acidente predicamental

O acidente predicamental define-se como aquele cuja quididade consiste em ser não em si, mas em outro, que é sujeito de inesão.

O que caracteriza, portanto, o acidente é ser inerente em outro, ou seja inesse (em outro). No inesse, temos: atribui-se formalmente algum ser secundário, que supõe um ser primeiro consubstanciai, e dependência em ser substancial, e com dependência em ser de um sujeito.

Da quantidade predicamental se define a ordem das partes no todo. Sendo que o termo ordem significa posição das partes extra partes, o que quer dizer que a quantidade é o acidente atribuído ao sujeito por ter partes extra partes quanto a si. A ordem é o fundamento da relação, na qual consiste a essência da qualidade, e não é relação da ordem. Desta maneira, a ordem fundamental é o fundamento da relação, segundo prioridade e posterioridade. A quantidade, portanto, contém multidão de partes, e desta multidão, ordem, segundo a posição em que as partes são colocadas extra partes, segundo prioridade e posterioridade. A quantidade transcendental é aquela que abstrai esta ordem, e é apenas a multidão dos entes tomados conjuntamente como número transcendental, ou, então, é tomado indivisamente, como a plenitude de uma potência, quando se diz quantidade de virtude. A quantidade predicamental é também a extensão, chamada quantidade dimensível, que é acidente das coisas materiais, e é medida da matéria.

A quantidade predicamental se divide em contínua e discreta. É contínua, quando suas partes continuam entre si, em que seus extremos são um, e descontínua, ao contrário.

A quantidade contínua chama-se linha, quando tem uma única dimensão; superfície, quando tem duas; corpo, quando tem três. Chamam-se unidades predicamentais as últimas partes de um número de uma quantidade. O número predicamental é o que decorre da quantidade discreta, que surge da divisão da quantidade contínua, que é multidão de partes entre si discretas, em que cada uma é uma quantidade contínua, extensa. O número predicamental é a verdadeira e própria espécie da quantidade, porque ela mesma ordena as partes discretas, as unidades extra partes. Deste modo, não é apenas a colecção de muitos, mas a sua ordem quantitativa, ordem segundo prioridade e posterioridade. Da unidade resulta o número; ou seja, a ordem da posição discreta, que é o novo acidente realmente distinto da substância tomada singularmente, como também da sua quantidade contínua. O número é um per se, unidade da ordem, que é um acidente. O número é, portanto,

uma ordem de posição das partes discretas, e ordena muitos sobre uma ordem. Não se pode dizer que é um o que não tem um sujeito. Tomado nas coisas da natureza, o número, considerado meramente numérico, é um. O número diversifica segundo a diversidade essencial.

O número é terminado e determinado pela última unidade. A linha, a superfície e o corpo matemático são verdadeiras espécies da quantidade.

O lugar, o movimento e o tempo não são espécies da quantidade, mas são quanta por acidente. Assim, o lugar é a superfície ambiente, que contém o locado, o que não significa especial razão de extensão, mas sim algo que é fora do conceito de quantidade, e que nele acontece. O um, tomado em si, não é número, porque o número implica multidão. O um transcendental nada de real acrescenta ao ente, mas significa o próprio ser enquanto é concebido como um indiviso, enquanto que o um predicamental acrescenta algo ao ente, pois não significa apenas o ente, mas o ente como um quantum.

Propriedades da quantidade — Assim, na Física, são conhecidas as propriedades como a extensão local, a impenetrabilidade, a mensurabilidade. a divisibilidade. Como propriedades lógicas, temos: 1) não ter contrários, de contrariedade propriamente dita. A razão é simples: os contrários, que estão no mesmo sujeito, repelem-se mutuamente. Mas, a quantidade não repele a quantidade. Pois uma quantidade não produz outra quantidade, mas a quantidade retirada é extraída da quantidade. Grande e pequeno, muito e pouco são opostos, não contrários, apenas relativamente, pois se diz que uma coisa é grande em relação a uma menor, e se diz que é menor em relação ã maior. Assim duzentos é grande em relação a três, e é pequeno em relação a dois mil.

2) Não estar sujeita a mais e menos. Um número pode ser maior que outro; contudo, não é mais número (enquanto número).

3) A quantidade funda-se na relação de igualdade e desigualdade, porque torna o sujeito mensurável, e o que convém nalguma medida é chamado igual, e o que não convém, desigual.

