hermeneutische Zirkel
Por isso voltaremos agora à descrição de Heidegger sobre o círculo hermenêutico, com o fim de tornar fecundo para o nosso propósito o novo e fundamental significado que ganha aqui a estrutura circular. Heidegger escreve: “O círculo não deve ser degradado a círculo vicioso, mesmo que este seja tolerado. Nele vela uma possibilidade positiva do conhecimento mais originário, que, evidentemente, só será compreendido de [271] modo adequado, quando a interpretação compreendeu que sua tarefa primeira, constante e última permanece sendo a de não receber de antemão, por meio de uma ‘feliz ideia’ ou por meio de conceitos populares, nem a posição prévia, nem a visão prévia, nem a concepção prévia (Vorhabe, Vorsicht, Vorbegriff), mas em assegurar o tema científico na elaboração desses conceitos a partir da coisa, ela mesma”. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Schleiermacher distingue nesse círculo hermenêutico do todo e da parte um aspecto objetivo e um aspecto subjetivo. Tal como cada palavra forma parte do nexo da frase, cada texto forma parte do nexo da obra de um autor, e esta forma parte, por sua vez, do conjunto do correspondente gênero literário e mesmo de toda a literatura. Mas, por outro lado, o mesmo texto pertence, como manifestação de um momento criador, ao todo da vida da alma de seu autor. A compreensão acaba acontecendo, a cada caso, a partir desse todo, de natureza tanto objetiva como subjetiva. No que se relaciona com essa teoria, Dilthey falará de “estruturas” e da “concentração em um ponto central”, a partir do qual se produz a compreensão do todo. Com isso ele transporta ao mundo histórico, como já dizíamos, o que desde sempre tem sido um fundamento de toda interpretação textual: que cada texto deve ser compreendido a partir [297] de si mesmo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Face a isso, a descrição e a fundamentação existencial do círculo hermenêutico, devidas a Heidegger, representam uma mudança decisiva. E claro que a teoria da hermenêutica do século XIX falava da estrutura circular da compreensão, mas sempre inserida na moldura de uma relação formal entre o individual e o todo, assim como de seu reflexo subjetivo, a antecipação intuitiva do todo e sua explicação subsequente no individual. Segundo essa teoria, o movimento circular da compreensão vai e vem pelos textos, e quando a compreensão dos mesmos se completa, ele é suspenso. Consequente, a teoria da compreensão de Schleiermacher culmina numa teoria do ato adivinhatório, mediante o qual o intérprete se funde por inteiro no autor e resolve, a partir daí, tudo o que é estranho ou estranhável no texto. Heidegger, pelo contrário, descreve esse círculo de uma forma tal que a compreensão do texto se encontre determinada, continuamente, pelo movimento de concepção prévia da pré-compreensão. O círculo do todo e das partes não se anula na compreensão total, mas nela alcança sua mais autêntica realização. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.
Mas essa ausência de preconceitos não é uma ausência condicionada? Essa reivindicação não tem sempre o sentido polêmico de estar livre deste ou daquele preconceito? Será que a reivindicação da ausência de preconceitos (como nos ensina também a experiência da vida humana) não camufla, na verdade, a persistência teimosa de preconceitos que acabam nos determinando de modo imperceptível? Conhecemos isso suficientemente a partir do modo como os historiadores trabalham. Pretendem ser críticos, isto é, ouvir as fontes e testemunhas sobre uma questão histórica, munidos da justiça superior de um juiz, para ver o que está por trás das coisas. Mas esta pretensa crítica superior já não vem sempre precedida e sustentada por uma atuação silenciosa de preconceitos orientadores? No fundo de toda crítica das fontes e dos testemunhos encontra-se sempre um último parâmetro de credibilidade, que depende apenas de uma coisa: do que se considera possível e se está disposto a acreditar. Sim, no fundo ainda resta algo mais a ser dito. Assim como a vida real, também a história só nos interessa quando sua fala atinge nosso julgamento prévio sobre as coisas, as pessoas e as épocas. Toda compreensão do que é significativo pressupõe que articulemos conjuntamente um uso desses preconceitos. Heidegger caracterizou esse estado de coisas como círculo hermenêutico: compreendemos somente o que já sabemos; ouvimos somente o que colocamos na leitura. Medido pelos parâmetros do conhecimento das ciências da natureza, isso parece inadmissível. Na verdade, só assim torna-se possível a compreensão histórica. Não se trata de evitar um tal círculo, mas de entrar nele de modo correto. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 2.
