.
A base ontológica de toda comunidade é constituída por uma “comunalidade”, pela comum participação num bem, que se deva manter ou então por uma necessidade comum ou comum destino. Uma coletividade de homens entre si unidos por tal “comunalidade” denomina-se, por vezes, comunidade (em sentido lato) (p. ex., uma “comunidade linguística”), nomeadamente quando o destino comum está presente na consciência de muitos, despertando assim um sentimento de solidariedade. Este sentimento é só a primeira pressuposição psíquica da comunidade em sentido prenhe. Para haver genuína comunidade, e não apenas uma massa, não basta a disposição meramente sentimental e instintiva; requer-se, além disso, uma atitude valorativa do espírito, veneração e amor, ou, ao menos, respeito pela dignidade pessoal alheia. A união de muitos, firmada em tal base, com o objetivo de alcançar a realização do fim comum com as forças conjuntas de todos, constitui a comunidade no sentido pleno do termo. Uma ordem jurídica, em especial uma direção (autoridade), é, como já foi notado, uma exigência resultante da essência da comunidade, pois, de contrário, não ficaria assegurada a prossecução eficaz do fim. Os laços morais, que mantêm uma comunidade e asseguram a próspera colaboração de seus membros, são, portanto, vínculos, não só de amor, senão também de justiça. Sobre falsas concepções da essência da comunidade VIDE sociedade (filosofia da sociedade).
Existem comunidades naturais, que, por sua índole, estão implicadas na natureza (matrimônio, família, nação, Estado), a comunidade sobrenatural da Igreja, firmada na ação divina da graça, e comunidades livres, que devem a existência à livre decisão humana (p. ex., uma associação de jovens). — A comunidade possui valor, dignidade e beleza próprios, porque, em última instância, apresenta, de maneira nova, rasgos da essência divina. Na medida porém em que esta apresentação se verifica por meio de uma ordem impessoal, a comunidade não é um fim de si mesma, mas ordena-se ao bem e à perfeição das pessoas que são seus membros. — De Vries. (Brugger)
Romântica é a obra de Ferdinand Tönnies, Genieinschaft und Gesellschaft que desenvolve a distinção, já implícita no romantismo anterior, entre a comunidade e a sociedade. A comunidade entende-se como um todo anterior às partes, cujas diferenciações internas são pequenas e cuja solidariedade é orgânica e não mecânica. A sociedade, ao contrário, entende-se como soma das partes que a constituem, grupo mecanicamente integrado por interesses pessoais, formado pela associação voluntária premeditada. A comunidade é portadora da cultura, tem caracteres próprios e inconfundíveis, é a expressão legítima do Volk, dominado pela figura do camponês ou do artífice. A sociedade não é cultura, mas apenas civilização; não tem caráter próprio, por ser internacional e cosmopolita; é a expressão das massas urbanas, erradicadas e sem alma; transpola todos os valores para o ideal do lucro e do conforto e seu centro de gravidade está no indivíduo e na figura do mercador. [Barbuy]
Levasseur (Histoire des classes ouvrières et de l’industrie en France avant 1789 [1900]) relata a fundação de uma comunidade medieval e suas condições de admissão: “Il ne suffisait pas d’habiter la ville pour avoir droit à cette admission. Il fallait (…) posséder une maison (…).” Além disso, “toute injure proférée en public contre la commune entraînait la démolition de la maison et le banissement du coupable” (p. 240, inclusive n. 3). [ArendtCH, 8, Nota]
… toda relação de um Si com outro Si requer como ponto de partida não esse próprio Si, um eu-o meu ou o do outro –, mas sua comum possibilidade transcendental, que não é outra senão a possibilidade de sua própria relação: a Vida absoluta.
Na experiência do outro, é seu antecedente incontornável, o “ser-com” enquanto tal, que se trata de reconhecer em sua possibilidade fenomenológica radical. Esta não é precisamente o mundo, mas a Vida absoluta. Na Vida absoluta, o “ser-com” se edifica não à maneira de uma relação tão formal e vazia que nada permitisse compreender como e por que tal relação se estabelece entre uma pluralidade de eus, pressupondo-os a todos sem explicar nenhum. Experimentando-se a si mesma na Ipseidade do Primeiro Si, a Vida absoluta gera, em sua possibilidade transcendental, todo Si e, assim, todo eu concebível. Ela os gera enquanto Si e eu viventes [354] e, ao mesmo tempo, gera neles a possibilidade transcendental de sua relação. Pois essa, a relação dos viventes entre si, não consiste em cada um senão na Vida. Não precisamente na vida finita, em seu Si ou seu eu finito, ali onde cada um não seria ainda senão si mesmo, só consigo mesmo e na impossibilidade de unir-se a outro. A relação dos Sis transcendentais viventes está neles antes deles, em sua possibilidade transcendental precisamente, no processo da vida absoluta em que eles vêm a si e em que permanecem enquanto estão vivos. É porque são viventes numa única e mesma Vida, Sis na Ipseidade de um único e mesmo Si, que eles estão e podem estar uns com os outros nesse “ser-com” que os precede sempre, que é a Vida absoluta em sua Ipseidade originária.