DA QUALIDADE PREDICAMENTAL — A qualidade é tomada: 1) como diferença essencial, que é chamada a qualidade do gênero: 2} como um acidente qualquer; 3) estritamente como algo especial de algum acidente, que responde â pergunta qualis?, endereçada à substância, e que convém absolutamente à substância distinguida e determinada esta. Separa-se da quantidade, que também convém absolutamente à substância, que, contudo, não a distingue nem a determina.

São Tomás define como o acidente modificativo ou determinativo da substância em si-mesma, e que se distingue dos outros acidentes, porque estes não determinam absolutamente em si mesmos a substância, mas em ordem a outro termo, como a relação, ou em ordem de adjacentes extrínsecos, como se vê em outros predicamentos. Tomada estritamente, a qualidade, enquanto gênero supremo, divide-se em quatro espécies, que são hábito e disposição, potência e impotência, paixão e qualidade de sofrer, forma e figura.

A qualidade determina a substância em seu ser ou como quantum.

Como quantum, determina a posição das partes da substância; é forma e figura. Se determina a substância no seu próprio ser, determina em si mesma, pelo qual ela é constituída como hábito e exposição, ou em ordem à sua atividade e passividade, pelo qual é constituída em potência e impotência, etc.

DO HÁBITO (vide) — O termo habitus predica-se da coisa, não enquanto esta tem algo porque isso é o que constitui propriamente o predicamento hábito, mas enquanto a coisa se há (habet) em si-mesma; ou seja, como ela se há em si mesma.

A disposição é definida como o acidente facilmente móvel, que dispõe o sujeito a bem ou mal haver-se em si mesmo. Hábito e disposição diferem intrínseca e especificamente, porque uma pode ser fácil e outra difícil, assim como a opinião, por sua natureza, é fácil, enquanto a ciência é difícil, e, no obstinado, a opinião pode ser dificilmente removível, enquanto a ciência, ao contrário. O hábito pode ser entitativo e operativo. Ambos determinam a substância, mas o operativo determina por ordem à atividade o hábito meramente entitativo. O hábito operativo pode ser tomado estritamente ou não. O primeiro consiste, por modo de inclinação, na indeterminação da potência, que impede operar no bem ou no mal. A secunda consiste na Ação cognoscitiva e operativa.

A potência é definida como o acidente que dispõe o sujeito a operar ou a resistir. A resistência, contudo, também é uma operação. Divide-se a. potência em ativa e passiva. Ativa é a que realiza uma Ação transeunte, que transita fora da potência do sujeito para algo. E passiva, a que permanece imanentemente. Assim se diz que a potência ativa é transeunte ou transitiva, e a passiva é imanente.

DA PAIXÃO (PASSIO) — A capacidade de sofrer alterações de uma qualidade a uma outra oposta, por exemplo de uma cor a outra cor, diz-se paixão, que é a capacidade de alteração, de ser alterado. Chamam-se qualidades passivas aquelas que estão sujeitas a mudanças de graus de intensidade, como as cores, os sons, o odor, o sabor, etc. Estas são imediatamente por si sensibiles, sensíveis.

As cores, como o vermelho, o azul, são distintas por diferenças próprias, já o branco e o negro são diferenças de intensidade na luz, uma o grau máximo de intensidade e a outra o mínimo de intensidade. As qualidades químicas não são sensíveis imediatamente per se, como, por exemplo, a afinidade química, a densidade, a raridade.

A figura define-se como a determinação da quantidade pela qualidade e é acidental; a forma é tomada qualitativamente como a proporção devida à figura, como se observa nas coisas artificiais.

Propriedades da qualidade:

1 ) tem contrários. Esta propriedade convém unicamente à qualidade, mas nem todas as qualidades admitem contrários. Assim, na Física, o calor não tem contrário, embora tenha graus, pois o frio é um grau de calor.

2) Admite o mais e menos, li outra propriedade que convém à qualidade. Mas nem todas qualidades a admitem.

3Í Segundo a qualidade, as coisas podem ser ditas semelhantes ou dessemelhantes.

DA RELAÇÃO PREDICAMENTAL — Tomada em sentido lato, relação é a ordem de um a outro.

