a pólis

O domínio da pólis, ao contrário, era a esfera da liberdade, e se havia uma relação entre essas duas esferas era que a vitória sobre as necessidades da vida no lar constituía a condição óbvia para a liberdade da pólis. A política não podia, em circunstância alguma, ser apenas um meio para proteger a sociedade – seja uma sociedade de fiéis, como na Idade Média, uma sociedade de proprietários, como em Locke, uma sociedade inexoravelmente empenhada em um processo de aquisição, como em Hobbes, uma sociedade de produtores, como em Marx, uma sociedade de empregados, como em nossa própria sociedade, ou uma sociedade de trabalhadores, como nos países socialistas e comunistas. Em todos esses casos, é a liberdade da sociedade (e, em alguns casos, uma pretensa liberdade) que requer e justifica a limitação da autoridade política. A liberdade situa-se no domínio do social, e a força e a violência tornam-se monopólio do governo.

O que todos os filósofos gregos tinham como certo, por mais que se opusessem à vida na pólis, é que a liberdade situa-se exclusivamente na esfera política; que a necessidade é primordialmente um fenômeno pré-político, característico da organização do lar privado; e que a força e a violência são justificadas nesta última esfera por serem os únicos meios de vencer a necessidade – governando escravos, por exemplo – e tornar-se livre. Uma vez que todos os seres humanos são sujeitos à necessidade, têm o direito de empregar a violência contra os outros; a violência é o ato pré-político de liberar-se da necessidade da vida para conquistar a liberdade no mundo. Essa liberdade é a condição essencial daquilo que os gregos chamavam de felicidade, eudaimonia, que era um estado objetivo dependente, em primeiro lugar, de riqueza e de saúde. Ser pobre ou ter má saúde significava estar sujeito à necessidade física, e ser um escravo significava estar sujeito, também, à violência praticada pelo homem. Essa “infelicidade” dupla e redobrada da escravidão é inteiramente independente do efetivo bem-estar subjetivo do escravo. Assim, um homem livre e pobre preferia a insegurança de um mercado de trabalho que mudasse diariamente a uma ocupação regular e garantida; esta última, por lhe restringir a liberdade de fazer o que desejasse a cada dia, já era considerada servidão (douleia), e até o trabalho árduo e penoso era preferível à vida tranquila de muitos escravos domésticos.

No entanto, o poder pré-político com o qual o chefe do lar governava a família e seus escravos, e que era tido como necessário porque o homem é um “animal social” antes de ser “animal político” nada tem em comum com o caótico “estado de natureza” de cuja violência, segundo o pensamento político do século XVII, os homens só poderiam escapar se estabelecessem um governo que, por meio de um monopólio do poder e da violência, abolisse a “guerra de todos contra todos” por “mantê-los todos atemorizados” [Referimo-nos aqui a Hobbes, Leviatã, Parte I, Capítulo 13.]. Pelo contrário, todo o conceito do governar e do ser governado, do governo e do poder no sentido em que os concebemos, bem como a ordem regulada que os acompanha, eram tidos como pré-políticos, pertencentes antes à esfera privada, mais que à esfera pública.

A pólis diferenciava-se do lar pelo fato de somente conhecer “iguais” ao passo que o lar era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar. Significava nem governar nem ser governado [v. governo]. Assim, dentro do domínio do lar, a liberdade não existia, pois o chefe do lar, seu governante, só era considerado livre na medida em que tinha o poder de deixar o lar e ingressar no domínio político, no qual todos eram iguais. É verdade que essa igualdade no domínio político tem muito pouco em comum com o nosso conceito de igualdade: significava viver entre pares e ter de lidar somente com eles, e pressupunha a existência de “desiguais” que, de fato, eram sempre a maioria da população na cidadeEstado.[A proporção variava, e era certamente exagerada no relato de Xenofonte sobre Esparta, onde, entre quatro mil pessoas na praça pública, um estrangeiro não contou mais que 60 cidadãos (Hellenica, iii. 35).] A igualdade, portanto, longe de estar ligada à justiça, como nos tempos modernos, era a própria essência da liberdade: ser livre significava ser isento da desigualdade presente no ato de governar e mover-se em uma esfera na qual não existiam governar nem ser governado. [ArendtCH, 5]