utopia

(lat. Utopia; in. Utopia; fr. Utopie; al. Utopie; it. Utopia).

Thomas More deu esse nome a uma espécie de romance filosófico (De optimo reipublicae statu deque nova insula Utopia, 1516), no qual relatava as condições de vida numa ilha desconhecida denominada utopia: nela teriam sido abolidas a propriedade privada e a intolerância religiosa. Depois disso, esse termo passou a designar não só qualquer tentativa análoga, tanto anterior quanto posterior (como a República de Platão ou a Cidade do Sol de Campanella), mas também qualquer ideal político, social ou religioso de realização difícil ou impossível.

Como gênero literário, utopia extrapola a consideração filosófica: aqui só observaremos que ela foi e ainda é muito divulgada, sendo adaptada até para romances de ficção científica. Cabe à filosofia avaliar a utopia, tanto a expressa em forma de romance quanto a expressa em forma de mito ou ideologia, etc; quanto a essa avaliação, os filósofos não estão de acordo. Para Comte, cabia à utopia a tarefa de melhorar as instituições políticas e de desenvolver as ideias científicas (Politique positive, I, p. 285). Marx e Engels, ao contrário, condenaram como “utópicas” as formas assumidas pelo socialismo em Saint Simon, Fourier e Proudhon, contrapondo a elas o socialismo “científico”, que prevê a transformação infalível do sistema capitalista em sistema comunista, mas exclui qualquer previsão sobre a forma que será assumida pela sociedade futura e qualquer programa para ela. No mesmo sentido, à utopia — “obra de teóricos que, depois de observarem e discutirem os fatos, procuram estabelecer um modelo ao qual possam ser comparadas as sociedades existentes para medir o bem e o mal que encerram” — Sorel contrapunha o mito, expressão de um grupo social que se prepara para a revolução (Reflexions sur la violence, 4a ed., p. 46). Mannheim, ao contrário, considerou a utopia como algo destinado a realizar-se, ao contrário da ideologia, que nunca conseguiria realizar-se. Nesse sentido, a utopia seria o fundamento da renovação social (Ideologie und Utopie, 1929, II, I; v. R. K. Merton, Social Theoty and Social Structure, 1957, 3a ed., cap. XIII). Em geral, pode-se dizer que a utopia representa a correção ou a integração ideal de uma situação política, social ou religiosa existente. Como muitas vezes aconteceu, essa correção pode ficar no estágio de simples aspiração ou sonho genérico, resolvendo-se numa espécie de evasão da realidade vivida. Mas também pode tornar-se força de transformação da realidade, assumindo corpo e consistência suficientes para transformar-se em autêntica vontade inovadora e encontrar os meios da inovação. Em geral, essa palavra é considerada mais com referência à primeira possibilidade que à segunda. Ao primeiro significado está ligada a chamada “teoria crítica da sociedade”, desenvolvida por Horkheimer, Adorno e Marcuse (especialmente por este último), que se concentra sobretudo na crítica arrasadora da sociedade contemporânea. Marcuse escreveu: “A teoria crítica da sociedade não possui conceitos que possam lançar uma ponte entre o presente e o futuro, não faz promessas e não mostra sucessos, mas permanece negativa” (One Dimensional Man, 1964, p. 257). E ainda: “Se hoje pudéssemos formular uma ideia concreta da alternativa, não seria a de uma alternativa: as possibilidades da nova sociedade são tão abstratas, tão distantes e incôngruas em relação ao universo de hoje, que levariam ao malogro qualquer tentativa de identificá-la em termos deste universo” (An Essay on Liberation, 1969; trad. it., p. 101). [Abbagnano]


Do grego, ou, não, e topos, lugar; sem lugar, lugar que não existe.

A palavra, como julgaram Morus e Campanella, remete a Platão, cuja utopia, aliás, estaria menos na República do que nas Leis. No livro IV da República, respondendo a seus interlocutores sobre a viabilidade do projeto de república perfeita, Platão indaga se sua teoria seria inferior por não se poder provar que a cidade, tal como a imagina, é realizável, indagando também se a palavra, o logos, não exprime sempre mais do que o fato e a realidade. Julga inútil insistir em provar que a república ideal, ao realizar-se, deva coincidir, em todos os aspectos, com a ideia, pois bastará descobrir como pode a cidade ser governada, de modo aproximado, de acordo com a teoria, para que se demonstre a sua viabilidade.