É assim que nasce e se forma, em sua possibilidade fenomenológica originária, toda comunidade concebível. Esta apresenta, consequentemente, certos traços essenciais. O primeiro concerne ao que há de comum nessa comunidade, ou, se se quiser, a seu conteúdo: é a vida transcendental. Vê-se por aí que tal conteúdo não é originariamente (e, por conseguinte, necessariamente) um conteúdo “racional”. A razão, no sentido em que se entende, não é o que une originaria-mente: ela isola. Não à toa se disse que o louco é aquele que perdeu tudo, menos a razão. Não é, aliás, somente no plano individual que a razão pode se revelar destruidora. Basta considerar o que se passa hoje sob nossos olhos para mensurar a que ponto a razão deixada a si mesma, a um puro objetivismo, à abstração calculadora da técnica moderna, pode afetar o coração do homem no que ele tem de mais próprio e ameaçar sua “humanidade” e, ao mesmo tempo, a humanidade inteira a ponto de levá-la à ruína. O conteúdo de toda comunidade é tudo o que pertence à Vida e encontra sua possibilidade nela. O sofrimento, a alegria, o desejo ou o amor trazem em si um poder de reunir infinitamente maior que aquele que se atribui à “Razão”, que, falando propriamente, não tem nenhum poder de reunir, na medida em que não se pode deduzir, dela, a existência de um único indivíduo, nada do que deve ser reunido numa “comunidade”. [355]
Como o que há em comum em toda comunidade é a Vida, a comunidade apresenta este outro traço essencial: ser uma comunidade de viventes no sentido de Sis transcendentais viventes, na medida em que é somente nela que tais Sis são possíveis e que, reciprocamente, ela não é possível sem eles, sem o Si primordial no qual ela vem a si e que contém a multiplicidade potencial e indefinida de todos os eus possíveis. Vê-se aqui quão ridículo é opor, como se faz hoje, sociedade e indivíduos. Se a sociedade é algo além de uma coleção de “indivíduos” reduzidos à sua aparência objetiva e tratados como entidades separadas — se é, precisamente, uma comunidade –, então comunidade e indivíduos estão ligados entre si segundo uma relação de interioridade fenomenológica recíproca que não é outra senão a relação dos viventes com a Vida, tornando a priori vazia de sentido a ideia de qualquer “oposição” entre eles.
Mas é o terceiro traço da vida que deve aqui ser sublinhado: antes de definir o conteúdo do que há em comum, a Vida em sua Ipseidade originária constitui a possibilidade transcendental do que há em comum de “ser em comum”, a relação como tal, o “ser-com” em sua precedência. Não obstante, já não se trata aqui da vida em geral, de uma vida finita como a nossa, mas da Vida absoluta.
Dessas breves rememorações, segue-se: 1) que toda comunidade é, por essência, religiosa, pressupondo a relação entre Sis transcendentais, para todos os efeitos e de todos os modos, a relação de cada Si transcendental com a Vida absoluta, o laço religioso (religio). Não que cada um deles, enquanto portador desse laço, gere sua relação com o outro, mas o contrário: porque é desse laço que ele tem seu próprio Si e, ao mesmo tempo, a possibilidade de se referir ao outro. 2) Que toda comunidade é por essência invisível. Ela seguramente tem, a mesmo título que nossa própria vida, que nosso Si, que nossa carne, seu “aparecer no mundo”, mas aqui ainda esse aparecer não é senão uma simples aparência recortada da realidade. É assim que, mais ainda que nossa vida, nosso Si ou nossa carne, a comunidade visível traz em si a possibilidade do engano e da [356] sentimentos inconfessáveis estão constantemente mascarados pelo ritual social? 3) Invisível, estranha ao mundo e as suas categorias fenomenológicas, ao espaço e ao tempo, a realidade da comunidade abre um domínio de relações paradoxais, as que formam o núcleo do cristianismo e de que Kierkegaard teve a genial intuição. É assim que se pode estabelecer uma relação real entre Sis transcendentais que nunca se viram e que pertencem a épocas diferentes. Um homem pode ver sua vida transformada radicalmente pela leitura de um livro de outro século cujo autor é desconhecido. Um indivíduo pode tornar-se contemporâneo de um acontecimento que se passou há dois mil anos. As pressuposições de uma fenomenologia da Vida se revelam aqui como uma introdução às intuições decisivas do cristianismo e, notadamente, à sua extraordinária concepção da intersubjetividade. (Michel Henry, MHE)
No pensamento de Platão há uma cidade cósmica do mundo, o estado cidade e um corpo político de indivíduos: são todos comunidades (do grego koinonia e do sânscrito gana). “Encontramos o mesmo número de castas (em grego genos e em sânscrito jati) na cidade e na alma (ou no Eu) de cada um de nós”; (2) o princípio da justiça é o mesmo em toda parte, ou seja, cada membro da comunidade deve executar as tarefas para as quais tem aptidão por natureza; e o estabelecimento da justiça e do bem-estar coletivo depende sempre da resposta à pergunta: qual deles vai governar, o melhor ou o pior? Uma Razão única e uma Lei Comum única? Ou a multidão de homens endinheirados que ficam fora da cidade, e a infinidade de desejos dos indivíduos? (República, de Platão, 441 etc). (Coomaraswamy)