Ciência da Lógica

Para a maioria dos pensadores a inteligência é uma função. Com Hegel ela se torna uma coisa, e mesmo a única coisa existente. E é com razão que ele não a chama “inteligência”, mas “espírito”. Já não é uma mera sequência de operações lógicas; é o próprio movimento de uma substância única que se descobre ao mover-se. Donde essa identidade do ser e do conhecer, a que devemos voltar.

Quanto ao fundo, a lógica de Hegel pouco tem de comum com a lógica formal ou com a nossa lógica das ciências. Poderá servir-se também da dedução e da indução, mas é acima de tudo intuição, apreensão desse ser que se move e que se faz com o seu movimento; tudo nela é, não analítico ou dialético, mas substancial. O saber deixou de ser a aquisição de conhecimentos para se tornar a própria marcha do espírito. E não existe conhecimento senão do espírito, pois somente o espírito é real.

“A lógica é a ciência da ideia pura, da ideia no elemento abstrato do pensamento… A ideia é o pensamento, não como pensamento puramente formal, mas como totalidade que se desenvolve a si própria nas suas determinações e nas suas leis, e, por conseguinte, não encontra em si essas determinações e essas leis como elementos que já estivessem nela e que lhe fossem dados por antecipação, mas é ela própria que os dá a si mesma.”

Esta passagem dos “Prolegômenos” da Lógica deixa entrever o seu espírito e resume-lhe o conteúdo, exprime-lhe o sentido e a essência. O cognoscível já não é um dado extrínseco ao cognoscente; não existe mais um objeto e um sujeito, mas um sujeito que encontra em si mesmo o seu objeto. Donde uma nova forma de dialética, que é propriamente a dialética hegeliana.

Compreende ela três tempos ou três movimentos, três momentos: um momento de lógica pura ou lógica do entendimento, em que se trata de definir o termo; um momento negativo, que é a passagem de um termo ao outro; e um momento especulativo ou de ligação, em que se apreende a unidade da determinação.

Parte-se assim duma essência “enquanto razão de existência”, isto é, duma essência que se estabelece na existência e se afirma opondo-se e diferenciando-se; passa-se daí ao fenômeno, que é a manifestação dessa essência, para chegar a uma realidade essencial, que desta vez é um termo e não mais uma passagem. Assim se fecha o ciclo: o ser, o espírito, foi estabelecido, depois percebido e enfim recebido; houve intuição, discriminação e finalmente noção… Esta noção é a própria forma e a substância da ideia.

Tal é o esquema sobre o qual se exerce a Lógica de Hegel, com variações ou complicações por vezes bastante difíceis. Se desejamos elucidar-nos por meio de um exemplo, tomemos o que nos propõe o próprio filósofo:

“Assim… a criança, enquanto homem, é um ser racional. Apenas, a razão da criança como tal não é, a princípio, senão um elemento interior, isto é, uma disposição natural, uma vocação, e esse elemento puramente interior assume, para a criança, a forma de uma coisa puramente exterior, enquanto representa a vontade dos pais e a doutrina dos mestres, as quais a rodeiam como um mundo racional. A educação e o desenvolvimento posteriores da criança consistem no fato de que a sua razão, que antes existia nela apenas em estado virtual e que existia para os outros, para as pessoas adultas, passa a existir também para ela. Assim a razão, que não se encontrava na criança senão em estado de possibilidade interior, se realiza, torna-se exterior pela educação; e reciprocamente a moralidade, a religião e a ciência, que tinham apenas a forma de uma autoridade exterior, são agora apreendidas pela consciência como um elemento próprio e interior.”

É assim que procede a dialética hegeliana. Se se quiser agora surpreendê-la no mecanismo duma mola essencial do pensamento e da própria forma do pensamento, leia-se o seguinte:

“…Quero dizer que o juízo é essa diferença que a noção de diferenciação, que é também uma particularização, estabelece em si mesma e pela sua própria atividade.”

Que significa isto, senão o que temos dito até agora: que o pensamento se engendra não por uma combinação de regras, mas pelo próprio movimento do pensamento?

Igual princípio e iguais resultados na fenomenologia. Que é a íenomenologia? O estudo das diversas manifestações do espírito na consciência, seja ela individual ou coletiva, na ciência, na arte, na religião… Mas é mister entender bem isto: “A fenomenologia é a ciência da consciência”, considerada esta como sendo, em geral, o conhecimento de um objeto exterior ou interior. “A consciência, em sentido lato, apresenta pois três graus conforme a natureza do seu objeto. O objeto pode ser exterior, o próprio Eu, e enfim alguma coisa pertencente ao Eu (o pensamento). A ciência da consciência divide-se portanto em consciência, consciência de si, e razão.”

É ainda pelo jogo da negação e pelo movimento interno que o dialético estabelece esta tríade. A Fenomenologia de Hegel, que não passa de uma aplicação da sua doutrina, é a parte da sua obra a que com mais assiduidade se aplica a nossa época, tirando dela aquilo que se sabe e que teremos ocasião de ver melhor. Revela-nos de maneira curiosa o filósofo, filósofo no sentido geral da palavra, isto é, homem de ciência, esteta, moralista e mesmo crente. Mostra-nos o Absoluto, o Espírito, não transcendente mas imánente, inerente ao mundo, ao mundo cósmico, ao mundo orgânico e ao mundo pensante. Coloca-o em face do Estado, num indivíduo que encarna a Ideia e submete a si legitimamente os demais indivíduos. Causou admiração ver o marxismo derivar deste absolutismo, mas o próprio marxismo não é acaso um absolutismo e não pode o Espírito habitar uma classe ou uma coletividade? É o que se ouve dizer constantemente.

Como moralista, Hegel se relaciona, pelo lugar que reserva ao coração, com Rousseau e com Kant. Como crente, vê no dogma cristão sobretudo uma ilustração alegórica da sua doutrina. Mas, enfim, admite Deus, chega até Deus, embora Deus não seja o seu “Espírito”. Porque, diz ele, “o espírito só é espírito enquanto existe para o espírito; na religião absoluta, ele é o espírito absoluto que já não manifesta momentos abstratos de si mesmo, mas que se manifesta a si mesmo”. Vamos ver como se pode desculpá-lo, de algum modo, da acusação de panteísmo que somos tentados a levantar contra ele. Pois sabe também exaltar a personalidade do homem em face do Absoluto, dizendo que se o homem se eleva pela sua naturalidade ao eterno, não mantém todavia com ele senão uma “relação exterior”. [Truc]