Na República, trata-se de saber, inicialmente, em que condições pode uma cidade ser justa, devendo-se, em seguida, determinar como, por que meios, a cidade justa pode realizar-se. A resposta de Platão é clara: para que a cidade se aproxime da república perfeita é preciso que os filósofos sejam reis e os reis sejam filósofos. A sabedoria do rei é mais importante do que as instituições legais, e as formas de constituição não passam de sua consequência.

A cidade platônica, como o próprio Sócrates o reconhece, é uma utopia, mas em que sentido? Platão não pretende apenas descobrir a justiça no homem, mas realizar um projeto político. Há dois meios de realizar tal projeto: a violência e o discurso. Embora o ensinamento de Sócrates pareça excluí-la totalmente, há uma violência que Platão admite, a que é necessária à realização da justiça. O que importa é não ser injusto, e a legalidade é um sucedâneo da justiça. Os que têm a ideia da justiça estão acima das disposições legais. A ideia da tomada do poder pela violência é, no entanto, estranha ao pensamento platônico.

Para levar o filósofo ao poder resta, pois, o outro caminho, o do discurso pedagógico, persuasivo. A reforma moral e intelectual deve revelar, aos cidadãos e aos governantes, as virtudes do regime que só os filósofos são capazes de realizar, mostrando-lhes que não é possível ser justo na cidade injusta. Na cidade corrompida, pela injustiça e pela violência, porém, o educador corre um risco constante, de não ser compreendido e de ser sacrificado, como ocorreu com Sócrates. A realização da cidade justa requer a boa educação, a qual, por sua vez, só é possível na cidade justa. O círculo vicioso é evidente.

É possível, no entanto, que um filósofo se torne rei ou um rei se torne filósofo. A realização da filosofia é, assim, para Platão, inseparável da política, chegando mesmo a dizer que os filósofos serão compelidos a governar e somente depois de terem cumprido sua tarefa política poderão, “como animais sagrados, pastar em liberdade, sem outra ocupação séria, além da filosofia”. O destino da filosofia é inseparável do destino da cidade.

A crítica da cidade injusta, na qual o filósofo-pedagogo se encontra constantemente ameaçado e onde não pode cumprir sua missão, suscita a ideia da cidade justa ou perfeita, que leva o filósofo a imaginar a reforma política e a tentar realizá-la. Há uma relação necessária entre a sorte do individuo e a sorte do Estado, a realização da justiça e o exercício do pensamento, que converte o filósofo em pedagogo e em reformador, empenhado em criar condições nas quais a harmonia da alma seja garantida pela harmonia da cidade.

A República platônica não é utópica porque preconiza a comunidade dos bens, das mulheres, das crianças e a igualdade dos sexos, nem porque se limita a propor uma reforma capaz de moralizar os cidadãos e modificar as estruturas econômicas e sociais. É utópica porque sua realização é aleatória, dependendo de um acaso, o aparecimento e o êxito de uma personalidade extraordinária. A conversão, ou a passagem, da ideia do Estado, ou do Estado ideal, para a realidade, não se acha inclusa na determinação da própria ideia do Estado, quer dizer, a mediação entre o mundo inteligível e o mundo sensível não é necessária, mas contingente.

Não é utópica, no entanto, a República, por ser irrealizável, pois não implica em sua ideia contradição alguma, mas porque suas possibilidades de realização são muito reduzidas. Não é um projeto arbitrário, uma construção fantasiosa, mas um ideal, no sentido kantiano, que representa a concepção platônica da essência do Estado, e uma tentativa de solução racional dos problemas apresentados pela sociedade grega de seu tempo. Querendo salvar a cidade sem reformar suas estruturas, Platão reflete, em seu pensamento, a crise do Estado grego após a guerra do Peloponeso e a sua incapacidade de recuperar o equilíbrio e a harmonia rompidos pela luta intestina e pelo seu próprio desenvolvimento.

