Com a expressão vita activa, pretendo designar três atividades humanas fundamentais: trabalho, obra e ação. São fundamentais porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas sob as quais a vida foi dada ao homem na Terra.
[…]Todas as três atividades e suas condições correspondentes estão intimamente relacionadas com a condição mais geral da existência humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade. O trabalho assegura não apenas a sobrevivência do indivíduo, mas a vida da espécie. A obra e seu produto, o artefato humano, conferem uma medida de permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano. A ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a condição para a lembrança [remembrance], ou seja, para a história. O trabalho e a obra, bem como a ação, estão também enraizados na natalidade, na medida em que têm a tarefa de prover e preservar o mundo para o constante influxo de recém-chegados que nascem no mundo como estranhos, além de prevê-los e levá-los em conta. Entretanto, das três atividades, a ação tem a relação mais estreita com a condição humana da natalidade; o novo começo inerente ao nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Nesse sentido de iniciativa, a todas as atividades humanas é inerente um elemento de ação e, portanto, de natalidade. Além disso, como a ação é a atividade política por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode ser a categoria central do pensamento político, em contraposição ao pensamento metafísico.
[…]O termo vita activa é carregado e sobrecarregado de tradição. É tão velho quanto nossa tradição de pensamento político, mas não mais velho que ela. E essa tradição, longe de abranger e conceitualizar todas as experiências políticas da humanidade ocidental, é produto de uma constelação histórica específica: o julgamento de Sócrates e o conflito entre o filósofo e a pólis. Ela eliminou muitas experiências de um passado próximo que eram irrelevantes para suas finalidades políticas e prosseguiu até seu fim, na obra de Karl Marx, de modo altamente seletivo. O próprio termo que, na filosofia medieval, é a tradução consagrada do bios politikos de Aristóteles, já ocorre em Agostinho, onde, como vita negotiosa ou actuosa, reflete ainda o seu significado original: uma vida dedicada aos assuntos público-políticos.
[…]A expressão vita activa, compreendendo todas as atividades humanas e definida do ponto de vista da absoluta quietude da contemplação, corresponde, portanto, mais estritamente à askholia grega (“inquietude”), com a qual Aristóteles designava toda atividade, que ao bios politikos grego. Já desde Aristóteles, a distinção entre quietude e inquietude, entre uma abstenção quase estática de movimento físico externo e qualquer tipo de atividade, é mais decisiva que a distinção entre os modos de vida político e teórico, porque afinal pode ocorrer em qualquer um dos três modos de vida. É como a diferença entre a guerra e a paz: tal como a guerra ocorre em vista da paz, também todo tipo de atividade, mesmo o processo do mero pensamento, deve culminar na absoluta quietude da contemplação. Todo movimento, os movimentos do corpo e da alma, bem como do discurso e do raciocínio devem cessar diante da verdade. Esta, seja a antiga verdade do Ser ou a verdade cristã do Deus vivo, só pode revelar-se em meio à completa tranquilidade humana.
Tradicionalmente, e até o início da era moderna, a expressão vita activa jamais perdeu sua conotação negativa de “in-quietude” nec-otium, a-skholia. Como tal, permaneceu intimamente ligada à distinção grega, ainda mais fundamental, entre as coisas que são por si o que são e as coisas que devem ao homem a sua existência, entre as coisas que são physei e as coisas que são nomo. O primado da contemplação sobre a atividade baseia-se na convicção de que nenhuma obra de mãos humanas pode igualar em beleza e verdade o kosmos físico, que revolve em torno de si mesmo, em imutável eternidade, sem qualquer interferência ou assistência externa, seja humana, seja divina. Essa eternidade só se revela a olhos mortais quando todos os movimentos e atividades humanas estão em completo repouso. Comparadas a esse estado de quietude, todas as diferenças e articulações no âmbito da vita activa desaparecem. Do ponto de vista da contemplação, não importa o que perturba a necessária quietude, mas que ela seja perturbada.
Tradicionalmente, portanto, a expressão vita activa recebe seu significado da vita contemplativa; a dignidade que lhe é conferida é muito limitada porque ela serve às necessidades e carências da contemplação em um corpo vivo [der Bedurftigkeit eines lebendigen Körpers, an den die Kontemplation gebunden bleibt – à necessidade de um corpo vivo, ao qual a contemplação permanece vinculada]. O cristianismo, com a sua crença em um outro mundo cujas alegrias se prenunciam nos deleites da contemplação, conferiu sanção religiosa ao rebaixamento da vita activa à sua posição derivada, secundária; mas a determinação dessa mesma hierarquia coincidiu com a descoberta da contemplação (theoria) como uma faculdade humana, acentuadamente diversa do pensamento e do raciocínio, que ocorreu na escola socrática e que, desde então, dominou o pensamento metafísico e político durante toda a nossa tradição. Para as finalidades deste livro, parece-me desnecessário discutir as razões dessa tradição. Obviamente, são mais profundas que o momento histórico que engendrou o conflito entre a pólis e o filósofo, e que, com isso, levou também, quase por acaso, à descoberta da contemplação como o modo de vida do filósofo. Essas razões devem residir em um aspecto inteiramente diferente da condição humana, cuja diversidade não é esgotada pelas várias manifestações da vita activa e, podemos presumir, não seria esgotada mesmo se incluíssemos nela o pensamento e o movimento do raciocínio.
Portanto, se o uso da expressão vita activa, como aqui o proponho, está em manifesta contradição com a tradição, é que duvido não da validade da experiência subjacente à distinção, mas antes da ordem hierárquica inerente a ela desde o início. Isso não significa que eu deseje contestar ou mesmo discutir o conceito tradicional de verdade como revelação e, portanto, como algo essencialmente dado ao homem, ou que prefira a asserção pragmática da era moderna de que o homem só pode conhecer aquilo que ele mesmo faz. Sustento simplesmente que o enorme valor da contemplação na hierarquia tradicional embaçou as diferenças e articulações no âmbito da própria vita activa e que, a despeito das aparências, essa condição não foi essencialmente alterada pelo moderno rompimento com a tradição nem pela inversão final da sua ordem hierárquica, em Marx e Nietzsche. A estrutura conceitual permanece mais ou menos intacta, e isso se deve à própria natureza do ato de “virar de cabeça para baixo” os sistemas filosóficos ou os valores atualmente aceitos, isto é, à natureza da própria operação.
A inversão moderna tem em comum com a tradicional hierarquia a premissa de que a mesma preocupação humana central deve prevalecer em todas as atividades dos homens, posto que, sem um princípio abrangente único, nenhuma ordem poderia ser estabelecida. Tal premissa não é evidente, e meu emprego da expressão vita activa pressupõe que a preocupação subjacente a todas as suas atividades não é a mesma preocupação central da vita contemplativa, como não lhe é superior nem inferior. [ArendtCH]