Schleiermacher diferenciou esse círculo hermenêutico da parte e do todo, tanto no seu aspecto objetivo quanto subjetivo. Assim como a palavra singular pertence ao contexto da frase, também o texto singular pertence ao contexto da obra de seu autor, e este ao todo do respectivo gênero literário ou da respectiva literatura. Por outro lado, enquanto manifestação de um momento criador, o mesmo texto pertence ao todo da vida espiritual de seu autor. A compreensão só pode realizar-se a cada vez neste todo objetivo ou subjetivo. Com base nessa teoria, Dilthey vai falar de “estrutura” e de “centralização num ponto médio”, a partir de onde se dá a compreensão do todo. Com isso, ele transfere para o mundo histórico o que, de há muito, é um princípio fundamental de toda interpretação [58]: que é preciso compreender um texto a partir de si próprio. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
Na analítica de Heidegger, portanto, o círculo hermenêutico ganha uma significação totalmente nova. A estrutura circular da compreensão manteve-se, na teoria que nos precedeu, sempre nos quadros de uma relação formal entre o individual e o todo ou de seu reflexo subjetivo: a antecipação divinatória do todo e sua explicitação consequente no caso singular. Segundo esta teoria, portanto, o movimento circular oscilava no texto e acabava suspenso com sua completa compreensão. A teoria da compreensão culminava num ato divinatório que se transferia totalmente ao autor e, a partir dali, procura dissolver tudo que é estranho ou causava estranheza no texto. Heidegger, pelo contrário, reconhece que a compreensão do texto permanece sempre determinada pelo movimento pré-apreensivo da compreensão prévia. O que Heidegger descreve dessa forma não é outra coisa do que a tarefa de concretização da consciência histórica. Junto com essa concretização, exige-se tomar consciência das próprias opiniões prévias e preconceitos e realizar a compreensão guiada pela consciência histórica, de forma que a apreensão da alteridade histórica e o emprego que ali se faz dos métodos históricos não consista simplesmente em deduzir o que a ela se atribuiu de antemão. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.
Isso tem consequências no que Heidegger ensinou sobre a produtividade do círculo hermenêutico. Eu próprio formulei esse princípio afirmando que, mais que nossos conceitos, são nossos preconceitos que perfazem nosso ser. Isso é uma formulação provocativa, uma vez que busca restituir o direito ao conceito positivo do preconceito que o Iluminismo francês e inglês expulsou do uso da linguagem. Pode-se mostrar que originalmente o conceito de preconceito ultrapassa o sentido que lhe damos à primeira vista. Os preconceitos não são necessariamente injustificados e errôneos, de modo a distorcer a verdade. Na realidade, o fato de os preconceitos, no sentido literal da palavra, constituírem a orientação prévia de toda nossa capacidade de experiência é constitutivo da historicidade de nossa existência. São antecipações de nossa abertura para o mundo, que se tornam condições para que possamos experimentar qualquer coisa, para que aquilo que nos vem ao encontro possa nos dizer algo. De certo, isso não significa que estejamos cercados por um muro de preconceitos, e que somente permitiríamos o acesso a quem mostrasse seu passaporte, contendo a seguinte inscrição: aqui não se diz nada de novo. Ao contrário, é bem-vindo o hóspede que promete nos trazer algo novo para nossa curiosidade. Mas como vamos reconhecer o hóspede, admitido na nossa companhia, que vai dizer-nos algo novo? Também nossa expectativa e [225] nossa disposição para ouvir o novo não são trazidas necessariamente pelo antigo, onde nos encontramos? A comparação deve servir como uma espécie de legitimação para justificar por que o conceito de preconceito, que contém uma relação interna profunda com o conceito de autoridade, necessita de uma reabilitação hermenêutica. Como toda comparação, também essa é caolha. A experiência hermenêutica não consiste em que algo esteja fora e cioso para entrar. Ao contrário, somos tomados por algo, e, em virtude disso que nos toma, sentimo-nos abertos para o novo, o outro, o verdadeiro. É o que nos mostra Platão com a bela comparação entre a comida para o corpo e o alimento espiritual: enquanto podemos recusar o primeiro, por exemplo, pelo conselho do médico, o segundo é sempre assimilado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.