Do pensamento cristão, fundamentalmente utópico, a Cidade de Deus, de Santo Agostinho, é talvez o exemplo mais eloquente. A cidade dos homens, ou cidade terrena, vale de lágrimas, cuja existência transcorre no tempo, é apenas uma preparação, ou propedêutica, para a vida em outra cidade, além do tempo, a cidade celeste, em que os homens, libertos finalmente do mundo efêmero, encontram-se com Deus, na eterna beatitude.

As utopias ressurgem no Renascimento, estimuladas, em grande parte, pela descoberta do novo mundo, pela fundação da ciência moderna e pelo retorno ao pensamento antigo, ao platonismo, de modo especial. As mais significativas são a Utopia de Thomas Morus, a Cidade do Sol de Tommaso Campanella e a Nova Atlântida, de Francis Bacon. Advogado de ricos mercadores ingleses e testemunha da ambição dos senhores de terras, Thomas Morus (1480-1535) sustenta que a raiz de todos os males sociais está na propriedade privada. Ao pesar todas essas coisas, dizia, e os abusos que decorrem da propriedade privada, tornava-se, cada vez mais, partidário de Platão, não se surpreendendo que quisesse legislar para aqueles que não queriam submeter-se à comunidade de todas as coisas. A utopia de Morus é institucional e, nesse sentido, menos utópica que a de alguns contemporâneos seus, como Erasmo e Valdês.

O essencial era suprimir a propriedade privada, a fim de que a ambição, que torna o Estado uma “conspiração dos ricos”, seja contida, restabelecendo-se a unidade e a harmonia da comunidade. Sua Utopia foi a primeira que se tentou pôr em prática em terras da América. Mártir da filosofia, como Sócrates, Thomas Morus, que era também um político, lutou contra a intolerância e o fanatismo católico da época, pregando a liberdade de crença e a religião natural universal que poderia restabelecer a unidade espiritual entre os homens.

Tommaso Campanella (1568-1639), que começou sua vida como conspirador, o que lhe valeu mais de vinte anos de prisão, inspirando-se em Platão e em Morus, deixa muito claras, na Cidade do Sol, suas intenções práticas e a ideia de que só merecem o nome de repúblicas as que se fundam na comunidade de bens e de deveres. Em sua obra, a ideia de comunidade é tão exigente que determina, inclusive, a minuciosa organização da procriação humana, pois todas as funções humanas apresentam a mesma dignidade fundamental. Seu livro, segunda utopia, é o primeiro a propor a organização rigorosamente científica da comunidade. Sob o signo da revolução copernicana, Campanella atribui especial importância, na vida dos “heliopolitanos”, ao conhecimento das ciências da natureza e das matemáticas, bem como aos “maravilhosos engenhos” cuja fabricação esse conhecimento torna possível.

O essencial, porém, como dizia Platão, é que não haja, na cidade, ricos e pobres, porque então seriam várias e não uma cidade. Mencionando-a em seu processo, dizia Campanella que a República de Platão rea-lizar-se-ia antes do fim do mundo para cumprir os desejos humanos da idade de ouro, conforme estava profetizado.

Réplica ao desaparecimento da Atlântida, tal como se encontra descrito no Timeu de Platão, a Nova Atlântida, de Francis Bacon (1561-1626), não põe em questão a comunidade, pois representa um reino tudoriano, a aristocracia renascentista e a mais poderosa tecnocracia. Corresponde, no entanto, às expectativas provocadas pelos descobrimentos científicos e pelo domínio da natureza que propiciam. A ciência e a técnica tornarão o homem capaz de todos os milagres, o movimento perpétuo, a geração espontânea e a transmutação dos metais, permitindo-lhe andar debaixo da água, como os peixes, e voar pelos ares, como os pássaros. Mais do que uma exigência de libertação, a felicidade humana deverá decorrer do progresso das ciências, o que leva Bacon a sonhar com a universalidade entendida como colaboração dos sábios.

