Que ultrapassa. — Uma realidade transcendente é a que ultrapassa nosso poder de conhecer; um gênio transcendente ultrapassa a média dos seres humanos. Quando se fala da transcendência de Deus, evoca-se um Deus criador, distinto de sua criação; contrapõe-se à imanência de Deus, isto é, ao panteísmo segundo o qual Deus estaria presente no mundo e em nós mesmos, sendo por isso mesmo conhecível. A transcendência contrapõe-se à imanência. [Larousse]
Em geral, tem-se entendido que o transcendente é o que está “para lá de alguma coisa”; transcender é “sobressair.” Amiúde se tem admitido que algo que transcende é superior a algo imanente, até ao ponto de quando se quis destacar a superioridade infinita de Deus em relação ao criado se dizer que “Deus transcende o criado e inclusivamente que Deus é a transcendência”. Por isso também se tem dito que o ente é transcendente e se tem falado das propriedades transcendentais do ente. Este é o significado próprio dos vocábulos transcendental e transcendentais. A superioridade e importância do transcendente e transcendental adverte-se no uso habitual em que algo transcendental é algo realmente importante e capital. Há portanto um significado destes termos vinculado a problemas teológicos e metafísicos. No que se refere à transcendência de Deus, ou de um princípio supremo, tem-se proposto várias teses: 1. Deus é absolutamente transcendente ao mundo; entre Deus e o mundo abre-se um abismo que só Deus pode, se quiser, franquear. 2. a tese precedente põe em perigo a relação entre Deus e o mundo ou, em geral, entre um princípio supremo (o absoluto, o uno, etc) e as restantes realidades. Os partidários desta posição discordam porém sobre o modo de relação entre Deus (um princípio metafísico) e o mundo, ou, dizendo de outra maneira, sobre os diversos graus de transcendência. Os mais moderados sustentam que “um transcendente” é absolutamente transcendente, mas não há entre ele e o mundo um abismo, pois o mundo orienta-se para o transcendente ou participa dele numa série de graus de menor a maior perfeição. Outros, em compensação, afirmam que Deus (ou o princípio) não é transcendente ao mundo, mas q é, como dizia Espinosa “causa imanente de todas as coisas”, de modo que chega se uma identificação de Deus e do mundo tal como o postula o panteísmo….. Para além do significado metafísico, é digno de considerar o ponto de vista propriamente gnoseológico acerca do conceito de transcendência, no qual desempenha um papel importante o modo de conceber a relação sujeito–objeto.. Neste caso, o sujeito transcende par o objeto como objeto exterior cognoscível. Diz- se então que o objeto é transcendente ao sujeito e que este pode atingi-lo quando for para o objeto. Assim a transcendência gnoseológica do objeto pressupõe o transcender do sujeito para o objeto. Quando a transcendência do objeto é completa, sustenta- se uma concepção realista do conhecimento; em compensação, quando se nega que haja transcendência do objeto sustenta-se uma concepção idealista do conhecimento; finalmente, quando se pressupõe que o objeto não é absolutamente transcendente, sustenta-se uma concepção realista (moderada) do conhecimento.
A doutrinas dos transcendentais mais conhecida – embora não a única – é a de S. Tomás. Para ele, o que o intelecto apreende antes de tudo é o ente enquanto ente; portanto, nenhum ente em particular, mas o ente em geral, o conceito de ente. Não se pode adicionar ao ente algo que não seja ente para formar um novo conceito, pois tudo é ente. No entanto, pode tornar-se explícito o ente sem lhe adicionar nada diferente, dizendo, por exemplo, que o ente é por si mesmo em cujo caso “por si mesmo” não acrescenta nenhuma realidade ao ente, como acrescentaria a cor amarelo a uma coisa, fazendo dela uma coisa amarela. E também pode fazer-se explícito o ente exprimindo algo que corresponde a todo o ente como ente: as suas propriedades, por pertencerem só -ao ente enquanto ente se chamaram propriedades transcendentais ou, mais brevemente, transcendentais.