Pode ser segundo se diz (secundum dici), que é a relação no ser absoluto, ou pura, e relação segundo o ser (secundum esse), que se refere a outro, como a relação de paternidade. A relação secundum esse pode ser real e de razão. É real, quando se dá nas coisas da natureza, independentemente da consideração da mente, como a entre pai e filho; e de razão, quando apenas subsiste no intelecto, como a relação de predicado a sujeito. A relação secundum dici chama-se transcendental, quando se refere aos predicamentos. Assim a matéria, em relação ao gênero da substância, refere-se, transcendentalmente, à forma, e a forma à matéria. A relação real secundum esse é a relação predicamental quando é acidente real, cujo ser se dá totalmente em relação a outro. Como acidente real distingue-se da relação de razão e distingue-se da relação transcendental, porque, nesta, todo ser não se dá ante outro, como numa entidade absoluta, na qual não se inclui ordem a outro. Na verdade, a relação predicamental consiste em ser ad aliud (a outro). A relação secundum dici é a ordem inclusa na essência da coisa absoluta. A relação secundum esse é a ordem de uma outra essência da coisa adveniente, ou seja, aquela em que todo ser se refere a outro. A relação divide-se, acidentalmente, em mútua e não mútua. A primeira é aquela que corresponde a outra relação real, como a paternidade corresponde à filiação; a não-mútua é o contrário. Assim, a relação de ciência a seu objeto é não-mútua.

Entre as relações, podemos notar: a relação de conveniência e inconveniência, que pode ser segundo a quantidade ou a qualidade e a substância. Segundo a substância, temos a identidade e a diversidade (distinção).

Segundo a quantidade, temos a igualdade e a desigualdade, e segundo a qualidade, temos a semelhança e a dessemelhança. A distinção ou diversidade pode ser genérica ou específica ou numérica, segundo a espécie, o gênero ou o número. Nesta última, a distinção pode dar-se segundo a posição, a distância, a não-distância, ou segundo a ordem de prioridade e posterioridade, etc.

A relação de causalidade é a que surge entre causa e efeito.

Propriedades da relação:

1) A relação não tem contrários. A razão é porque os estritamente contrários não podem estar no mesmo sujeito.

2) A relação de per si não está sujeita a mais e menos, mas apenas por acidente.

3) É relativa ou mútua (correlativa), quando uma é explicada pela outra, como pai e filho, senhor e escravo.

DA AÇÃO E DA PAIXÃO PREDICAMENTAL (comentários) — Define-se a ação como o ato pelo qual uma causa eficiente é causante em ato. É a ação o exercício da causalidade eficiente. É o que diferencia as causas extrínsecas das intrínsecas. Estas causam imediatamente, enquanto as outras não, mas apenas por meio de uma realidade distinta destas.

Assim, a causa final, que é extrínseca, causa mediante a petição, e a eficiente, que é intrínseca, causa mediante a ação.

Pai vão (ou capacidade de determinabilidade) é o acidente pelo qual o sujeito é constituído como ato recipiente da ação do sujeito. A paixão (passio) corresponde à ação.

A ação pode ser produtiva de uma substância ou de um acidente. A primeira chama-se geração da substância; a segunda realiza apenas uma mutação na substância, é a geração do acidente.

DO UBI (DO ONDE) PREDICAMENTAL — Em sentido lato, entende-se por ubi (o onde) a presença no local. O local pode ser circunscritivo ou extenso, ou não circunscritivo, ou inextenso. O ubi predicamental é a presença em local circunscritivo. O onde é o local em que é colocado o corpo no ambiente.

DO LUGAR PREDICAMENTAL — O lugar é o acidente que dispõe as partes no onde.

DO QUANDO PREDICAMENTAL — É o acidente que consiste na disposição de algo simultaneamente no tempo ou não simultaneamente, segundo o seu movimento ou a sua quietação. Daí poder-se, segundo o tempo, dizer que uma coisa é simultânea; ou tem prioridade ou posterioridade, que são divisões do tempo (instante, agora, que equivale à simultaneidade, e passado, à prioridade, e futuro, à posterioridade).

DO HÁBITO PREDICAMENTAL (comentários) — Hábito é o que imediatamente nos corpos resulta de um adjacente extrínseco, não mensurante. Quando é mensurante resulta o ubi, onde; quando não é mensurante, resulta o hábito. Assim, as vestes, que são extrinsecas ao homem, tomam o nome de hábito.

DOS POSTPREDICAMENTOS — Chamam-se de postpredicamentos as propriedades comuns dos predicamentos.

Temos a oposição, a prioridade, a simultaneidade, a moção e o haver, que se referem a todos os predicamentos.

Diz-se que há oposição entre muitos, quando entre si não convém.

prioridade, quando um precede a outro em qualquer ordem (cronologicamente, axiologicamente, ontologicamente, etc).