A utopia, como a etimologia da palavra indica, está fora do espaço, mas são os utópicos que têm feito andar a história, e a hipótese está para a ideia da natureza assim como a utopia para a ideia de sociedade. Voltando a Platão, Kant situa adequadamente a utopia, não no espaço, onde por definição não se encontra, mas no tempo, reconhecendo que a ideia de uma constituição na qual os que obedecem às leis devem ser os mesmos que as ditam acham-se na base de todas as formas de Estado, e o que se chama de ideal platônico não é uma vã quimera, mas a norma eterna de toda constituição politica em geral. É um sonho imaginar constituições políticas que correspondam integralmente às exigências da razão, mas, aproximar-se das utopias, por mais distantes que estejam, em sua perfeição, é não só pensável, mas um dever.

A Revolução Francesa contribuiu para suscitar em Hegel a ideia de que a História é, em sua essência, racional, embora tal racionalidade seja dialética e não formal, o que permitiria, em principio, uma reconciliação da utopia e da topia, do espaço e do tempo, do divino e do humano. O pássaro de Minerva só levanta voo ao crepúsculo, quando acaba o tempo e, portanto, a utopia. Descobrindo o processo de acordo com o qual a História se desenrola Hegel permite identificar o ser com o dever ser, deixando a utopia de ser um ideal ao qual a sociedade deva adaptar-se para converter-se no sentido do movimento real, que suprime as contradições e as absorve na síntese superior.

Saint-Simon (1760-1825), Fourier (1772-1837) e Owen (1771-1858), representam o utopismo pós-revolucionário. No primeiro, que preconizou a industrialização e a dissolução do Estado, permanece, como observa Engels, a tendência burguesa ao lado da orientação proletária. Fourier, criador dos falanstérios, sociedades cooperativas de produção e consumo, foi o primeiro a mostrar a diferença entre a sociedade livre e não livre, e a falar em uma comunidade possível na qual o trabalho tomar-se-ia jogo. Inspirando-se no materialismo francês, Owen preconizou a supressão das classes e fundou nos Estados Unidos a colônia de New Harmony (Nova Harmonia) onde pretendia reconciliar a agricultura e a indústria, eliminando o salariado e o pauperismo. Nenhum deles, porém, se apresenta como representante do proletariado. Assim como os iluministas, querem libertar não determinada classe, mas toda a humanidade, instaurando o reino da razão e da justiça.

Com Karl Marx e Friedrich Engels, cujo pensamento procede do idealismo alemão, do socialismo francês e da economia política inglesa, o socialismo deixa de ser utópico e se torna científico. Ao criticar a economia política, Marx e Engels denunciam seu caráter ideológico, de justificação racional dos interesses e privilégios da burguesia, mostrando que as ideias dominantes são as ideias da classe dominante. À critica da economia burguesa não pretendem opor um mero ideal, um projeto generoso e humanitário de reforma social. O socialismo que preconizam não é utópico mas científico porque não “é um estado que deva ser estabelecido, nem um ideal a que a realidade deva adaptar-se”, mas o “movimento real que suprime o atual estado de coisas, pois suas condições decorrem de pressupostos atualmente existentes”. Assim como o capitalismo sucedeu historicamente ao feudalismo, o socialismo deverá suceder ao capitalismo. O socialismo está, assim, inscrito nas próprias contradições do capitalismo e seu advento corresponde a uma exigência objetiva do processo histórico, em determinada fase de seu desenvolvimento.

Em conferência intitulada Das Ende der Utopie (O fim da Utopia) Herbert Marcuse observa que, atualmente, qualquer transformação do meio natural e do meio técnico é uma possibilidade real, que tem seu lugar, seu topos, na história. O fim da utopia, entendido como rejeição das teorias que se utilizaram da utopia para denunciar certas possibilidades histórico-sociais, pode ser definido como fim da história, diz Marcuse, no sentido de que as novas possibilidades da história humana não podem mais ser concebidas como um prolongamento das anteriores apenas, porque implicam uma ruptura, um salto qualitativo, entre as sociedades livres e as sociedades oprimidas.

O desenvolvimento cientifico e tecnológico mobilizou as forças intelectuais e materiais capazes de transformar o mundo, embora sua utilização seja embaraçada pela atual organização das forças produtivas. Em tese, no entanto, a sociedade do bemestar, do lazer e da liberdade, graças ao progresso do conhecimento e do crescente domínio do homem sobre a natureza, deixou de ser uma utopia para inscrever-se no horizonte das possibilidades históricas. [Corbisier]