As propriedades podem fazer-se explícitas, considerando o ente explicitamente; isto sucede quando digo do ente (afirmativamente) que é uma coisa, e quando digo (negativamente) que é uno, quer dizer, que não está dividido, pois se o estivesse teríamos dois entes. As propriedades também podem fazer-se explícitas, considerando o ente relativamente; isto sucede quando digo que um ente é diferente de qualquer outro ente, em cujo caso é algo; ou quando considero a relação do ente com o intelecto e então todo o é conforme o pensar e é verdadeiro; é a relação do ente com a vontade, e então todo o ente é apetecível e, portanto, bom. Deste modo temos a lista dos transcendentais: ente, coisa, uno, algo, verdadeiro e bom. Pode-se observar que ente, coisa e algo são termos sinônimos; por isso às vezes se diz que não são propriamente atributos transcendentais do ente, visto que não acrescentam nada ao ente. Em compensação, uno, verdadeiro e bom acrescentaram algo ao ente, embora de um modo especial; ser uno não é uma propriedade do ente no sentido de constituir uma realidade distinta do ente. A unidade e o ente são o mesmo; por isso são convertíveis, isto é, afirmar o ente é afirmar que é uno, e afirmar o uno é afirmar o ente. O mesmo sucede com as propriedades verdadeiro e bom. Daí a célebre fórmula escolástica: “o uno, o verdadeiro e o bom são convertíveis entre si. Para concluir com as doutrinas mais importantes sobre estes termos referir-nos-emos ao sentido do transcendental em Kant, porque nele se manifesta um uso novo e, além disso, uma transformação do uso tradicional. O transcendental está determinado pelo conceito de possibilidade do conhecimento; todo o exame de tal possibilidade é de caráter transcendental: “chamo transcendental a todo o conhecimento que se ocupa não tanto dos objetos como mo modo de os conhecer, na medida em que este modo é possível a priori. O sistema de tais conceitos pode ser chamado filosofia transcendental”. Kant distingue entre transcendental e transcendente; o primeiro refere-se ao que torna possível o conhecimento da experiência e não vai mais além da experiência; o segundo alude ao que se encontra mais além de toda a experiência. Portanto devem rejeitar-se a ideias transcendentes do mesmo modo que há que admitir os princípios transcendentais. [Ferrater]
(lat. Transcendens; in. Transcendent; fr. Transcendant; al. Transzendent; it. Trascendente).
Este termo tem dois significados fundamentais, correspondentes aos dois significados de transcendência: 1) o que está além de determinado limite, tomado como medida ou como ponto de referência; 2) operação de transposição.
1) No primeiro significado, essa palavra assume valores muito diferentes, segundo o que se considere limite ou medida. As propriedades transcendentais eram chamadas assim por serem transcendente em relação aos gêneros, dos quais eram consideradas independentes. Fala-se de “perfeição transcendente” como perfeição que supera todos os graus alcançáveis. Mais frequentemente, esse termo é usado em filosofia para indicar o que ultrapassa os limites de alguma faculdade humana ou de todas as faculdades e do próprio homem. Assim, Boécio afirmava que “A razão transcende a imaginação porque apreende a espécie universal que está ligada às coisas singulares” (Phil. cons., V, 4). Tomás de Aquino afirmava que a teologia “transcende todas as outras ciências tanto especulativas quanto práticas” porque é mais certa que elas e por tratar de coisas “que, pela elevação, transcendem a razão” (Suma Teológica, I, q. 1, a. 5). Ao tratar da identidade do mínimo absoluto e do máximo absoluto em Deus, Nicolau de Cusa diz que “isso transcende o nosso intelecto, que não pode combinar racionalmente as coisas que são contraditórias em seu princípio” (De docta ignor., 1,4).
Foi mais precisamente a partir de Kant que transcendente passou a designar a noção que excede os limites da experiência possível. Portanto, segundo Kant, são transcendentes as ideias da razão pura: “Chamaremos de imanentes os princípios cuja aplicação se mantém em tudo e por tudo nos limites da experiência possível, e de transcendentes os que devem ultrapassar esses limites” (Crítica da Razão Pura, Dialética, Intr., I; cf. Prol, § 40). É diferente dos princípios transcendentes o uso transcendental dos princípios imanentes, que se vale de princípios cognitivos legítimos, mas sem levar muito em conta os limites da experiência (Ibid., Dialética, Intr., I; cf. Prol., § 40).
2) Nos significados anteriores, a palavra transcendente designa o que está além de certo limite. Na filosofia contemporânea, é muitas vezes usada para designar uma atividade ou uma operação correspondente ao 2° significado de transcendência. Nesse sentido, segundo Husserl, é transcendente a percepção das coisas em oposição à percepção que a consciência tem de si mesma (que é percepção imanente) (Ideen, I, § 46). No mesmo sentido, Hartmann chama de ato transcendente o conhecimento (Systematische Philosophie, § II). Heidegger define como transcendente “o que atualiza a ultrapassagem, o que se mantém na ultrapassagem” (Vom Wesen des Grundes, II; trad. it., p. 29) (v. transcendência). [Abbagnano]