Simultaneidade é a negação de prioridade e posterioridade.

O haver é o modo, segundo o qual uma coisa se ordena a outra. Temos, assim, o modo de haver por inerência, que é o modo, a modal, pelo qual o acidente se há em relação à substância; por continência, quando contido na substância; por posse, quando é vim haver da substância; por relação como a que se dá entre pai e filho; e por justaposição, quando se diz que algo tem outro aposto ao lado, como a Itália tem a Suíça ao norte.

Moção se diz do estado de tendência e da via, pelo qual um sujeito se transfere de um modo de haver para outro. Entre as moções, temos a corrupção, o devir.

Quando a moção é substancial, temos a corrupção, se há perda da forma; geração, quando adquire uma forma; alteração, quando há moção de qualidade para qualidade; movimento local, quando há transferência, transladação de vim ubi para outro ubi; aumento, quando passa de menor para maior quantidade; diminuição, ao inverso. (Vide Moção).

QUANTIDADE E A QUALIDADE (comentários) — Estas duas categorias aristotélicas exigem alguns comentários, quando comparadas, pois são férteis em muitas distinções importantes.

Só as quantidades são comparáveis, e à razão cabe a função da comparação. O que é comparável da qualidade é o quantitativo da qualidade, o grau de intensidade, o que é quantitativamente redutível. Não podemos comparar uma qualidade com outra, uma cor com um sabor, mas podemos comparar um amarelo com um menos amarelo. Na quantidade, o acrescentamento aumenta; na qualidade, não. Um verde mais um verde não formam duas vezes verdes, enquanto uma medida, quantitativa e outra igual formam duas. Só podemos comparar, qualitativamente, quando há duas qualidades especificamente iguais.

Então, o que comparamos é o quantitativo: um objeto, mais ou menos pesado do que outro; um amarelo, mais ou menos amarelo que outro.

As qualidades são heterogêneas. Cada uma forma uma ordem, uma ordem própria, e quando se passa de uma qualidade para outra, passa-se de uma. ordem para outra. Não comparamos o verde com o pesado, a cor com o sabor. As quantidades, co-

mo qualidades, são incomparáveis e incomensuráveis. Quando dizemos que a cor tal é o resultado de tantas vibrações, e comparamos quantitativamente com outra cor de vibrações luminosas de menor número, comparamos apenas o quantitativo, o número das vibrações, não a qualidade. Não se deve argumentar com as comparações estéticas, que falam de um som verde, ou de um som azul, porque não são comparações, mas transposições, substituições, metáforas.

Os psicofísicos quiseram comparar as qualidades sob a base das intensidades, reduzindo-as à extensão. A razão prefere a quantidade. E vamos mostrar por que.

O que aparece é a qualidade. (A figura, estereométrica, dos corpos é uma delimitação qualitativa da quantidade. Esta, em si, não é captada pelos sentidos, mas sempre no conjunto qualitativo-quantitativo, pois o tato, que é o sentido em que há predominância do quantitativo, nunca exclui a qualidade). Nós vemos objetos que são amarelos, azuis, encarnados, pesados, leves, velozes, etc. A quantidade revela-se logo. A razão busca o mais firme, o mais sólido; e não o que aparece, o que muda, cambia. Procura a quantidade, porque esta permite a comparação. Podemos comparar quantitativamente um livro com uma mesa e dizer que aquela contém 10 livros deste de largura. Mas as qualidades já não podemos fazê-lo do mesmo modo. A qualidade, por definição, tende para o diferente. Pela quantidade a razão une, sintetiza. Boutroux (1845-1921) combate o que ele chama de racionalismo quantitativo, que tende para reduzir a qualidade à quantidade. “…a, hipótese de uma quantidade pura de toda qualidade. . ., mas que ideia se pode fazer de tal objeto? Uma quantidade não pode ser senão uma grandeza ou um grau de qualquer coisa, e essa qualquer coisa é precisamente a qualidade . . .”

Em suma: a quantidade é incompreensível sem a qualidade. Uma implica a outra. São dois conceitos, um da razão e outro da intuição, que se implicam dialeticamente. A abstração pura da quantidade, como da qualidade, leva a um «impasse» da razão, como se vê no racionalismo. Ambas, abstratamente (tomada em separado), tornam-se ininteligíveis. Concretamente consideradas (dialeticamente), em conjunto consideradas, completam-se. É mais um antagonismo que se complementa, porque é resultado do funcionamento dialético da inteligência. [MFSDIC]