Meu ponto de partida foi a crítica ao idealismo e ao metodologismo da era da teoria do conhecimento. Foi de especial importância para mim o aprofundamento do conceito de compreensão, por Heidegger, que o converteu num existencial, quer dizer, numa determinação básica categorial da pre-sença (Dasein) humana. Foi o estímulo que me levou a uma superação crítica do debate metodológico e a uma ampliação da problemática hermenêutica, contemplando não somente todo tipo de ciência, mas também a experiência de arte e a experiência da história. Ora, para sua análise crítica e polêmica da compreensão, Heidegger apoiou-se no antigo discurso sobre o círculo hermenêutico, reivindicou-o como um círculo positivo e em sua analítica da pre-sença elevou-o a conceito. Não devemos esquecer, porém, que não se trata aqui da circularidade como metáfora metafísica, mas de um conceito lógico que encontra seu verdadeiro lugar na teoria da demonstração científica como doutrina do círculo vicioso. O conceito de círculo hermenêutico significa que no âmbito da compreensão não se pretende deduzir uma coisa de outra, de modo que o erro lógico da circularidade na demonstração não é aqui nenhum defeito do procedimento, mas representa a descrição adequada da estrutura do compreender. Dilthey, seguindo a Schleiermacher, introduziu a expressão “círculo hermenêutico” em contraste com o ideal de raciocínio lógico. Se considerarmos o verdadeiro alcance do conceito de compreensão no uso da linguagem, veremos que a expressão “círculo hermenêutico” sugere na realidade a estrutura do ser-no-mundo, quer dizer, a superação da divisão entre sujeito e objeto na analítica transcendental da pre-sença levada a cabo por Heidegger. Quem sabe usar uma ferramenta não a converte em objeto, mas trabalha com ela. Assim também o compreender, que permite à pre-sença conhecer-se em seu ser e em seu mundo, não é uma conduta relacionada com determinados objetos de conhecimento, mas seu próprio ser-no-mundo. Desse modo a metodologia hermenêutica de cunho diltheyano se transforma numa “hermenêutica da facticidade” que guia a pergunta de Heidegger pelo ser, incluindo a indagação fundamental do historicismo e de Dilthey. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que “o ser que pode ser compreendido é linguagem”, essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser “se mostra”. A “hermenêutica da facticidade” [335] significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O “ser para o texto”, que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o “ser para a morte”, e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta “imanência” metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por “compreender” algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A [336] experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos, demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do “conhecimento de si mesmo na alteridade” como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche, com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de “vontade de poder” presente até na submissão e no sacrifício: “também no escravo há vontade de poder”. Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o “logocentrismo” da ontologia grega. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.
Autocompreensão tem a ver com uma decisão histórica e não com uma espécie de posse e disponibilidade de si. Bultmann sempre ressaltou esse aspecto. Por isso, seria um desvirtuamento entender o conceito de compreensão prévia, empregado por Bultmann, como um fincar pé nos preconceitos, como uma espécie de saber prévio. Na verdade, o que Bultmann desenvolveu foi um conceito puramente hermenêutico, motivado pela análise heideggeriana do círculo hermenêutico e pela estrutura prévia comum à existência humana. Refere-se à abertura do horizonte de questionamento como o único local onde pode dar-se compreensão; o que não significa que a compreensão prévia não possa ser corrigida pelo encontro com a palavra de Deus (como ocorre com toda e qualquer palavra). Ao contrário, o sentido desse conceito é tornar visível o movimento da compreensão como essa mesma correção. Deve-se atentar para o fato de que, no caso do apelo da fé, essa “correção” tem um caráter específico e que só se reveste de uma generalidade hermenêutica em função de sua estrutura formal. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.
A reflexão hermenêutica teve que elaborar assim uma teoria dos preconceitos que, sem menosprezar o sentido de crítica de todos os preconceitos que ameaçam o conhecimento, faz justiça ao sentido produtivo da compreensão prévia, que é premissa de toda compreensão. O condicionamento hermenêutico do compreender, tal como vem formulado na teoria da interpretação e sobretudo na doutrina do círculo hermenêutico, não se limita às ciências históricas, nas quais a situação do investigador forma parte das condições práticas do conhecimento. A hermenêutica encontra aqui seu caso exemplar, na medida em que na estrutura circular da compreensão se retrata também a mediação entre a história e o presente. Essa mediação precede todo distanciamento e estranhamento históricos. A pertença do intérprete a seu “texto”, como a pertença do destino humano a sua história, é evidentemente uma relação hermenêutica fundamental que não se pode eliminar, com belas sentenças, como acientífica. Deve-se assumi-la conscientemente como a única atitude adequada à cientificidade do conhecimento. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.
Nessa altura talvez possamos acrescentar que também a Logische Propädeutik (Propedêutica lógica), proposta por Kamlah e Lorenzen, que exige do filósofo a “introdução” metodológica de todos os conceitos legítimos para um enunciado cientificamente comprovável, está imersa no círculo hermenêutico de um saber prévio, pressuposto no âmbito da linguagem, e num uso de linguagem que deve ser purificado pela crítica. Nada temos contra um ideal da construção de uma linguagem científica, que em muitos âmbitos traz certamente importantes esclarecimentos, sobretudo para a lógica e para teoria da ciência. Para esse ideal, enquanto educação para um falar responsável, não se deveria colocar nenhuma restrição, mesmo no campo da filosofia. Aquilo que Hegel se propôs a fazer em sua Lógica, sob o pensamento central de uma filosofia que abarcasse toda a ciência, é o mesmo que procura fazer Lorenzen, de maneira nova, na reflexão sobre “investigação” e sua justificação lógica. De certo, trata-se de uma tarefa legítima. No entanto, gostaria de defender que a fonte do saber e do saber prévio, que emana da interpretação de um mundo sedimentado na linguagem, continuaria mantendo sua legitimidade mesmo que pudéssemos pensar a linguagem ideal da ciência como completa e perfeita, e isso vale também para a “filosofia”. O Iluminismo da história dos conceitos, linguagem que eu mesmo adotei em meu livro e que uso da melhor maneira possível, é recusado por Kamlah e Lorenzen com a objeção de que o fórum da tradição não pode pronunciar nenhum julgamento unívoco e seguro. Creio ser uma exigência legítima poder responsabilizar-se diante desse fórum. Isso porém não significa inventar uma linguagem adaptada às novas ideias, mas extraí-la da linguagem viva. Essa exigência só pode ser realizada pela linguagem da filosofia, se conseguir manter aberto o caminho que vai da palavra para o conceito e vice-versa. Isso parece-me ser uma instância que mesmo Kamlah e Lorenzen levam em consideração em seu próprio procedimento como o uso de linguagem. De certo, isso não cria nenhum edifício metodológico da linguagem pelo do incremento paulatino de conceitos. Mas tornar conscientes as implicações contidas nos termos conceituais também representa um “método” e, na minha opinião, um método adequado ao objeto da filosofia. Isso porque o objeto da filosofia não se resume a esclarecer reflexivamente os procedimentos das ciências. Tampouco consiste em tirar a “soma” da multiplicidade de nosso saber moderno, arredondando-a até alcançar a totalidade de uma “concepção de mundo”. É verdade que a filosofia tem a ver com a totalidade de nossa experiência de mundo e de vida, e o faz de modo diferente do que todas as outras ciências. Seu envolvimento com essa tarefa se dá nos moldes de nossa própria experiência de vida e de mundo articulada na linguagem. Estou longe de afirmar que o saber dessa [461] totalidade represente um conhecimento realmente assegurado e que não deva ser sempre de novo submetido à crítica pelo pensamento. O que não se pode é ignorar esse “saber”, seja que se expresse como sabedoria religiosa ou proverbial, como obra de arte ou como pensamento filosófico. A própria dialética de Hegel — não me refiro à sua esquematização de um método de demonstração filosófica, mas à experiência que forma a base de sua “inversão” de conceitos, que buscam compreender o todo — pertence a essas formas do auto-esclarecimento interior e de representação intersubjetiva de nossa experiência humana. Em meu livro, fiz um uso bastante vago desse modelo vago de Hegel e por isso gostaria de remeter a uma pequena e recente publicação intitulada Hegels Dialektik, Fünf hermeneutischen Studien (A dialética de Hegel — cinco estudos hermenêuticos), Tübingen, 1971, a qual contém uma explanação mais precisa, mas também uma certa justificação para essa vacuidade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.
É possível formulá-lo simplesmente, da maneira como passamos a expor. No domínio da hermenêutica, temos que defrontar uma identidade entre o sujeito e o objeto. O objeto só pode ser apreendido através dos instrumentos da compreensão fornecidos pelo sujeito, mas a maneira mesma como o sujeito elabora estes instrumentos é determinada pelo conjunto de sua situação; ora, esta situação constitui precisamente o objeto estudado que buscamos compreender. O “círculo hermenêutico” manifesta-se também de outra forma: o conhecimento que se adquire do objeto modificado e, consequentemente, modifica o próprio sujeito que interpreta. Neste caso, porém, trata-se apenas de uma variante do problema fundamental.
Se este problema se coloca é, em definitivo, porque o objeto humano comporta, inevitavelmente, estados de consciência (no sentido mais largo do termo). Tais estados são invisíveis; só os atingimos às custas de um esforço de compreensão. O termo “compreensão” pode ser entendido em dois sentidos: designa, ou um modo de participação afetiva, ou uma reconstituição hipotética. Objeções muito graves, e aparentemente bastante legítimas, foram feitas à teoria da participação afetiva: ela conduz forçosamente ao relativismo e ao subjetivismo e não pode fornecer critérios objetiváveis. Se afastarmos este modo de compreensão para recorrer à reconstituição hipotética, devemos fazer atuar princípios de interpretação adequados. Ora, a elaboração de tais princípios coloca em jogo, necessariamente, o sujeito que interpreta e a compreensão que ele possui de si mesmo. Em outras palavras, toda compreensão hermenêutica do comportamento de outrem é, ao mesmo tempo e necessariamente, uma auto-compreensão do sujeito que interpreta por ele próprio.
Existe diferença entre o círculo hermenêutico e o círculo metodológico das ciências empírico-formais? Parece que sim. Com efeito, a pré-compreensão hermenêutica não visa tão somente a um esquema operatório, como no caso das ciências empírico-formais, mas visa à subjetividade, suas intencionalidades, um dinamismo intencional. O verdadeiro problema está em saber de que modo uma tal pré-compreensão pode tornar-se crítica. É que, em geral, o sujeito é totalmente, ou ao menos parcialmente, inconsciente quanto aos seus princípios de interpretação, ou, em todo caso, quanto aos seus pressupostos últimos. Na medida pois, em que a hermenêutica comporta sempre uma auto-compreensão, o problema de sua fundação crítica é o problema de uma auto-elucidação do sujeito que interpreta. Não somente o sujeito deve tornar-se consciente dos pressupostos que ele faz atuar nas suas interpretações, como ainda deve descobrir os critérios que lhe permitirão escolher princípios de interpretação adequados e ser capaz de explicar as razões da suposta validade destes critérios. O problema que aqui se coloca é aquele de uma situação interpretativa privilegiada, ou ainda, em termos de linguagem, aquele da linguagem privilegiada.
Existe uma linguagem privilegiada? E que linguagem seria esta? Poderíamos dizer que é a linguagem da física, em última análise, que deve servir de fundamento para todas as outras e que pode nos fazer sair do círculo hermenêutico? Afirmar isso é necessariamente fazer intervir uma pressuposição, segundo a qual, precisamente, a linguagem de tipo empírico–formal é absolutamente autônoma e por isto capaz de fundar, em última instância, todas as outras. Tal pressuposição deverá, ela própria, ser expressa e o será forçosamente quer em termos fisicalistas, quer em termos de uma outra linguagem. No primeiro caso, não há verdadeira justificação, senão por petição de princípio. Não podemos, em termos fisicalistas, justificar a extensão da linguagem fisicalista aos fenômenos humanos, sem pressupor aquilo que pretendemos justificar, a saber, a legitimidade desta extensão. No segundo caso, caímos numa contradição: se o discurso justificativo não é de tipo fisicalista, está então destruído aquilo que pretendemos fundar, a saber, a absoluta autonomia do discurso empírico–formal.
Mas, poderíamos invocar, como linguagem privilegiada, uma linguagem filosófica. Se assim agirmos, encontraremos, inevitavelmente, o arriscado problema da auto-fundação da filosofia. Como conceber a possibilidade de uma tal auto-fundação? Deve ela assumir a forma de uma reflexão total, ou deve apoiar-se em um dado último ao qual pudéssemos finalmente tudo reduzir, como o propõe, por exemplo, a filosofia do empirismo estrito? De resto, a própria filosofia não é de natureza hermenêutica? Não devemos, pois, reconhecer que todos os problemas que nos colocamos a propósito do discurso hermenêutico colocam-se igualmente a propósito da filosofia à qual poderíamos recorrer para tentar fundar este discurso? E, por outro lado, na hipótese de uma fundação de tipo filosófico, como assegurar a autonomia do discurso científico? Tal como está hoje constituída a ciência, parece bem difícil não lhe reconhecer uma total independência em relação à filosofia. [Ladrière]